Resenha Relâmpago: TALCO DE VIDRO

Tem que acabar a classe média! Esse curioso substrato social tem suas peculiaridades, que seriam bizarras da perspectiva de outros países mais desenvolvidos, mas aqui são extremamente arraigadas no inconsciente coletivo nacional: Ela existe para sedimentar as vontades da elite nas camadas inferiores da sociedade, macaqueando seus trejeitos, mas sem realmente pertencer ao mesmo grupo social. Mesmo sem possuírem uma farpela do real poder de que as elites desfrutam, as pessoas deste meio almejam, elas também, se tornar elite, ou ao menos, emulá-la, vivendo um simulacro de pujança, autoridade e riqueza que, na maior parte do tempo, não existe, sempre incapazes de reconhecer sua verdadeira posição social e impondo o embuste a quem está abaixo – ou ao lado! – , ignorando o fato de que estão mais próximos da base da pirâmide do que do topo, vivendo assim em seu próprio conto de fadas, onde lhes basta fingir serem o topo e se confortando com a desigualdade social. Desde crianças são condicionados a ver a vida como uma grande competição, criados para correr atrás de metas – sempre as que os pais acham melhor – e não de sonhos idealizados por si próprios. Na primeira metade da vida, o grande objetivo é passar no vestibular, ser “alguém na vida”, ter um bom emprego, quem sabe até ficar rico (Ué, mas já não são o topo da hierarquia social?). A maioria acaba por se tornar autômatos tecnicistas, que se um dia já souberam quem foram, se esqueceram faz tempo, passando a outra metade da vida na corrida de ratos que é “fazer dinheiro, comprar coisas, pagar contas, repetir essa operação até o dia da morte.”. O “Ter” sempre tem prevalência sobre o “Ser”, o mantra é “Antes de chorar a minha mãe, que chore a sua”. É uma vidinha triste. Mas eles parecem gostar desse jeito.

Em Talco de Vidro, Marcelo Quintanilha muda ligeiramente o foco de suas histórias: Se em suas HQs anteriores os protagonistas eram sempre personagens oriundos das camadas mais humildes da população, aqui o autor sobe seu foco das crônicas da realidade brasileira um pouquinho na pirâmide social – mas nem tanto – e contemplamos a história de Rosângela, uma dentista, casada com um médico prestigiado, com casa em Icaraí, área nobre da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, dois filhos, casa de praia, consultório próprio, carro zero km, e que apesar de tudo isso inveja Daniele, sua prima. De origem mais humilde, Daniele nunca terminou a faculdade, tem um casamento malsucedido e padece com o fardo do alcoolismo crônico do pai, uma mácula na família. E aí entra o paradoxo: se ela realmente tem tudo, por quê ela não é feliz com o que tem??? A resiliência de sua prima a incomoda. “Como pode ela, que não tem nada, nunca teve nada, nem felicidade teve, é capaz de sorrir e eu que tenho tudo, não consigo?” Isso gera uma crise existencial em Rosângela, que degenera rumo a um trágico ciclo de autodestruição. A perfeita subversão de uma novela da Globo, como se Manoel Carlos tivesse sido seqüestrado e mantido em cativeiro num barraco quente e apertado nos confins da Vila Kennedy, com muito crack e marafo nas idéias e tendo surras aplicadas de hora em hora pelo fantasma de Nelson Rodrigues.

Marcelo Quintanilha pinta um retrato patético (e por isso mesmo altamente verossímil) da classe média, que é de fato mediana em tudo: Nas ambições, nos afetos, na busca de sua identidade, na estatura da alma. O retrato perfeito do coxinha imbecil, que em sua ilusão de mobilidade social crê ter muito, mas não é nada nem ninguém sem o cartão de crédito, o apê financiado em 30 anos e o carro, que já tem dois anos de uso e incomoda, porque está na hora de trocar. Andar de carro “velho”??? NEM PENSAR!

Algo que me chamou muito a atenção em Talco de Vidro foram os diálogos, uma verossimilhança de assustar com o nosso cotidiano carioquês. Os maneirismos, gírias etc. Parece que você está conversando com algum conhecido. Isso torna muito mais fácil identificar os personagens em alguém do seu círculo social. Essa leitura evocou muita gente que conheço de verdade, remeteu às Rosângelas da vida real, que por medo, ignorância ou um mix dos dois, vestiu a camiseta verde e amarelo, embarcou no hype das mentiras, virou massa de manobra e ajudou a transformar o Brasil em uma baderna ligeiramente maior do que era nos últimos 5 séculos. Tudo por não ter consciência de quem realmente é. Talco de Vidro é tão plausível e necessário que o próximo governo sério e ser instaurado nesse cabaré lotado de almas medianas deveria considerar colocar a HQ na lista de livros obrigatórios pelo MEC. Só acho.

A burguesia fede sim, seu Cazuza. Mas o pequeno burguês é infinitamente mais fedido por se achar o mais cheiroso, limpo, correto e merecedor de tudo que existe entre todos nós. O cidadão de bem tal como o conhecemos tem que acabar. Ou melhor, evoluir.


Editora Veneta
160 páginas. Capa dura.
R$ 59,90

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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