CONTOS DA ZONA: Consumida

Era mais uma daquelas típicas noites: uma grande imensidão negra, sem estrelas, pois estas tiveram seu brilho roubado por um ladrão que andava pelo céu, tomando esperanças e se fartando de medos e desgraças. Enquanto o caos engolia o céu noturno, eu estava voltando do trabalho, cansada e esgotada das obrigações árduas de  uma vida sem perspectiva. As ruas estavam movimentadas e cheias de gente, isso foi o suficiente para saber que ainda estávamos em horário nobre.  Eu andava rápido para chegar em casa, conseguia sentir o meu corpo esquentando a cada passo longo que eu dava, o suor descia no meio das minhas costas e seios. Corria porque não suportava estar na rua. Na verdade, tinha mais preferência em andar pelas ruas esquisitas, mesmo que fossem grandes as probabilidades de eu me meter em encrenca. Entretanto, em ruas vazias não há olhares acusadores, apenas o olhar de Deus sob as suas criaturas, mas sobre isso eu nem me preocupo, pois sabia que Deus não olhava para mim, afinal haviam pessoas mais importantes, que roubavam a sua atenção.

Eu andava e andava, mas as ruas pareciam ser projetadas para que eu nunca conseguisse chegar em casa. Subitamente o tempo se voltou contra mim: quando olhei para o céu, as nuvens estavam se agrupando e formando uma grande tempestade. Continuei andando, porém apressei os passos. Fui tropeçando, sentindo o suor escorrer pelo o meu pescoço, enquanto mantinha os meus olhos baixos para não encarar aqueles indivíduos que pareciam estar conspirando a minha queda. Até que, um medo irracional me envolveu, achei que estivesse sendo perseguida, então levantei a cabeça para encarar aqueles seres que, felizes, confraternizavam como se a vida fosse bela.

Aquele foi o meu pior erro: jamais deveria ter olhado para eles. Repentinamente, a multidão concentrou toda a sua atenção em mim, e eu, logo me preocupei que podia estar com a roupa suja, ou rasgada, talvez que pudesse ter feito algo errado, porém continuei andando no mesmo ritmo. As minhas pernas já não aguentavam mais a velocidade que eu as impunha, minhas panturrilhas doíam e queimavam com o esforço visceral que eu fazia para que elas continuassem a caminhar. As pessoas começaram a emitir ruídos estranhos, em uníssono, enquanto andavam rápido atrás de mim. A situação começara a ficar perturbadora, então eu decidi abandonar o senso e comecei a correr. Corri como se estivesse fugindo da morte. O vento forte e frio invadia as minhas narinas, causando um desconforto insuportável, os meus pulmões ardiam, e quando eu buscava o ar, ele não vinha até mim. Quando olhei para trás, a fim de checar se a multidão ainda estava atrás de mim, notei que agora todos estavam parados, me encarando de longe, então achei que poderia relaxar e começar a diminuir a velocidade dos meus passos. Estava enganada; quando olhei para a frente, haviam três pessoas olhando fixamente para mim, prontas para me atacar. Olhei para trás e para os lados, haviam mais pessoas. Eles estavam me cercando, mas era impossível que tivessem chegado até ali, eu não entendi como aquilo estava acontecendo. Os sentimentos de medo e aflição começaram a me perturbar, pois aquilo já estava ficando esquisito… Eles foram se aproximando de mim, formando uma roda e me deixando sem saída…

O que vocês querem de mim? Me deixem em paz! Eu não tenho nada!” – em pânico, gritei para que a multidão fosse embora, mas eles não pareciam compreender o que eu dizia. Um deles me puxou pelo braço direito, enquanto o outro me puxou pelo braço esquerdo, como se tivessem brigando por mim, mas tudo o que saía da boca deles era um grunhido bizarro e inumano. Aqueles, sem sombra de dúvidas, eram corpos humanos, mas as criaturas que neles habitavam não pareciam ter um pingo de alma e humanidade. Enquanto eu me debatia, tentando me livrar de seus braços, outro deles deferiu um soco bem no pé do meu estômago. A dor foi tão forte e inesperada que as minhas pernas se enfraqueceram. O soco deve ter soado como “Esse foi o primeiro. Tá liberado!”, pois logo em seguida outra criatura me deu um chute nas costas – que me fez cair de joelhos no chão – a partir daí, todos eles caíram em cima de mim e me espancaram como se eu tivesse cometido um crime terrível. Eu sentia como se o meu corpo estivesse sendo partido em vários pedaços, os meus músculos já não aguentavam mais apanhar e a minha pele estava começando a se rasgar e sangrar. “Por favor, parem! Eu não fiz nada! Não sou quem vocês procuram!” Eu suplicava,  pedindo a chance de me explicar, mas a única coisa que eles pareciam entender era a violência: aquela era a linguagem deles. Aos poucos, fui perdendo a força, não conseguia mais protestar. O meu corpo parecia agora vazio, busquei por forças, mas não encontrava mais. A minha visão escureceu, senti um gosto terrível em minha boca; gosto de sangue amargo, pensei que era a morte chegando, finalmente me salvando de toda essa dor sem causa…

Acordei deitada no chão de um galpão frio, cercada por baratas, besouros, mosquitos e outros insetos, que passeavam freneticamente pela construção imunda e úmida. Tentei, aos poucos, recobrar a minha consciência, para conseguir mensurar o perigo em que eu havia me metido, e também para encontrar uma forma de pedir ajuda. Busquei auxílio dos meus braços e pernas, mas eles estavam amarrados. Quando tomei ciência de que o meu corpo estava preso naquele chão imundo uma agonia se instalou dentro de mim e eu comecei a ferver por dentro, como se o meu sangue fosse ficar tão quente que queimaria a minha pele por dentro, como ácido, até escorrer tudo pelos meus poros. Gritei com toda a minha força buscando por ajuda, tentei me mexer e me soltar, puxei os meus braços com força contra as cordas que me amarravam, os meus pulsos ficaram roxos. Por causa da circulação presa, a qualquer momento, os fios da corda poderiam cortar os meus pulsos, mas mesmo assim continuei fazendo força para conseguir soltá-los. Porém, apesar dos grandes esforços, não obtinha êxito. Quanto mais eu puxava, menos força eu tinha.

Eu nunca fui de acreditar que existiam coisas impossíveis, mas aquilo parecia algo muito impossível de acontecer. Um nó gigante se formou em minha garganta, cresceu tanto que senti a minha garganta fechar, até que me derramei em lágrimas e chorei compulsivamente. Eu pensava na minha mãe e na minha irmã, que estavam em casa, provavelmente preocupadas com o meu sumiço. Imaginar a dor que elas estavam sentindo era a pior das agonias naquele momento. Eu não podia nem saber há quanto tempo estava sumida, poderiam ser apenas horas, ou poderiam ser dias, porém eu não poderia saber porque simplesmente acordei naquele galpão. Meus pulmões se comprimiam com o pânico alastrando a minha mente e o turbilhão de sensações que tomavam o meu corpo. Todos os meus músculos se contraíam com os meus gritos ensurdecedores e estridentes. Eu precisava sair daquele lugar, ir para casa, tomar um banho, deitar na cama e nunca mais levantar de lá. Me esforcei mais para conseguir me soltar; meus dentes rangiam e eu gritava, invocando uma força inconsciente dentro de mim… Até que ouvi passos e vozes, vindos de longe, para não fazer mais alarde, me convenci a parar e fechar os olhos. As vozes e os passos se aproximavam de mim, e quanto mais perto, menos eu sabia de qual direção estavam vindo. Chegou um momento o qual as vozes se aproximaram tanto que dava pra sentir que agora elas estavam ali comigo, e mais: a proximidade revelou que na verdade não eram vozes, ainda eram aqueles grunhidos toscos e nojentos. O meu corpo inteiro arrepiou quando entendi que as criaturas tinham voltado para terminar o seu trabalho comigo.

Pressionei os meus olhos com força, tentando me concentrar em me livrar das amarras da maneira mais silenciosa possível, mas era muito mais difícil do que nos filmes. As criaturas sinistras se aproximaram tanto de mim que pude sentir a sua respiração quente em meu rosto; o hálito deles era quente e tinha um odor terrível, como se seus órgãos estivessem podres. Botaram o dedo no meu pescoço, para sentir se eu ainda estava viva… Quando perceberam que eu ainda respirava, abriram os meus olhos e me fizeram encarar um novo nível de tortura: cinco dos indivíduos vieram trazendo um recipiente gigante, de mais de 10 litros e o despejaram em mim. Nos curtos segundos em que eu não sabia o que tinha, imaginei o pior, e mesmo o pior que eu havia imaginado ainda não era tão ruim quanto a realidade: atiraram insetos de todos os tipos em mim; eram baratas, besouros, formigas, larvas, moscas… os bichos andavam em meu corpo como se estivessem em um parque de diversões. Eu gritei “O que é isso!? Tirem essa merda de cima de mim!!! Eu quero viver! Me tirem dessa porra!” E eles, robóticos, não emitiam emoção alguma. “Quem são vocês porra? O que vocês querem de mim? Me deixem em paz!!!” eu gritava, enquanto me debatia com a agonia de sentir as milhares de patinhas de bichos andando sobre as minhas feridas, mordendo a minha pele e se alimentando da minha carne e do meu sangue. Continuei a gritar, fazendo tanta força para me libertar que ouvia os meus membros estalando. A pele dos meus braços não aguentou e cedeu aos fios da corda, o meu sangue saía com pressa dos meus braços e pernas, enquanto eu ouvia as gotas de sangue sendo derramadas no chão, as formigas se organizavam e prontamente vinham experimentar o meu sangue agridoce. Lentamente, as criaturas se distanciavam de mim, enquanto eu gritava e implorava para que voltassem e tirassem de vez a minha vida, porque eu preferia morrer logo, ao invés de ser devorada lentamente, até a morte, por um monte de insetos.

A dor e a agonia eram mais insuportáveis do que qualquer coisa que eu já experienciara antes. Era tão ruim e inacreditável que internamente eu torcia para que fosse um sonho: aquelas pessoas não eram reais, eu não fui espancada, não haviam insetos se alimentando da minha carne, eu não estou morta. Eu repetia para mim mesma “eu não estou morta, eu não estou morta, eu não estou morta.”, quando chegar o momento certo, o sol vai raiar, depois, entre às 6:30 e  7:00, vai queimar forte o meu rosto, enquanto eu estiver deitada em meu quarto, então, mais uma vez, vou acordar brava por não ter fechado as cortinas, e iniciar o meu dia, normalmente, depois de ter tido uma noite ruim de sono por causa dos pesadelos incessantes. Mas era real. Eu realmente estava ali, sem razão alguma, sendo devorada por insetos famintos, depois de ter sido atacada, mais uma vez, sem motivo algum, por criaturas bizarras na rua. Nos meus poucos segundos de consciência eu buscava explicações plausíveis para o que estava acontecendo comigo. A minha cabeça fervia com tantos pensamentos e hipóteses, porém nada era o suficiente para explicar o que eu estava vivendo agora. Talvez na vida passada eu tenha sido alguém muito ruim, e esse seja o meu castigo agora, e também a minha chance de redenção. Ou talvez Deus simplesmente tenha se cansado de olhar para mim e me deixado ao léu, acho que é isso que acontece quando nenhuma divindade zela por você: coisas acontecem, e você não pode evitar. Talvez não hajam explicações, pode ser que eu estivesse apenas no lugar certo, e na hora errada, sem precedentes, apenas a porra de um destino miserável. Mas agora a minha consciência começara a se esvair, o que sobrara do meu corpo estava sendo devorado pelos insetos. Naquele instante, dentro do galpão, vi de cima a minha carcaça nojenta, pesada e sem importância, afundando na terra, perpetuando algo que eu já sabia que estava perto de acontecer.

Na minha morte, a única solenidade que recebi fora dos insetos, que ficaram comigo até o fim.

Tárcyla Arruda (@monddgottin)

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