Ray Spass é um decadente roteirista de Hollywood que está em uma encruzilhada de sua vida: O prazo para um trampo está cada vez mais apertado e seus anos de prestígio, cada vez mais têm ficado para trás. Ray, do alto de seu passado cagado envolvendo abuso de substâncias e um relacionamento abusivo que deixou marcas na mulher com quem ele se envolveu, e com uma única perspectiva para seu futuro – o ostracismo -, aposta em finalizar o roteiro de Aniquilador, seu épico de horror sci-fi ou, nas palavras dele, “Um horror de casa mal assombrada ambientado no espaço”.
Desesperado, Spass aluga uma casa onde ocorreram assassinatos ritualísticos de magia negra em busca de alguma inspiração… excêntrica, e acaba por inadvertidamente invocar Max Nomax, o personagem principal de seu roteiro, um aventureiro anti herói cuja maior ambição é dar um fim ao conceito de morte como o conhecemos. Transportado para nosso mundo, Nomax obriga Spass a finalizar seu roteiro, para que as histórias de ambos, Spass e Nomax, cheguem a uma conclusão. Porém toda aventura que se preze tem um antagonista. E o de Nomax é o mais perigoso possível e pode colocar nosso mundo em risco.
Max Nomax é o arquetípico anti herói da ciência, tema já visitado por Morrison em Os Invisíveis, quando ele nos apresentou Gideon Stargrave, alter ego metalingüístico de personagem King Mob, que por sua vez deriva da referência suprema ao espião multiversal Jerry Cornelius, criado por Michael “Elric” Moorcock. Para fins de comparação, algo como um James Bond muito mais despojado, sem seguir nenhuma lei e completamente amoral. Morrison cria aqui uma cosmologia com muito revisionismo tendo como base elementos das mitologias cósmicas que Jack Kirby criou em suas próprias histórias (embora na minha opinião Kirby seja mais prolífico e criativo que Morrison, em especial em seus trabalhos da década de 1970) mas adicionando seus próprios elementos, recorrentes em sua obra: Assim como se pode esperar de qualquer trabalho de Jodorowsky menções ao Tarô, Zen Budismo ou à gnose, o leitor pode esperar de Morrison cosmologias mirabolantes (cortesia de Jack Kirby, como já mencionei), questionamento da maleabilidade dos limites da ficção/realidade, drogas, muitas drogas e, é claro, muita, muitaMUITA metalinguagem. O escocês maluco ainda brinca com o mito do Demiurgo e também bota Lovecraft no liquidificador, criando algo como um Shoggoth ainda mais perigoso do que o originalmente concebido pelo pai do Horror Cósmico.
Aniquilador é uma história sobre criação em dois níveis, tanto no universo “artificial”, que seria o nosso dentro da história, contido dentro de outro universo superior, esse sim o “real” (exatamente como Morrison já brincou em uma das edições da maxi série Grandes Astros Superman), o que remete ao que deve ser um dos mantras herméticos favoritos do autor, “Assim na Terra como no Céu”, o que mais uma vez reforça a referência ao Demiurgo. A história também trata da criação da arte a partir do nada, tanto no contexto da história como na prerrogativa do ofício de Morrison, de criar (ou transportar de outra parte, quem sabe dizer com certeza absoluta?) universos inteiros a partir da criação de um simples roteiro. A HQ dialoga com o ofício da escrita magistralmente, como, por exemplo, na sequência em que Spass, impossibilitado de escrever, é substituído por Nomax no notebook, o que me fez lembrar de todas as vezes em que algum autor já declarou que a uma certa altura do desenvolvimento de suas histórias, sentiram como se seus personagens tomassem as rédeas da história, se escrevendo sozinhos. Morrison brinca com a literalidade dessa sensação que já acometeu todo autor em determinado momento de suas carreiras.
A HQ já foi indicada ao Prêmio Eisner, e apesar de não ter levado o prêmio, basta uma leitura para entender porque mereceu a indicação, e talvez até se indignar por não ter levado. A arte fica por conta de Frazer Irving (7 Soldados da Vitória, Batman & Robin), que dispensa apresentações, um daqueles desenhistas de estilo único, que não imita ninguém, nem é imitado por ninguém, uma ave rara.
Publicada originalmente pelo selo do estúdio de cinema Legendary, a edição nacional é trazida pela editora Skript, e traz bônus de bastidores, encadernação em capa dura e com uma sobrecapa e tem tradução de Marcio Rodrigues e Ester Gewehr. A HQ é uma ficção científica/terror num estilo que dialoga com Lovecraft, como já mencionei lá em cima. Mas, acima de todo o massavéismo que possa conter por conta da mistura de gêneros, é também uma jornada épica através do processo criativo. Enquanto Morrison nos apresenta seu protagonista, vemos que criar uma obra é tão doloroso quanto o nascimento de um universo. Nas palavras do autor: “- A mente de um homem é o lugar mais perigoso do universo.“. Enfim, pra quem sempre tá atrás daquela pegada Vertigo de histórias em quadrinhos de teor adulto e fora do eixo das grandes editoras, Aniquilador evidencia que Morrison, apesar de requentar alguns truques de sua cartola, ainda tem história pra contar. Mesmo que seja uma história sobre contar histórias.
Curtiu essa resenha? Então siga essa Zona nas redes sociais e não perca nenhum conteúdo! Textos todas as terças e quintas.
Instagram: @zonanegativa2014
Facebook: Zona Negativa
Site: zonanegativa.com.br