Pronto. Toda vez que o LSD bate é a mesma coisa. No começo achei que fosse algum efeito colateral da droga, a visão desfocando, espasmos musculares involuntários dos músculos nas órbitas oculares, sei lá. Mas depois, em outras viagens, comecei a perceber que era uma coisa mais sutil. Algo menos… físico? Não tenho problemas de visão. Pelo menos não quando estou limpo. Não dá pra explicar. Vocês não entenderiam e só diriam que é “Coisa de drogado!” ou “Não sou obrigado a saber o que se passa na mente de um drogado!”. É como se a visão borrasse. Mas só nos cantos. A visão focada no centro continuava límpida, mas a visão periférica ficava enevoada, borrada. Mas logo as cores mudavam, o ácido batia com tudo, o fluxo de pensamento vinha insano, eu relaxava e aproveitava a dose pelas próximas horas.
Depois de um tempo, a cada dose eu ficava mais obsessivo com esse detalhe, ao ponto de dedicar minha atenção somente a isso: Imagine passar horas inteiras tentando focar em um ponto de sua visão que está sempre fora de foco, como tentar enxergar tudo por baixo de um véu grosso. Horrível, né? Agora imagine essa sensação associada àquele estado de idéia fixa que as drogas provocam. Infernal, não? E eu só queria brincar sossegado. Mas ainda iria piorar…
Um dia, já acostumado a essa fixação da visão borrada – mais uma viagem estragada por distrações – , percebi com o canto borrado da visão uma coisa diferente: Uma porta entreaberta. Só um filete vertical de luz. Lembrei que aquela parte da casa era só um ângulo entre duas paredes, não existia porta nenhuma ali! Quer dizer, naquele momento existia. E alguém me espiava do outro lado. Não exatamente alguém. Algo. Percebi aquilo com o canto borrado da visão, mas sem virar a cabeça. Percebi tudo com aquela intuição parecida com o que se sente quando se está sonhando. Eu estava aterrorizado demais pra confirmar isso com meus dois olhos focados naquela direção. Segurei a onda e fui caminhar pelo bairro até o efeito passar. Sem olhar pra trás.
Nas vezes seguintes, um pouco mais louco que o normal (ou talvez pela variedade das ‘safras’ que eu consumia), decidi virar a cabeça e ver o bisbilhoteiro. “Que se foda, essa alucinação foi longe demais”, pensei. Virei a cabeça e consegui ver. Claramente. Primeiro reparei nas cores, as mais intensas e incríveis que já vi. Indescritível. Lindo. Vontade de mergulhar lá dentro. Nunca vi cores assim estando de cara desse lado de cá da porta, nem no real, nem no digital. Porra, na verdade nem nas minhas viagens mais alucinadas e coloridas de ácido eu nunca vi cores como aquelas pairando atrás da porta entreaberta ao fundo. Mas tinha também aquilo em primeiro plano. O que me espiava. Com a ‘porta’ ainda mais escancarada, consegui ver claramente: Insetóide. Algo que nadaria abaixo de seis mil metros de profundidade submarina. Alguma coisa que conseguiria tranquilamente sobreviver no vácuo espacial. Tudo isso junto. E muitos outros detalhes que, tenho certeza, não lembro por pura compaixão do meu cérebro. Só sinto que é coisa de pirar uma pessoa na hora! Não sei o que mais me impactou: Se foram aquelas cores indescritíveis ou a coisa na porta, igualmente indescritível.
Hoje faz uma semana que eu tô limpo. Só tenho tomado café, mais nada. O mais pavoroso de tudo é que agora eu vejo o bisbilhoteiro o tempo todo pelo cantos dos olhos, a ‘porta’ cada vez mais escancarada, cada vez mais detalhes dele à mostra, cada vez mais difícil manter a sanidade a cada encontro. A coisa se diverte em me torturar. Ela sabe que eu quero mergulhar nas cores atrás dela, mas o medo não me deixa dar um passo. Não faz diferença: Percebo que ela insinua atravessar a porta a cada vez que aparece.
Aguentei poucos dias limpo. Voltei às drogas. Não faz diferença nenhuma mesmo. Sinto que falta pouco praquele braço esticado resolver me alcançar e me tocar. Calculo que dê pra ficar chapado mais duas vezes antes disso finalmente acontecer. Não consigo parar de usar a droga. Fora de cogitação. Quero ver aquelas cores uma última vez. Quantas vezes der. Esse é o tempo que me resta e é melhor gastar numa onda do que passar a pouca vida que me resta nesse mundo careta. Que seja. Que aquilo me leve porta afora. Ou adentro, sei lá. Pelo menos as cores do lado de lá são bem mais bonitas. A porta novamente se abre aos poucos e com uma voz viscosa, a coisa me chama para me tornar uma nova cor em seu mundo. Mal consigo sentir as lágrimas de satisfação rolando pelo meu rosto por conta da promessa de êxtase.
Eduardo Cruz (@eduardo_cruz80)
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