JUNKY, de William Burroughs, ou “O junkie mais influente da cutura pop”


“Aprendi a equação junk. Droga pesada não é um meio de aumentar o prazer de viver. Junk não é um barato. É um meio de vida.”

Quando Alan Moore escreveu o personagem Miracleman (ou Marvelman, se preferirem), ele levou o herói a situações às quais Superman, por exemplo, jamais foi exposto. O apogeu disso é exatamente na edição final do run de Moore, quando Miracleman institui uma utopia/ditadura super humana, remodelando o mundo e colocando-o nos trilhos de um futuro sem limites previamente definidos, a fim de extrapolar todas as potencialidades do ser humano. Tio Nietzsche ficaria orgulhoso. Ou absolutamente horrorizado. 
Entre as reformas radicais de todo o sistema estava, obviamente, a reformulação da economia, para que a distribuição de recursos fosse mais justa; a regeneração de todos os criminosos, reintegrando-os à sociedade; a erradicação de todo o armamento nuclear de todas as nações da Terra; o fim dos déspotas e suas ditaduras; a erradicação da fome, dos vícios e do dinheiro, e o mais inusitado e fascinante de tudo: o incentivo à exploração dos espaços interiores dos seres humanos. Pessoas foram incumbidas de mapear as imensidões interiores da mente humana, uma tarefa tão grandiosa e perigosa quanto a de um astronauta, e por isso, foram batizados popularmente na HQ de “Homens do Espaço”. Cidadãos que eram considerados párias da sociedade anteriormente; os viciados, nóias e junkies, foram os encarregados de explorar este vasto mundo interior, mapeando a psique humana. Tarefa hercúlea.

E se eu dissesse que existiram psiconautas/narconautas no mundo real? homens e mulheres que, através do consumo de substâncias químicas, olharam para o abismo interior que existe em todos nós e teceram relatos sob a influência dessas substâncias, nos presenteando com suas experiências, para sempre registradas em papel, oferecendo-nos assim um aspecto da natureza humana que muitos temem explorar. Charles Baudelaire é um dos mais notórios destes “Homens do Espaço”, com seu Paraísos Artificiais, onde ele relatava suas experiências com narcóticos. Também podemos considerar Hunter Thompson um Homem do Espaço, embora todos os seus relatos fossem acerca de nossa realidade objetiva. Em Medo e Delírio em Las Vegas (que já resenhamos AQUI!), Thompson explorou e fez digressões sobre o mundo exterior, porém alterado quimicamente, e portanto, o fez como um autêntico Homem do Espaço. E também temos William Burroughs, nossa atração principal da noite.

Quando se fala em Literatura Beat, pensamos automaticamente na trindade Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs, os maiores expoentes do gênero. Burroughs, mais velho, e mais culto – com uma graduação em Antropologia em Harvard – e refinado que Kerouac, Ginsberg e companhia, pode ser considerado o mentor do gênero. O texto de Burroughs, apesar de mais lacônico e pessimista que o dos outros beats, foi um dos nomes que ajudou a renovar a literatura norte americana no fim da década de 50/início de 60. Burroughs retrata seu mundo como um romance picaresco, sem atenuar os fatos e com doses, às vezes nada moderadas, de humor negro. Sua postura anárquica inclusive influenciou a contracultura nas décadas posteriores, dos hippies aos punks.


“”Por que o senhor precisa de entorpecentes, sr. Lee?” é a pergunta mais formulada pelos psiquiatras estúpidos. A resposta é: “Preciso de junk para levantar da cama de manhã, pra me barbear e tomar café. Preciso de junk pra me manter vivo.””
Burroughs tem fãs ilustres, que vão de Mick Jagger a Kurt Cobain, e foi imortalizado como um dos rostos na pequena multidão da capa de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, ao lado de Marilyn Monroe.


Burroughs tem fãs ilustres, que vão de Mick Jagger a Kurt Cobain, e foi imortalizado como um dos rostos na pequena multidão da capa de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, ao lado de Marilyn Monroe.

Junky é um relato de Burroughs sobre o período em que viveu como usuário de drogas e conviveu com figuras marginalizadas da época, um retrato do underground no início da década de 50. No livro, vemos os perrengues de Burroughs para continuar tendo seu barato diário, os vários tipos de viciados com quem conviveu, suas experiências como traficante pé de chinelo, que exercia para manter o próprio vício e suas tentativas de desintoxicação periódicas. Segundo sinopse da editora:


Cotidiano modorrento, um atestado de dispensa do serviço militar e alguns trambiques. Assim o narrador de Junky descreve sua vida antes das drogas. Nem mesmo as catástrofes da Segunda Guerra Mundial haviam sido merecedoras de sua atenção. Alguns miligramas de morfina causariam mais impacto. 
Mescla de confissão – William Burroughs foi dependente de narcóticos por catorze anos – e uma objetividade radical, marcada por uma narração veloz e sem espaço para reflexões psicológicas, o livro marcou a estreia do autor na literatura. 
Escrito em 1949, durante uma temporada de Burroughs no México, Junky discorre sobre experiências com morfina, heroína, cocaína, remédios controlados, maconha e tráfico de substâncias ilegais. Não obstante alguns percalços iniciais, que atrasaram a publicação em quatro anos, o livro resultou num sucesso editorial.
Nos Estados Unidos dos anos 1950, as drogas eram um demônio a ser combatido. Em Junky não há lugar para a vergonha, o arrependimento e muito menos a redenção, o que, na época, ia contra tudo o que se considerava útil no tocante à abordagem das drogas na literatura. Recheada de confissões de violência, homossexualismo e teorias extravagantes a respeito dos benefícios filosófico-espirituais da droga pesada, a narrativa causou choque. “Estou melhor de saúde agora, depois de ter tomado drogas pesadas em vários períodos da vida, do que estaria se nunca tivesse me viciado”, afirma o narrador ao se declarar dependente. 
O amigo Allen Ginsberg, que se autointitulava “agente” de Burroughs por ter convencido um editor de Nova York a publicar o material que uma fila de profissionais havia rejeitado, festeja na introdução do livro sua “atitude cultural revolucionária”. 
Décadas mais tarde, Junky permanece atual. Para além do fato de ter chocado uma época, sua força está na habilidade de Burroughs dar tratamento literário ao que chamou de um “estilo de vida”.

Esta edição, além de ser a versão integral, e não a primeira edição, que saiu cheia de cortes e censuras, conta com um prefácio de Allen Ginsberg, que foi de grande ajuda para que Junky visse a luz do dia: Ginsberg incentivou Burroughs a escrever estas memórias e fez as vezes de agente literário, conseguindo uma editora para publicar o livro do amigo. Sua abordagem, apesar do tema ácido, é a mais suave possível; Burroughs narra os fatos em tom confessional, sem julgamentos morais, humanizando assim essas figuras patéticas que, como disse Philip K. Dick no posfácio/dedicatória de seu livro Um Reflexo na Escuridão: “Se houve algum ‘pecado’, foi o fato de que essas pessoas quiseram continuar se divertindo para sempre, e elas foram punidas por isso. Entretanto, como eu digo, tenho a impressão de que, se foi isso mesmo, a punição foi grande demais (…)“.


“Suas veias tinham quase sumido; bateram em retirada pra perto dos ossos, onde se escondiam da agulha impaciente. Passou a usar as artérias por um tempo, mais profundas e difíceis de atingir que as veias. Para isso, muniu-se de agulhas especiais, mais compridas. Fazia um rodízio de picos entre mãos, braços e pés. Com o tempo, as veias voltam a aparecer. Mesmo assim, Gains tinha de se aplicar sob a pele a metade das vezes, pois não podia esperar. Só fazia isso, porém, depois de meia hora de agonia, espetando, xuxando a carne; a todo instante precisava limpar o “espeto” entupido de sangue.”


“Quase pior que a fissura é a depressão que vem junto. Uma tarde, fechei os olhos e vi Nova York em ruínas. Centopeias e escorpiões gigantescos entravam e saíam dos bares, cafeterias e farmácias da rua 42. Crescia mato nas fendas e nos buracos do asfalto. Ninguém à vista.”


A vida imita a arte, que imita a vida, que imita a arte…


Oriundo de uma família abastada, Burroughs sempre viveu em um ambiente social e familiar repressivo, onde demonstrações de afeto entre familiares eram mal vistas, e escondeu sua orientação sexual até estar estabelecido em sua carreira literária. Além de Junky, onde ele relata suas experiências com o uso de diversas drogas, em outro livro, intitulado Queer (também publicado na coleção Má Companhia, da Companhia das Letras), Burroughs nos fala sobre uma crise de abstinência que seu pseudônimo, William Lee, tenta curar com álcool com e uma paixão obsessiva por outro homem. Então podemos inferir que tio Bill, levando em conta a moral rígida da época, é duplamente marginal.


“É possível a gente abstrair a maioria das dores – afecções nos dentes, olhos e genitais são mais resistentes – , de forma a experimentá-las como estímulos neutros. Mas da fissura de junk não há escapatória. A fissura de junk é o avesso do barato do junk. O barato do junk é você não poder passar sem ele. Junkies funcionam no tempo junk e no metabolismo junk. Ficam sujeitos ao clima junk. São aquecidos e refrescados pelo junk. O barato junky é ter de viver sob condições junkies. Não dá pra escapar da fissura de junk, do mesmo jeito que ninguém escapa do barato do junk depois de um pico.”

Junkybox:

O interessante a se observar em Bill Burroughs é como sua influência transitou da literatura para outros meios. Além de pequenas participações em filmes como Drugstore Cowboy e Segredos e Paixões, Burroughs foi convidado a participar de diversos empreendimentos musicais. Como por exemplo:

  • Burroughs colaborou com a banda R.E.M. em uma nova versão da música Star Me Kitten, originalmente lançada no álbum Songs in the Key of X: Music From and Inspired By the X-Files

  • Burroughs trabalhou com Tom Waits e Robert Wilson na ópera The Black Rider: The Casting of the Magic Bullets, em 1990.

  • Kurt Cobain pediu que Burroughs gravasse a leitura de um de seus contos, The “priest” they called him, e enviasse pelo correio para ser musicado. O texto, originalmente publicado em uma coletânea de contos em 1973, contava uma história de desolação e vício em drogas. Dois meses depois, Cobain juntaria à voz de Burroughs os acordes dissonantes de sua guitarra.

https://vimeo.com/54689316

  • Burroughs também aparece no videoclipe Just One Fix, do grupo Ministry.

  • Em 1981 Burroughs gravou o álbum de spoken word intitulado You’re the Guy I Want To Share My Money With, com Laurie Anderson e John Giorno.

  • Burroughs também gravou a música Falling In Love Again, cantando-a em alemão (“Ich Bin Von Kopf Bis Fuss Auf Liebe Eingestellt”).
  • Burroughs faz uma pequena aparição no clipe de Last Night on Earth, do U2.

Junky pode ser considerado um clássico maldito, pela contundência do tema espinhoso que aborda. Incômodo, mas necessário, sua leitura também nos leva a concluir que desde a época em que foi publicado até os dias atuais pouco mudou com relação à política no trato aos viciados de drogas pesadas, e vemos como a história se repete ciclicamente até os dias atuais: as autoridades sempre se negaram a tratar a situação dos dependentes químicos como uma questão de saúde pública, ao invés disso preferindo abordá-la como uma questão de segurança pública. Enquanto isso, a ignorância e a marginalidade vão ceifando vidas que poderiam ter um rumo bem diferente, se não fosse pela visão carente de compaixão e empatia que permeia os gestores que insistimos em escolher para administrar nossa sociedade…


“Nunca me arrependi da minha experiência com drogas. Acho que estou melhor de saúde agora, depois de ter tomado drogas pesadas em vários períodos da vida, do que estaria se nunca tivesse me viciado. Quando se para de crescer, se morre. Um viciado nunca para de crescer. A maioria dos usuários costuma cortar a dependência periodicamente, o que envolve o encolhimento do organismo e a substituição da células dependentes da droga. Um usuário está em contínuo processo de encolhimento e crescimento no seu ciclo diário de carência e satisfação através da picada.”

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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