Genealogia Lovecraftiana #001: A BALADA DO BLACK TOM, de Victor Lavalle


“Através do portal, em meio às ruínas da cidade afundada, Malone percebeu a figura de enormes feições – um rosto, ou a distorção de um rosto. As partes superiores daquela face eram lisas como a cúpula de um crânio humano, mas embaixo dos olhos, o rosto pulsava e se enrodilhava entre tentáculos. As pálpebras do tamanho de velas desfraldadas permaneciam fechadas, felizmente, mas tremiam como se fossem abrir.”

Um assunto um tanto quanto batido mas inevitável de se abordar é o fato de a obra de H. P. Lovecraft possuir tons de racismo e xenofobia que podem ser (adequadamente) taxados como muito errados (nesses tempos atuais) em qualquer época. Talvez o cavalheiro de Providence, no período em que residiu em Brooklyn, Nova York, sendo um provinciano dono de uma personalidade bucólica, ficasse deveras incomodado com o caldeirão de diferentes povos e culturas que afluíam na cidade, imigrantes vindos de todas as partes do mundo. O preconceito pode ser percebido como bastante explícito em histórias comoHerbert West: ReanimadorO Chamado de CthulhuA RuaA Sombra de Innsmouth e O Horror em Red Hook, e mesmo levando-se em conta que Lovecraft agiu meramente como um homem de seu tempo, onde tais idéias eram veiculadas como ‘normais’, sua leitura é bastante controversa. Obviamente, revisões são necessárias, seja ela realizada na própria cabeça do leitor, seja em obras como A Balada do Black Tom.


Victor Lavalle

“- Carrego um inferno dentro de mim – rosnou Black Tom. – E quando descobri que ninguém tinha compaixão por mim, quis arrancar árvores, espalhar o caos e a destruição ao meu redor e depois me sentar e desfrutar da ruína.
 – Então, você é um monstro – comentou Malone.
 – Fizeram de mim um monstro.”

A Balada do Black Tom é uma releitura de O Horror em Red Hook, mas vista de outro ângulo, o dos supostos vilões da história de Lovecraft. Esse, digamos, ‘remix’ de O Horror em Red Hook funciona em dois níveis: como homenagem e como crítica à obra de Lovecraft, dando voz e imprimindo alguma humanidade aos párias e excluídos que são retratados como aberrações no conto original. Se, segundo alguns estudiosos, as criaturas indefiníveis presentes nas histórias de Lovecraft eram claramente uma representação de sua xenofobia e de seu racismo, em A Balada de Black Tom Lavalle mantém os monstros em segundo plano e escancara todo esse racismo em muitos momentos dolorosos, como, por exemplo, o destino do pai do protagonista, que é o estopim para a transformação do personagem principal. Se Donald Glover aponta a distopia que seu país se tornou para o povo negro no vídeo de This Is America, Lavalle utiliza sua própria história para sinalizar que estes monstros sempre estiveram por aí: a intolerância, o preconceito e o descaso não são novidade.

“- Agora, quanto você disse que o branco vai te pagar?
 – Quatrocentos dólares.
 – Tudo isso só pra tocar na festa dele? (…)
 – Foi o que ele disse.
Otis ergueu as mãos e as manteve separadas no ar o máximo que pôde.
 – Essa é a distância entre o que um homem branco diz a um preto e o que ele realmente quer dizer.”

Na história, acompanhamos a trajetória de Tommy Tester, um músico medíocre que vive de pequenos trambiques e sustenta seu pai Otis, impossibilitado de trabalhar. Em uma sociedade ainda mais desigual que a atual, com os negros tendo perspectivas de vida desalentadoras, quase nulas, Tommy sobrevive em meio às poucas oportunidades e ao preconceito brutal que sempre paira sobre sua existência. Após negociar um velho livro com uma estranha senhora, Tommy conhece Robert Suydam, um misterioso homem que o contrata para tocar violão em uma reunião particular em sua mansão. Após essa reunião, e após uma tragédia pessoal na vida de Tommy, ele é enredado nos bizarros planos de Suydam, que incluem acordar um “Rei adormecido que vive no fundo do mar”.E nós sabemos a quem ele se refere, certo…?

“Agora, não sei o que mais acrescentar à próxima parte, pois vou dizer que gostei do que vi. Certo? ela saiu, e o preto ficou parado lá, paciente como ele só, e então foi como se uma porta se abrisse. Veja o senhor, bem ali, onde o portão da casa funerária encosta na propriedade dela? alguma coisa se abriu bem ali. Digo que é uma porta, mas não era mesmo uma porta. Era como um buraco, ou um bolsão, e dentro do bolsão estava vazio, preto. Não sei o que mais dizer disso. Como o céu noturno, mas sem nenhuma estrela. E o tempo todo minha Elizabeth ficou gritando na cozinha.”

Esta edição conta também com o conto original de Lovecraft, como extra, e com uma tradução o mais fiel possível do texto original, ou sejE, a editora Morro Branco optou por não atenuar o texto, o que sempre é acertadíssimo, seja a obra qual for. Nesse caso em especial, era imprescindível que o teor politicamente incorreto fosse preservado, em contraste ao revisionismo de Lavalle. Incluir a história original no mesmo livro foi uma decisão acertada da editora, que assim entregou todos os subsídios que o leitor precisa para formular suas próprias conclusões a respeito da obra original e a história em questão. Quando vemos um trecho na história de Lavalle que parece tão preconceituoso quanto o original, imediatamente captamos sua crítica ao racismo embutido na prosa Lovecraftiana.


“Quem poderia culpar a mente de Malone por devastar a verdade? Robert Suydam, aquele arqui-inimigo – havia matado o senhor Howard e seis policiais, além de causar danos dolorosos a Malone. No entanto, como um sinal da natureza justa de Deus, o próprio lacaio preto de Suydam virou-se contra ele e cortou a garganta do mestre. Por mais horrível que fosse, não era essa a verdade? Os pretos simplesmente não são tão malignos, explicou o especialista. Sua simplicidade era seu dom e sua maldição.”

Racismo esse que, anos depois, ‘evoluiu’ para uma espécie de elitismo, um noção de predileção pela alta cultura anglo-saxônica, a única cultura refinada e sofisticada o suficiente para ser apreciada e reverenciada – segundo Lovecraft. Lavalle também se dá conta desta percepção que Lovecraft embutiu em sua obra em seus últimos anos de vida, tão errônea quanto a anterior, e sutilmente também comenta a respeito em sua história:

“Quem mais além de um homem nascido na riqueza e com educação poderia estar naturalmente preparado para liderar?”

Além do diálogo entre as duas obras, também existem easter eggs em A Balada do Black Tom, como essa singela homenagem abaixo, quando Lavalle insere o autor dento da releitura da obra. Adivinharam quem é???

“Um homem de Rhode Island, mas que vivia no Brooklyn com sua mulher, mostrou-se tão persistente que dois policiais foram enviados à sua casa para deixar claro que não era bem-vindo à Nova York. Talvez sua disposição fosse mais adequada a Providence. O homem saiu da cidade pouco depois, e nunca mais voltou.”

Por fim, pra quem se interessa por esse aspecto antropológico das histórias de Lovecraft, deixo aqui mais uma recomendação: O Horror Cósmico de HP Lovecraft – Teoria e Prática. O livro é baseado na tese do professor Daniel I. Dutra e é uma análise profunda da obra de Lovecraft e suas correspondências, e ajuda bastante a elucidar toda esta questão do racismo implícito em suas obras. Mais uma publicação magnífica da editora Clock Tower, os cultistas mais alucinados do território nacional. Assim que for devidamente lido, claro que a resenha vai integrar essa série que criamos aqui na Zona. Nossa seção Genealogia Lovecraftiana só vai abordar livros que tenham alguma relação com a  mitologia criada por Lovecraft, sejam eles obras que influenciaram o cosmicismo de Lovecraft ou homenagens de autores publicadas após sua morte. Material pra isso não falta, já que o Lovecas está longe de ser esquecido à medida que o tempo passa…

A história talvez não satisfaça ao leitor que está atrás de uma história do cânone Lovecraftiano cheia de fan service e grandes pirotecnias. Já o leitor que procura uma boa história de mistério/horror com comentários sociais incisivos vai curtir essa reinterpretação. A Balada do Black Tom não é (apenas) uma história dehorror cósmico, e sim uma revisão do passado recente. E Cthulhu sabe o quanto estamos precisando de revisões do passado…

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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