A claridade pálida de uma tela de smartphone invadia o cômodo escuro onde um ancião de aparência cadavérica se encontrava, e anunciava uma mensagem importante, já que todos os contatos daquela figura sinistra sabiam que era extremamente temerário perturbar a paz dele.
Eduardo Pereira foi amaldiçoado pelo vampirismo há quase meio milênio, e o que fez para sobreviver até aqui foi se adaptar à mudança dos tempos, e principalmente a reserva que tinha sobre sua imagem. Antes do fato trevoso em sua vida, ocorrido em um beco deserto nas ruas de Lisboa, exercia a profissão de comerciante, e a eternidade e o gosto pelas operações comerciais e o acúmulo de metais, lhe deu dinheiro e poder, e até os dias de hoje no Brasil, onde reside, está à frente de um importante grupo dono de redes de supermercados.
Você deve estar se perguntando como ele manteve o império sem que fosse por intermédio de terceiros. Pois bem, ele conseguiu um complexo esquema que previa casamentos de fachadas (de vez em quando até reais), com nascimentos de filhos falsos, que em teoria eram educados na Europa, e que com a morte do pai, assumiam os negócios da família, sendo ele mesmo o pai e o filho, sucessivamente.
A mensagem que perturbava seu silêncio e introspecção estava escrita em letras garrafais: “SEÑOR PEREIRA, AS TÚAS CONTAS BANCÁRIAS ESTÁN BLOQUADAS. NECESITAMOS AO SEÑOR EN PERSOA AQUÍ EN PORTUGAL!!!!”
Se o sangue ainda corresse por suas veias e artérias, certamente fariam pressão invadindo seu cérebro, causando uma terrível enxaqueca. Como assim, em pleno século XXI ele teria que resolver um assunto financeiro presencialmente? Era um absurdo, um ultraje à sua inteligência! Mas o interlocutor no aplicativo de mensagem explicava a tal “prova de vida” exigida pelo sistema bancário português, e que seus advogados tentaram diversas procurações que tiveram resultado falho. Se não fosse a semana de uma importante transação que envolvia os valores de sua conta em Portugal, ele esperaria até o inverno, mas não era o caso.
Agora Eduardo pensava o quão ridículo era a situação de um vampiro ter de apresentar uma prova de vida. Para complicar a situação era inverno aqui no Brasil, e consequentemente verão em Portugal, o que traria um problema danado para que ele se locomovesse sem estar na presença do sol. Bem, alguém tinha que resolver o problema e só ele era capaz disso.
Primeiro o cálculo do horário. Um voo particular do Rio de Janeiro a Lisboa demoraria cerca de 9 horas, e o sol estava nascendo na cidade de São Sebastião por volta das 5:45, embarcando as 5:30, tomando as devidas precauções isolando seu compartimento da luz irradiada pelo astro, fazendo o piloto enrolar um pouco para a decolagem, conseguiria partir às 6:00. Ainda assim tinha um problemão em suas mãos sem vida, pois chegaria a Lisboa às 15:00. Sabia que algumas aeronaves faziam escala em Marrocos, ou na Espanha, mas isso precisaria ser combinado com a companhia aérea. Nesse momento se arrependeu de ter se desfeito de seu jato, pois o combinado seria internamente, apenas com seu piloto.
Nesse momento lembrou de seu piloto Antônio, que já estava acostumado com suas peculiaridades, afinal, já que alugaria um avião, o mínimo que a companhia poderia fazer era deixar que seu piloto o conduzisse. Após as conjecturas decidiu ligar para a empresa de táxi aéreo. O atendente muito solícito perguntou em que poderia ajudar o Sr. Pereira, e após sua necessidade o funcionário ofereceu um Heavy Jet Learjet a uma bagatela de 450 mil reais. Pereira, como salientado anteriormente, não tinha mais sangue correndo em suas veias, senão certamente esse momento sua cara estaria vermelha após o seu coração bombear efusivamente seu sangue após a informação do preço. O pior veio a seguir, pois feitas todas as considerações de todas as peculiaridades que desejava, como por exemplo: Que seu piloto conduzisse a aeronave, que o salão fosse isolado da cabine, que nenhuma claridade natural atingisse o salão (sob a desculpa de uma rara dermatite), etc, o funcionário informou que essas exigências só caberiam ao aluguel do Legacy 600, que aumentava o custo em 150 mil reais. Ora, não foi algo orgânico, mas o vampiro sentiu uma vertigem, e sob protestos de sua razão resolveu fechar o negócio.
Agora ligava para Antônio, seu antigo piloto, que estava fazendo corridas em carros de aplicativo desde que Pereira tinha o dispensado, mas não havia espaço para mágoas, e um extra é um extra. Com o piloto foi conversado sobre as horas de voo, a possível escala em Marrocos, uma possível demora para abastecimento e uma partida tardia de modo que o avião chegasse em Portugal próximo das 21:00, quando finalmente a bola de fogo teria se escondido. O piloto cobrou pelo serviço exorbitantes 50 mil reais, é claro que contando o suborno aos agentes da imigração em Marrocos e a ocupação do pátio de forma irregular por horas até que fosse seguro decolar e pousar em Portugal. Pereira achou caro, mas Antônio era de confiança.
Dois dias depois a operação foi posta em prática. Às 4:40 da matina Eduardo Pereira se levantava de uma robusta cadeira, saia pela porta de seu imponente apartamento em frente a Lagoa Rodrigo de Freitas, descia a garagem onde seu motorista estava à espera. Abriu a porta traseira de seu A200, e sentou-se. O carro partiu, com a perícia e o conhecimento das ruas do Rio, o motorista estava em poucos minutos adentrando a linha Vermelha. Marcava 5:10 no Bulova de Eduardo, tudo estava ocorrendo bem, se não fosse a um acidente na altura da Ilha do Governador, envolvendo um ônibus da Linha CANDELÁRIA X VILAR DOS TELES, que tinha perdido o controle e tombado no meio da pista. Os minutos passavam e já eram 5:30 quando resolveu remarcar a operação para o dia seguinte.
Estava amanhecendo, mas Eduardo estava preparado para esses incidentes. O motorista fechou uma divisória retrátil entre ele o passageiro e os vidros de trás eram protegidos com Blackout. Era esperar o trânsito melhorar e voltar pra casa. O carro do vampiro estava parado na altura da maré quando uma agitação anunciava um arrastão, quando escutou um estampido de um pedregulho deixando o vidro de sua janela em frangalhos. Foi o tempo de gritar “PUTAQUEOPARIU!” e desintegrar em seguida.
(Jessé Ofício do Amor)
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