DUNA, de Frank Herbert, ou “Viajando sem se mover”


“Eu não temerei.
O medo é o assassino da mente.
O medo é a morte pequena
que traz a total obliteração.
Eu enfrentarei meu medo.
Permitirei que ele passe sobre mim
e através de mim.
E quando houver passado
voltarei meu olhar interior
para ver sua trilha.
Para onde o medo se foi,
não haverá nada.
Só eu restarei.”

Litania do Medo
Ordem das Bene Gesserit

Então suponha que você já leu a trilogia de O Senhor dos Anéis, os sete livros do Harry Potter, os cinco da saga do Guia do Mochileiro das Galáxias, e também seguiu nossas sugestões da Trilogia Robótica e da Saga da Fundação, ambas de Isaac Asimov. Além disso, também já passou pela trilogia Neuromancer / Count Zero / Mona Lisa Overdrive, de William Gibson, e já leu até a saga Crepúsculo (Ei amiguinhos, não estou aqui pra julgar! :>))))), e passado, depois de terminar cada um desses, por aquele período de abstinência em que a gente se sente meio viúvo(a)/órfã(o) depois que termina um tour prolongado por um universo ficcional, e agora está se perguntando com qual grande saga literária vai se comprometer a seguir. A sugestão da vez aqui na Zona Negativa é Duna, de Frank Herbert. 

Frank Hebert

Publicado em 1965, Duna é um clássico da ficção científica que retrata um futuro distante governado por um único imperador, Shaddam IV. Em uma espécie de feudalismo futurista, o imperador possui várias casas de nobres subordinadas a ele, e estas casas governam sistemas planetários. Mas apesar de sua história situada no futuro, vemos em Duna um retrofuturismo diferente, onde todos os avanços tecnológicos são biológicos/genéticos ou analógicos. Isso mesmo, não há computadores ou robôs, uma vez que em um passado distante, a humanidade padeceu à tão famosa revolução das máquinas (que se aproxima a qualquer momento!), e após este incidente, máquinas que suplantem a capacidade de raciocínio humano foram banidas. Algumas disciplinas e ordens que visam o desenvolvimento do potencial humano, como os Mentats, homens treinados para utilizar suas mentes como computadores, e as Bene Gesserit, uma ordem matriarcal que lembra um cruzamento entre cavaleiros Jedi e freiras católicas, especializadas em dons psíquicos, como detectar mentiras, influenciar vontades, dentre outras técnicas, desempenham um papel importante nesta estrutura política sem computadores e inteligências artificiais. 

Neste universo sem máquinas capazes de realizar cálculos complexos, como é possível navegar por entre as estrelas? Graças à especiaria, também conhecida como Melange. Este é o grande trunfo do império, e a base de toda a economia neste universo se deve à extração/refinamento/comércio da especiaria. O Melange concede benefícios fabulosos a quem o consome: amplia a percepção, prolonga a vida, permite a seu usuário visualizar o futuro imediato, possibilita certo grau de telepatia, possibilita viagens espaciais sem o auxílio de computadores de navegação, entre muitos outros benefícios. O único porém é que esta substância – da qual muito pouco se conhece a respeito da real procedência – existe em um único planeta do universo: o desértico Arrakis, também conhecido como Duna. O planeta sofre com a escassez extrema de água, além de ser infestado de gigantescos vermes do deserto que atacam qualquer coisa que produza vibrações no solo. Devido a estas condições o Melange é muito raro e muito caro. Logo, quem controla Arrakis, controla o Melange. E quem controla o Melange, controla o universo!

Descortinado esse cenário, acompanhamos Paul, o jovem herdeiro da casa dos Atreides. Seu pai, O Duque Leto Atreides é ordenado pelo imperador a abandonar seu planeta natal, Caladan, e se mudar para Duna. A partir desse momento a casa Atreides é a responsável pela extração de especiaria no planeta, anteriormente administrado pelos Harkonnen, casa rival dos Atreides. Obviamente a transição de poder dá errado, e após eventos catastróficos, Paul e sua mãe, Lady Jessica – consorte do Duque Leto e que também é uma sacerdotisa Bene Gesserit – são obrigados a fugir para o deserto. Lá, Paul e Lady Jessica são acolhidos pelos Fremen, o povo nativo de Arrakis, arredios e desconfiados, um povo com uma cultura erigida em torno de um conceito: a escassez de água. Os Fremen desenvolveram toda a sua tecnologia com o intuito de extrair água de fontes aparentemente impossíveis, como os dejetos de seus próprios corpos, o orvalho da madrugada e até de seus mortos! Para eles, a água é ainda mais valiosa do que a especiaria. E é entre os Fremen que Paul amadurece, desenvolve seus dons através do uso do Melange e trama sua vingança contra os Harkonnen, e por extensão, contra todo o império…

O trajestilador, a vestimenta que recicla a água do próprio corpo
Fremen, o povo casca grossa do planeta deserto.
Design de conceito dos personagens, de um dos vários projetos de adaptação que não saíram do papel.

Agora, junte todos esses elementos políticos, sociais, culturais, filosóficos e religiosos dentro desse barril de pólvora que é o planeta Arrakis, adicione todas essas variáveis causadoras de tensão, como as maquinações escusas do imperador, a guerra pelo controle do Melange, as conspirações vindas de todos os lados e já dá pra começar a calcular a proporção da trama. Tão eletrizante quanto Fundação no que tange às relações políticas, mas as comparações terminam por aí. Universos diferentes, mas a mesma natureza humana, fazendo cagadas universo afora.

A editora Aleph, uma das mais proeminentes no nicho de ficção científica por aqui lançou anteriormente três dos seis livros da saga de Herbert, todos em brochura. Entretanto esse ano decidiram republicar novamente a partir do primeiro livro em uma edição ainda mais bonita do que a anterior, que conta ainda com uma pequena introdução escrita por Neil Gaiman, em capa dura. Uma segunda chance pra quem perdeu a tiragem anterior, como o meu caso rs. Até o momento desse post já se encontram disponíveis nas livrarias Duna e Messias de Duna nesta nova padronização.

A imponente nova edição de Duna, da editora Aleph!
:)))

Nos anos 70, o produtor Michel Seydoux adquiriu os direitos de adaptação de Duna e prontamente tratou de colocar o projeto nas mãos do diretor chileno Alejandro Jodorowsky, pai dos midnight movies, conhecido por El TopoThe Holy MountainFando y LisSanta Sangre…. Jodo logo pirou forte, como é de seu costume, e torrou boa parte do orçamento com drogas contratando artistas para tranpôr os conceitos grandiosos do livro para o filme, gente do calibre de H. R. GigerChris Foss e Moebius, entre outros monstros. 

Pôster do melhor filme que jamais existiu.

Jodorowsky concebeu seu Duna como um filme de 14 horas de duração, que teria trilha sonora composta por Tangerine Dream, Pink Floyd, Magma e outros músicos conceituados. O elenco também era fabuloso: nomes como Orson Welles, Udo Kier, David Carradine, Mick Jagger, Salvador Dali – no papel de Imperador do universo, e que exigiu um cachê de US$100.000,00 por minuto de aparição em tela!!! – e o próprio filho do Jodo, Brontis Jodorowsky no papel de Paul Atreides, foram escalados para o filme, que nunca chegou a sair do papel porque acabou la plata. O filme era, nas palavras do próprio Jodorowsky, uma livre adaptação da história de Herbert, uma vez que ele não havia lido o livro na época, e possivelmente nestes moldes seria tão bem sucedido quanto as adaptações posteriores, com uma proposta assim tão diferente do cinema comercial a que o grande público foi aculturado, ou sejE: existindo ou não, o Duna do Jodorowsky provavelmente também iria afundar. 

Jodorowsky’s Dune, o documentário.

Pelo menos a experiência serviu pra inspirar Jodorowsky a criar uma das maiores histórias em quadrinhos já produzida, ao lado do artista Juan Gimenez: A Saga dos Metabarões (completa aqui), mas isso é assunto pra outro post…

Meu primeiro contato com Duna foi ainda garoto: não sei ao certo quantas vezes assisti àquele filme dirigido por David Lynch, ou melhor, Alan Smithee, pseudônimo usado por diretores em Hollywood que preferem permanecer incógnitos, evitando que sua filmografia seja associada a certos trabalhos. Apesar do orçamento gigantesco e do elenco cheio de nomes respeitabilíssimos como Max Von SydowPatrick StewartJurgen Prochnow e até o John Constantine Sting, o filme afundou nas bilheterias e foi massacrado pela crítica.  Não considero esta adaptação tão terrível quanto Lynch e o resto do mundo; na pior das hipóteses o filme serviu para que minha leitura do livro não fosse tão confusa, uma vez que eu já  estava familiarizado com todos aqueles conceitos há anos, gastando a fita VHS da locadora aqui do bairro. Claro que a adaptação deixa a desejar, cheia de momentos confusos e mal estruturada, além de vários efeitos especiais que podem ser considerados vagabundos, dado o orçamento do filme, entre outros defeitos, mas tenho um certo apreço sentimental por essa adaptação mesmo assim hehehe.

Trailer de Duna. Não é o Lynch que você conhece hehehe
Pôster promocional do filme.

Em 2000, mais uma adaptação, dessa vez pelo canal Sci-Fi. Essa adaptação foi produzida em forma de mini série em três partes, que engloba os acontecimentos do primeiro livro. Se é boa? sinceramente, nunca terminei de assistir, mas é a mais elogiada das adaptações pelas internetes afora. Vou deixar o link da mini série completa aí embaixo, se vocês tiverem coragem e cinco horas pra gastar.

https://www.youtube.com/watch?v=BL5FRUPP8PU
Mini série completa e legendada.

Por fim, notícias recentes já apontam o diretor Denis Villeneuve, diretor de A Chegada e o (desnecessário?) Blade Runner 2049 como o diretor de uma nova tentativa de adaptação do livro de Herbert. Vamos ver no que vai dar dessa vez…

Arte conceitual de Chris Foss para a adaptação de Jodorowsky, nunca realizada.

Apesar das grandes diferenças entre as tramas, uma coisa que Duna tem em comum com a saga Fundação é a capacidade de penetrar tão profundamente na cultura pop, a ponto de vermos sua influência onde menos se espera, como por exemplo, no terceiro disco do grupo Jamiroquai, que faz uma referência à viagem interestelar utilizando o Melange, na faixa título Travelling Without Moving


Ou ainda: As bandas Harkonnen…

… e Vladimir Harkonnen! 

Eu pediria pra não confundirem as duas aqui, mas eles não facilitaram, né? Eu pessoalmente, prefiro a Harkonnen rs…

Se eu preciso explicar a referência aqui? Não, né!
Os vermes de areia da cultura pop que você conhece e respeita…

Duna também foi adaptado oficialmente em pelo menos cinco ocasiões para videogame (sem contar as modificações feitas por fãs!), dentre elas destaco Dune – The Battle for Arrakis. Passei horas e horas em meu emulador de Mega Drive tentando manter minha refinaria de Melange longe das mãos gananciosas daqueles malditos Harkonnens!! Nesse link dá pra jogar online, se vocês ficaram  curiosos com o potencial viciante desse jogo de estratégia. Apesar dos gráficos precários (o jogo é de 1992!), a ação e dificuldade de Dune – The Battle for Arrakis cativam o jogador até o final! Isto é, caso vocês consigam terminar hehehe.

Um pequeno gameplay de Dune – The Battle for Arrakis

Também dá pra se aventurar a jogar no universo de Duna em forma de card games e board games, qualquer que seja a sua praia, estando com o inglês em dia e algum $$$ para garimpar no ebay. Nos anos 90 a produtora Last Unicorn Games desenvolveu um RPG baseado no universo de Duna, mas por uma questão legal relacionada a licenciamento, o jogo teve uma única tiragem e nunca mais foi relançado, e hoje alcança preços absurdos no ebay. Mais detalhes sobre essa treta aqui.

O raro (e caro!) RPG de Duna jamais relançado...

Duna é uma rara mescla perfeita entre ficção científica e fantasia, uma obra que flerta de forma primorosa com a filosofia, política, religião e ecologia sem se tornar maçante em momento algum. Uma iguaria única que eu recomendo com força e sem medo! E se ainda assim bater um receio quanto a se vale a pena ou não se perder nas quase 700 páginas do primeiro volume dessa saga incrível, volte até o topo desse texto e recitemos juntos a litania contra o medo. Agora siga em frente e não adie mais sua viagem a Arrakis, mas cuidado onde pisa, ou os vermes da areia vão te engolir! 

Eu volto na resenha da sequência, Messias de Duna. Até lá!

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

2 comentários em “DUNA, de Frank Herbert, ou “Viajando sem se mover””

  1. Boa dissecação desse clássico e profundo sci-fi, também considero bom o filme de 84, mesmo com as ideias de Lynch sendo cortadas e olhando o pouco de extras pela internet, vê-se o potencial para uma grande adaptação.

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