FUCK YEAH! Após bastante tempo sem um bom livro novo do cultuado Chuck Palahniuk lançado no Brasil (Na-nã-não, Maldita, Condenada e Clímax não contam como bons livros do autor rs), finalmente a editora Leya soltou um material promissor de um dos nossos grandes favoritos aqui na Zona Negativa (apesar doMaldita, Condenada e Clímax heheheheh). Invente Alguma Coisa, de 2015, é uma coletânea de contos do autor, com toda aquela bile mega cáustica expurgando das páginas e com a mira sempre apontada para as patologias geradas pela sociedade de consumo, para as relações entre pessoas disfuncionais, para nossa realidade, que já alcançou um grau distópico de absurdos, tudo isso em histórias com muito sarcasmo, escatologia sem pena de qualquer sensibilidade que o leitor possa ter, humor negro da pesada e não raro com muitas passagens contendo detalhes um tanto gráficos demais para o público sensível e todas de uma intensidade perturbadora. Sim, ler um livro desse cara é uma experiência que marca o leitor de forma indelével. Acham exagero meu??? Pois perguntem aos milhares de malucos que participam ou já participaram de algum clube da luta clandestino heheheheheh…
O escritor Tom Spanbauer, com quem Palahniuk aprendeu seu ofício de escritor em oficinas literárias, afirma que o tamanho ideal de um conto é de cerca de cinco a seis páginas. Claro que isso pode variar muito, de acordo com o desenvolvimento e o rumo a ser dado ao conto, e como o autor trabalha as nuances, narrativas, etc. Tem gente que precisa de regras estritas em tudo para viver, outros, nem tanto. Cagação de regras à parte, dá pra concordar que, quando bem executado, um conto pode ser muito mais impactante e “bem no alvo” do que um calhamaço de 600 páginas. SE bem executado. O que nem sempre é o caso, e até mesmo Palahniuk pode derrapar, e muito, nessa execução.
Invente Alguma Coisa não é o primeiro livro de contos do autor. Seu primeiro livro de contos foi Assombro(que já resenhamos AQUI), uma interessante experiência onde ele cria diversas vozes em torno de um tema central. Uma antologia recheada de um punhado de pseudônimos, cada um com o seu tom, e todos unidos por algo em comum: A prosa dodói do tio Chuck. Ali o leitor pode sentir o punch de uma história curta do autor e se preparar para possíveis traumas decorrentes da leitura de um conto como Tripas, por exemplo, história que ficou famosa por fazer alguns americanos desmaiarem em sessões de leitura em livrarias durante a turnê de divulgação de Assombro. Já a proposta de Invente Alguma Coisa é mais solta: O livro é composto por vinte e três contos, a maioria sem ligação entre si, alguns publicados previamente na Internet ou em revistas literárias, antologias e coletâneas, mas claro, todos sem perder de vista a veia da Ficção Transgressional com a qual estamos tão familiarizados.
Os contos que integram Invente Alguma Coisa são:
Toc-Toc – Um jovem, levado pela máxima do senso comum “Rir é o melhor remédio” tenta salvar seu pai doente terminal com o repertório de piadas do próprio velho. Repertório esse extremamente tóxico, recheado de piadas politicamente incorretas, sexistas, xenófobas e ofensivas em geral, numa tentativa desesperada de cura através de humor doentio. Um conto sobre o politicamente incorreto acompanhado de uma descida em espiral rumo à demência. Bom aquecimento.
Eleanor – A história de um redneck que ganha uma bolada no seguro e se muda com sua pitbull, a tal Eleanor, para a Califórnia. Sério, não acontece lá muita coisa além disso, e até mesmo uma tentativa de assassinato não esquenta as coisas. Conto beeeeem fraquinho.
Como a macaca se casou, comprou casa e encontrou a felicidade em Orlando – Uma fábula contemporânea, onde apesar dos protagonistas todos serem retratados como animais, mostra uma situação bem humana: A macaca, uma exímia vendedora, enfrenta o desafio de sua vida ao ter que promover um produto impossível de ser consumido. Dá pra reconhecer a marca do autor, mas, sei lá, falta alguma coisa. Talvez eu tenha ficado (mal) acostumado demais às revelações impactantes no ato final, ou aos personagens estranhos. Esse conto parece alguém tentando imitar a prosa de Palahniuk.
Zumbis – A nova moda entre a garotada inteligente, de futuro promissor e descolada é fazer downgrade de QI. Pra quê viver num mundo tão complicado, com guerras, fome, doenças, desespero? É melhor “ser e não ser ao mesmo tempo”. Como? Muito simples: Pegue um desfibrilador cardíaco, cole um eletrodo de cada lado da testa e ZAP! Eletrolobotomia caseira. Adeus problemas! Esse é o novo hype da garotada. Um conto sobre alienação juvenil e o medo de amadurecer.
Perdedor – Uma fraternidade universitária possui uma estranha tradição: Chapados de LSD, os estudantes competem em um game show de auditório na TV. Acompanhamos um desses calouros na disputa para adivinhar o preço de itens comuns de supermercado, enquanto o ácido o faz repensar sua vida durante a gravação do programa. Será que vai dar bad? Bom conto, que evoca uma reflexão sobre a inutilidade do entretenimento de massas.
O garotão do sultão – Aaaaaaaaaaahhhhhhh, agora achei o Palahniuk aqui! Um fazendeiro, após a morte do cavalo da filha, resolve comprar um animal substituto, só não sabe o que novo equino tem um passado negro… na indústria pornô! Aqui é Palahniuk de raiz, com tudo que tem direito: A construção lenta e envolvente, os detalhes escabrosos que deixam o leitor de queixo caído, a surpresa no final, o comentário ácido sobre a sociedade… check, check, check!
Romance – Um rapaz gordinho e nada atrativo, após levar um pé na bunda de sua namorada, conhece uma menina atraente e muito, digamos, intensa, impulsiva e estranha. Contrariando todas as expectativas, os dois se envolvem romanticamente, apesar das advertências dos amigos dele. Todos acham que há alguma coisa errada com a mulher perfeita que ele arrumou, e que pode ser mais sério que todo o álcool e drogas que a moça consome. Aqui Palahniuk subiu o nível. Sabe aqueles memes no estilo “quem rir vai pro inferno”? Pois é, quem ler este conto aqui também vai, direto e sem escalas!
Canibal – Um conto sobre jovens colegiais e seu preconceito estudantil de segmentar pessoas em grupos de acordo com sua popularidade, e os segredos sórdidos que os jovens “perfeitos” tentam manter escondidos no armário. Existe uma cena escatológica neste conto envolvendo uma sessão de sexo oral um tanto…. sangrenta. A construção e desenrolar da cena até que lembra o conto Tripas, mas não tão inspirado quanto. Bem morno.
Por que o Coiote nunca tinha dinheiro para o parquímetro? – Mais uma fábula. Aqui, o Coiote, que vive em um bairro barra pesada e trabalha em um subemprego para sustentar a família que ele não desejava ter formado, se vê às voltas com um dilema extra conjugal com a Flamingo, que se prostitui em sua vizinhança.
Fênix – Uma mãe, longe de casa a negócios, surta pelo telefone com o marido e a filha pequena. Bom suspense, desenvolvimento ok, conclusão ok… e pouco original para o padrão Palahniuk. Um conto de Chuck Palahniuk que soa mais como outro escritor querendo emular Chuck Palahniuk…
Fatos da vida – Um pai explica a seu filho aquela perguntinha que constrange a maioria dos pais: “Como eu nasci?“. Só que esse pai em especial não se faz de envergonhado e conta com excesso de detalhes como foi que papai e mamãe fizeram a criança. Com todos os pormenores embaraçosos, em um drive in, e com direito a um acidente bizarro e muitas testemunhas. A história parece divertida, não? Mas na execução é apenas mais um conto onde Palahniuk foi no piloto automático. Pena…
Televendas – Uma história sobre vendas por telemarketing, racismo e xenofobia. Tio Chuck maneirou na bizarrice aqui, mas nem por isso é um conto ruim, muito pelo contrário. Tudo que os personagens falam aqui poderia ter saído da boca do seu vizinho, ou de um parente seu, e isso sim é aterrorizante…
O príncipe sapo – O conto abre singelamente com um casal de adolescentes dando uns malhos, ela já pronta pro sexo, enquanto ele, ainda vestido, insiste em falar com a menina sobre práticas de modificações genitais mundo afora – daquelas baseadas na nossa estranha realidade e que Palahniuk gosta de descrever de forma bem…. detalhada rs. Tudo para preparar a menina antes de baixar as calças e mostrar a ela seu próprio experimento caseiro de modificação genital, com o intuito de maximizar o prazer. E assim, do nada, caí no meio do conto de body horror mais grotesco que já li, com um final que evolui para sci-fi apocaliptico, como se viciados em krokodil escrevessem um roteiro de Rick & Morty. Se eu puder ser ainda mais descritivo, peguem a visão: Imaginem o braço do personagem Tetsuo na animação Akira.
Só que não é o braço, sacaram? Só esse conto aqui já vale o peso do livro em ouro, crianças. Surpreendente e perturbador ao extremo! Chamem Takashi Miike ou Shinya Tsukamoto para dirigir a adaptação disso! Palahniuk em sua melhor forma. Melhor conto do livro, e ouso dizer, um dos melhores do autor!
Fumaça – Aqui vemos Palahniuk brincando com uma idéia recorrente já há algum tempo em sua obra, como pudemos ver em Clube da Luta 2: As palavras (e por conseguinte as idéias) são contagiosas. Sim, são organismos que querem habitar em outros organismos: Nós! Elas estão vivendo dentro de nós nesse exato momento e sempre que abrimos a boca, um mero “bom dia” é um vetor de contágio! Por isso não escreva. Não leia. Não fale. Por precaução, melhor nem pensar. Comecem agora!
Tocha – Um assassinato ocorrido em um festival de cultura alternativa estilo Burning Man é investigado por um monitor e mediador de conflitos do evento. O homem, que é um Zé-ninguém no mundo lá fora, mas uma prestigiada figura de autoridade dentro do festival, descobre que o assassino está mais perto do que ele imaginava e que pode não haver apenas uma vítima… Uma história de mistério acompanhada de um interessante comentário a respeito destes festivais de cultura alternativa e as propostas de se reimaginar o mundo que ocorrem ali dentro.
Liturgia – O conto é estruturado como se fosse um relatório de uma companhia de seguros ou de uma associação de moradores, e versa sobre os eventos ocorridos em um condomínio de luxo envolvendo um misterioso material orgânico de origem humana, que desencavado por animais selvagens e por bichos de estimação dos moradores, acaba espalhado por toda parte, gerando transtornos para a vizinhança, não habituada a situações desconfortáveis e bizarras como esta. A idéia é a cara do autor, mas o conto é mais um daqueles em que faltou alguma coisa…
Por que o Porco-da-terra nunca chegou à lua? – O Coelho, Porco-da-terra e o Galo, cansados do bullying a que são repetidamente submetidos, resolvem adotar uma tática: Se tornar alunos que não irão mais destacar nos estudos. Quanto mais burro e indolente, melhor! Só que o plano dá terrivelmente errado…
Mais uma das fábulas de Chuck, essa possui uma breve ligação com o conto Como a macaca se casou, comprou casa e encontrou a felicidade em Orlando, apenas um easter egg que situa as fábulas em um mesmo universo. Bom conto, com um final triste.
Pega – Uma história de fantasmas muito da sem graça que começa do nada e não vai a lugar nenhum. Isso é realmente um conto do Palahniuk ou entrou errado nesse livro? Sério, isso parece um rascunho inacabado…
Expedição – Aí vc pega o livro novo do Palahniuk e vai direto pro tal alardeado conto ambientado no universo de Clube da Luta, e mais: Que o próprio Tyler Durden daria as caras! Não sei se o que vou falar a seguir vai animar ou desesperar vocês: Expedição está mais para Clube da Luta 2. Ambientado na Hamburgo do início do século XX, o protagonista é um trabalhador com uma vida tediosa que empreende expedições à zona do baixo meretrício, investigando e catalogando as desventuras da humanidade, as histórias dos quebrados e abandonados. Até que um dia conhece um estranho que o leva a uma jornada de autoconhecimento e ao olho do furacão de uma crise geracional. Um conto cheio de camadas e pleno de simbologias do início ao fim, que aborda o abandono paterno, algo que hoje em dia está em voga chamar de “aborto masculino”.
Mr. Elegante – Sabem aqueles contos que já se tornaram uma marca inconfundível do Palahniuk? Histórias abordando usos e costumes que jamais poderíamos imaginar para profissões e atividades incomuns? Dessa vez acompanhamos a dura rotina dos strippers masculinos: Os truques, segredos e armadilhas do ofício narrados pelo protagonista que, como em toda história do Palahniuk que se preze, sofre de uma estranha condição médica e por conta dela acaba por criar uma situação bizarra, à qual fica eternamente acorrentado. Conto divertido, se você for levar em conta o humor dodói do autor heheheheh…
Túnel do amor – Nesse conto vemos um massoterapeuta que atende uma clientela muito específica, ainda que efêmera: O profissional é responsável por proporcionar conforto a doentes terminais, fazendo de qualquer eutanásia um spa relaxante! Palahniuk ainda dá uma de Stephen King e insere a já famosa história-dentro-da-história aqui. Bom conto, mas deixa uma impressão de que seria mais desenvolvido, e daí acaba!
Inclinações – Jovens são internados por seus pais em uma clínica a fim de terem sua “inversão sexual” corrigida. Sim, um conto de Palahniuk abordando a polêmica cura gay! Fui cheio de expectativas aqui, imaginando o quão corrosivo e esmagador Palahniuk seria nessas páginas, mas infelizmente tudo parece meio no piloto automático: A construção dos personagens, as surpresas, a reviravolta, o obrigatório choque grotesco… Talvez se fosse um de seus primeiros trabalhos o impacto fosse maior, mas não há qualquer novidade ou reinvenção aqui, apenas uma fórmula, já conhecida do público, sendo (re)aplicada sem muita inspiração.
Como a judia salvou o natal – Um conto sobre um amigo oculto entre colegas de uma loja de departamentos que evolui para preconceito, paranóia e troca de presentes ofensivos. Mais um conto que poderia ter sido mais rico, mas que não cresceu muito…
E com esse lançamento a editora Leya dá mais um passo rumo a publicação de quase toda a bibliografia de Palahniuk por aqui na íntegra, faltando apenas os romances Rant (2007), Pigmy (2009), Tell-All (2010) eAdjustment Day (2018), ainda inéditos aqui, além de Cantiga de Ninar (2002), anteriormente publicado pela editora Rocco e que os fãs suplicam há anos por um reprint. A editora mantém o padrão das publicações anteriores do autor, em livros de capa cartão com um projeto gráfico enxuto e sem muitas das extravagâncias atuais, em que o acabamento luxuoso acaba supervalorizando um livro conteúdo questionável. A tradução fica por conta do onipresente Érico Assis. Esse cara não come nem dorme? Não é possível, ele tá em todas!!! rsrsrs.
Invente Alguma Coisa é bem irregular em termos de qualidade e, no decorrer de sua leitura, detectamos um certo desgaste na prosa de Palahniuk, dono de um texto único que conquistou uma base de fãs sólida desde sua estréia literária, mas que lamentavelmente em algumas histórias desse livro, consegue parecer um cover de si mesmo. O livro de contos anterior, o supramencionado Assombro, consegue render muito mais, entreter muito mais, chocar muito mais, carregar metáforas mais cirurgicamente precisas e poderosas. Entretanto isso não tira o brilho das (pouquíssimas) histórias realmente boas contidas no Invente Alguma Coisa, as quais irão ressoar muito tempo nas paredes do seu crânio, entrando na mente como um soco. Quantos vocês aguentam?