“Havia sido assassinato, carnificina pura e simples – afinal, uma vez que tomáramos a arma antiaérea, não corríamos mais perigo algum. Parecia que os taurianos não faziam a mínima idéia do que era combate corpo a corpo. Nós simplesmente os arrebanhamos e matamos. Assim foi o primeiro encontro entre a humanidade e a outra espécie inteligente.”
A Guerra do Vietnã foi um dos conflitos que marcou a Guerra Fria, aquela velha disputa entre dois blocos ideológicos e que a gente achava que tinha acabado com a queda do Muro de Berlim; mas ao que parece, ainda tem muito comunista rondando por aí, embora não os vejamos. É, talvez sejam invisíveis. Olha que aterrorizante: COMUNISTAS INVISÍVEIS, acabando com a sociedade e a família tradicional brasileira!!!! Mas estou saindo dos trilhos aqui. Deixa eu me recompor, tomar meu rivotril e guardar meu pânico – justificadíssimo! – e começar de novo, taokei?
Então, voltando, por conta de velha cuestão questão ideológica Capitalismo x Comunismo, esse pequeno país no sudeste asiático foi palco para uma guerra que durou de 1959 a 1975. Com o país dividido entre o Vietnã do Norte e o Vietnã do Sul, os EUA se meteram participaram no conflito de 1965 a 1973. Imersos na selva, em meio à lama, insetos, doenças tropicais, armadilhas (a minha favorita é a do buraco oculto cheio de estacas de bambu besuntadas em fezes) e um pequeno exército muito bem organizado lutando com táticas de guerrilha, os norte-americanos tomaram uma surra. Após anos de pesadas baixas, manter as forças norte americanas no conflito tornou-se insustentável. A estimativa de vidas perdidas na Guerra do Vietnã varia de 1,5 milhão a 3 milhões de pessoas. Mais de 2,5 milhões de americanos serviram na guerra, dos quais 58 mil morreram. Dentre os sobreviventes, encontrava-se um jovem Joe William Haldeman, um soldado que voltou para casa após servir em um período de quatro anos, e como milhares de outros soldados, atormentado por todas a terríveis vivências de combate. Diferentemente da maioria dos sobreviventes dessa guerra, Haldeman exorcizou seus demônios da melhor maneira possível: Através da arte e suas possibilidades de cura e redenção.
De início, foi lamentável. Muitas pessoas, como Lucky e Marygay, que enlouqueceram com as memórias dos assassinatos sangrentos multiplicados centenas de vezes. Cortez ordenou a todos que tomássemos um sedativo, ou dois, se estivessem mais alterados. Tomei dois, mesmo sem ter recebido instruções específicas nesse sentido.
Após tudo aquilo, passei um longo período repetindo que não havia sido eu quem, tão alegremente, tinha retalhado aquelas criatura amedrontadas e em fuga. No século XX, estabeleceu-se para satisfação de todos, que “Eu estava apenas segundo ordens! Era uma desculpa adequada para condutas desumanas… Mas o que fazer quando as ordens vêm das profundezas do inconsciente, que nos governa como marionetes?
Segundo livro de Hadelman, Guerra Sem Fim é uma ficção científica com temática militar. O livro ganhou três dos mais importantes prêmios literários de melhor romance no gênero de Ficção Científica (Hugo, Nebula e Locus) e conta a história do soldado William Mandella (alter ego de Hadelman), que é convocado para as Forças Exploradoras das Nações Unidas, as FENU, para lutar em um conflito interplanetário contra uma espécie que a humanidade mal compreende, mas ainda assim decide travar uma guerra contra. Nada mais ‘humano’ que isso, não é mesmo? As FENU possuem naves que se deslocam próximo à velocidade da luz, para combate em sistemas planetários muito distantes. Porém, a relatividade cobra seu preço e uma viagem que subjetivamente dura meses para os soldados é sentida na Terra como uma passagem de décadas! Superpopulação, crime, escassez de recursos, homossexualidade sancionada pelo governo para fins de controle populacional… a sociedade mudou e William ficou para trás. Agora, completamente deslocado do mundo que conhecia e de sua época, sofrendo preconceito por sua heterossexualidade ‘anormal’ e com sua própria história se perdendo ao longo dos séculos, Mandella precisa se adaptar, ou ao menos continuar enxergando alguma motivação para continuar lutando. No fim das contas, tudo que lhe resta em todo o universo é esta guerra.
Eu sentia asco da raça humana, do exército, e estava horrorizado com a perspectiva de conviver comigo mesmo por mais outro século… Bem, havia sempre a opção da lavagem cerebral.
A princípio dá vontade de, só de ler a sinopse, sair logo comparando Guerra Sem Fim a Tropas Estelares. Quem lê os dois logo percebe como isso é equivocado: Enquanto o Tropas tinha uma visão pró-guerra, o livro de Hadelman, ideologicamente, segue o sentido oposto, levantando temas como a desumanização e alienação dos soldados.
Na real, todos os temas do livro estão bastante evidentes, não há simbolismos complexos a serem destrinchados aqui. Apesar de toda a ficção especulativa, vê-se claramente em cada página as questões que Hadelman presenciou e vivenciou no Vietnã: O isolamento, o abuso de drogas, o tempo desperdiçado, o conflito sem sentido, que parece nunca terminar… Além do simbolismo pontual, Guerra Sem Fim traz interessantes exercícios de futurologia: Mais do que especular apenas no campo da tecnologia, a história de Hadelman extrapola também no campo das relações humanas e no que poderiam se tornar no futuro, frente a problemas como superpopulação, mudanças culturais radicais e guerra. E não dá pra não se divertir nem que seja um pouquinho com a ironia do preconceito reverso a com a heterossexualidade de Mandella, vista como uma anomalia. Estar na ponta discriminada na equação do preconceito não é mole…
A história também surpreende pelo caráter progressista das forças armadas nesse futuro imaginado por Hadelman: Apesar da disciplina e rigidez permanecerem, bem como o sistema de hierarquia, as FENU permitem o uso recreativo de maconha (que hoje em dia nem é droga mais, que dirá no futuro 😂😂😂), relacionamento sexual nos alojamentos (hétero e homossexual) e até mesmo uso de barba são tolerados nas FENU. Mais um reflexo da própria vivência do autor na guerra. Existem muitos relatos de abuso de drogas entre as tropas americanas que serviram no Vietnã (anfetaminas, esteróides, heroína e até mesmo o explosivo C4 eram usados pra dar uma onda!). Isso e os massacres de civis vietnamitas (o mais conhecido foi o massacre de My Lai, em 1968), e o uso do terrível Agente Laranja, um composto químico jogado pelas tropas americanas no solo para destruir plantações agrícolas e desfolhar florestas usadas como esconderijo pelos inimigos, mas que acabou causando danos, má formação de crianças e contaminação do solo e da água, com efeitos que duram até hoje. Essas e outras barbaridades fizeram com que essa guerra fosse considerada menos ‘glamorosa’ pelos estudiosos que a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Se é que dá pra dizer isso de uma guerra…
– Você está ficando muito dura.
– Talvez… não. Apenas realista. Pressinto que teremos de enfrentar muito mais mortes e sofrimento.
– Eu não. Assim que chegarmos ao Portal estelar, sou um civil.
– Não tenha tanta certeza. – O velho argumento familiar. – Aqueles palhaços que nos alistaram por dois anos podem simplesmente transformá-los em quatro anos ou…
– Ou seis ou vinte ou o quanto durar. Mas não vão. Haveria um motim.
– Não sei. Se conseguiram nos condicionar a matar sob sugestão, podem nos condicionar a fazer praticamente qualquer coisa. Realistar-nos.
Isso me dava calafrios.
Essa edição da Aleph vem com um interessante prólogo escrito por John Scalzi – Autor de Guerra do Velho e As Brigadas Fantasma – onde ele divertidamente é obrigado a admitir como sua série Guerra do Velho bebe da fonte tanto de Heinlein, como – em maior proporção – de Hadelman. Se bem que ele disse não ter lido Guerra Sem Fim antes de escrever o seu Guerra do Velho. Tá bom então… Além disso, após o prólogo vemos uma introdução do próprio Hadelman explicando e contextualizando as partes polêmicas de sua história, em específico a abordagem da homossexualidade na história. Parece desnecessário fazer isso em pleno século XXI, mas pra algumas pessoas, indecentes são os gays. Guerra pode, taokei?
Finalmente despertei em um compartimento normal. Estava preso por cintas e era alimentado por um tubo. Eletrodos com biossensores estavam conectados aqui e ali, mas não havia médicos por perto. A única pessoa na pequena sala era Marygay, dormindo na cama a meu lado. Seu braço estava amputado um pouco acima do cotovelo.
Não quis acordá-la. Apenas olhei para ela por um longo tempo e tentei definir meus sentimentos, procurando filtrar os efeitos das drogas de humor. Olhar para o que sobrara do seu braço não provocava em mim nem empatia nem repulsa. Tentei forçar uma reação, depois outra, mas nada acontecia. Era como se ela sempre tivesse sido daquela maneira. Eram as drogas, o condicionamento, o amor? Teria de esperar para ver.
A GUERRA DO VIETNÃ NO CINEMA
A percepção dessa guerra no imaginário norte americano, em especial na cultura pop – e mais especificamente no cinema – gerou boas obras, que enveredam por diferentes direções. De produções contundentes e realistas como Platoon, de Oliver Stone ou Nascido Para Matar, de Stanley Kubrick, o febril Apocalypse Now do Coppola (o Francis Ford, não o Caio! :>P) ou os delírios ultraconservadores onde um supersoldado sozinho ganha a guerra, como vemos em Braddock ou Rambo II (Filmes cheios de testosterona e recheados de cenas homoeróticas de homens musculosos em que vence quem tiver o maior objeto fálico em mãos).
MENÇÕES HONROSAS
A história mostra que as coisas foram um pouco diferentes, mas no cinema, John Rambo e Braddock, sozinhos, conseguiram vencer a Guerra do Vietnã sem muitas dificuldades. No fim das contas, o que determinou a derrota do exército dos EUA foi só uma questão de logística: Mandar as pessoas erradas pra fazer o trabalho. Todos aqueles soldados americanos morreram à toa (como em qualquer guerra que se preze) porque não mandaram um brucutu Ianque pra botar ordem na bagaça. O inconsciente artístico pintou diversas visões do conflito, dentre as quais, a mais perturbadora, na minha opinião, talvez seja Operação Dumbo, onde os americanos bonzinhos bancam (mais uma vez…) o branco salvador, mostrando que além de queimar mulheres e crianças com napalm eles também salvam elefantinhos em perigo dos comunistas.
Cativante e genial até o final, Guerra Sem Fim desce rápido e rasteiro, sutil e brutal como um grupamento de infantaria equipado com armaduras e lasers entrando à força na sua cabeça. A teoria da relatividade age sobre o livro fazendo com que a leitura flua muito rápido. Rápido até demais, e ao final, só resta se despedir de Mandella, esperando que aquele final tenha sido satisfatório, tanto para ele quanto para o leitor.