Ultimamente a atenção da galera tem se voltado demais, dentro da esfera pop, para dois pólos: H. P. Lovecraft e o Cyberpunk. Tanto um quanto o outro têm coisinhas promissoras anunciadas ainda para este ano, como a série Lovecraft County, da HBO, e o game Cyberpunk 2077 da desenvolvedora CD Projekt. Focando no Cyberpunk, percebemos que o conceito como o conhecemos hoje nasceu aos poucos, com elementos e obras surgindo aqui e ali, que agregadas como uma grande gambiarra para formar uma máquina maior e mais potente, tiveram essa penetração na cultura mainstream atual. Tem o Neuromancer (Que já analisamos AQUI) na literatura e Blade Runner no cinema (ocidental), ok. Mas e daí, pra onde se vai? Pra onde a gente olha se quiser ver outra peça-chave do Cyberpunk na cultura pop? Bom, pega na minha mão e vem comigo!
Na metade dos anos 80 o cinema japonês se encontrava em declínio. No país que já havia produzido diretores como Shuji Terayama, Akira Kurosawa e Masaki Kobayashi predominavam agora filmes eróticos softcore, isso vindo dos estúdios que não haviam falido. Era isso ou simplesmente servir de ponte para distribuir os filmes Hollywwodianos no país para não quebrar. Então oboviamente que o cinema independente não estava nada melhor. Esse ‘movimento’ de cinema Cyberpunk rompia com tudo que havia sido produzido antes no Japão, dando origem a algo com uma linguagem nova, uma estética peculiar e um resultado único. Talvez ainda assombrados pelos fantasmas da derrota na Segunda Guerra e as detonações de duas bombas nucleares, o imaginário pós apocalíptico e a tendência de repensar o futuro (e joga no caldeirão os fortes tabus sexuais arraigados, sempre!) se mesclaram na visão de alguns diretores, o que tornou a Terra do Sol Nascente um caldeirão único, onde esses elementos poderiam se combinar para que algo assim tão excêntrico e genial pudesse nascer.
O diretor Sogo Ishii é o pai dessa estética. A estética urbana suja, de tomadas noturnas, luzes frias, edifícios perfeitamente simétricos em travellings em alta velocidade, enfim, toda uma linguagem visual que coloca o cenário urbano em primeiro plano, sempre contracenando com os protagonistas. Seus longas Crazy Thunder Road (1980) e Burst City (1982) já traziam todos esses elementos em tramas futuristas distópicas envolvendo a subcultura punk e gangues de motoqueiros, coisa que inclusive é influência confessa de Katsuhiro Otomo na composição do clássico Akira (1988), que já dissecamos AQUI.
Segunda Onda
Ishii não criou acidentalmente esse movimento sozinho, sendo o responsável por lançar essas bases, preparando o terreno para uma segunda onda de cineastas. Esses sim, consolidariam o estilo como um ramo único no cinema de ficção científica. Com seu imaginário erótico fetichista, envolvendo látex, couro e BDSM (Olha o BDSM aí de novo!), uso e reprodução de equipamentos lo-fi em um ambiente industrial, envolvendo temas recorrentes como o protagonista passando por uma mutação ou transformação monstruosa, além de sequências visuais carregadas de elementos abstratos. Mutação, tecnologia, desumanização e fetiches sexuais bizarros, esses seriam os pilares do Cinema Cyberpunk Japonês.
Em 1986, o então estudante de cinema Shinya Tsukamoto realiza The Phantom of Regular Size, um curta metragem que já se mostrava carregado dessa estética em desenvolvimento. Porém, a bomba só cairia em 1989, com Tetsuo: The iron Man! Em glorioso preto e branco, lindo e granulado, abusando de muito experimentalismo porém sem um pentelhésimo da pretensão pomposa que se costuma ver em certos filmes independentes por aí e com uma trilha sonora que te pega pelas vísceras ribombando antes mesmo que a primeira imagem apareça na tela, Tetsuo conquistou o público de surpresa, ganhando o prêmio de melhor filme no FantaFestival de Roma em 1989, e reacendendo o interesse internacional pelo cinema japonês.
Tetsuo: The Iron Man é um dos melhores filmes de body horror já feitos e conta a história de um homem comum que começa misteriosamente a se transformar em uma máquina, agregando e desenvolvendo partes mecânicas de metal, até se tornar um monstro indescritível. Além do interesse internacional, Tetsuo oxigenou a indústria cinematográfica, inspirando novos diretores a surgirem e alimentando uma onda de cinema japonês que viria nos anos 90, que traria pérolas inovativas e delirantes como Tokyo Rampage (1998) e Ichi The Killer (2001), mas isso já é outro assunto…
Tetsuo: The Iron Man teve duas continuações: Tetsuo II: Body Hammer (1992), que trazia um pouco mais do mesmo e Tetsuo: The Bullet Man (2009), que não desce tão bem assim, apesar de melhor executado tecnicamente.
Eu sei, em termos de maquiagem e efeitos práticos tem momentos onde que parece que estamos assistindo a um episódio vagabundo de Changeman, Goggle Five ou qualquer tokusatsu dos anos 80, mas a trama passa bem longe dos seriados infantis que a gente assistia depois da escola. Com uma edição ultra veloz e uma sobrecarga sensorial a cada fotograma, Tsukamoto usa recursos como stop motion para emular o deslocamento dos atores a uma velocidade impossível, lhes enxerta na maquiagem metros e mais metros de cabos, fios, conectores, peças de rádios e TVs antigas e ferragens, ou os acopla a máquinas para realizar cenas como a do pênis-furadeira elétrica, por exemplo, o que mostra que os caras não estavam de brincadeira!
Outros Espécimes
Cabe aqui uma menção honrosa para o obscuro Death Powder (1986), de Shigeru Izumiya. Cronologicamente, o primeiro dessa nova leva cyberpunk pós Sogo Ishii, o longa conta a história de alguns cientistas que roubam um andróide.
Pinóquio do Sexo
E se eu dissesse que a vertente cinematográfica do Cyberpunk japonês também conta com outro diretor, esse ainda mais delirante e hiperativo que os próprios Tsukamoto e Ishii??? Shozin Fukui produziu os curta metragens Scourge of Blood (1984), – que tinha uma montagem e edição frenéticas numa história de perseguição em apenas três minutos de duração! -, Gerorisuto (1987), que só pode ser definido como cinema de guerrilha, e Catterpillar (1988), este último inclusive enquanto trabalhava como diretor assistente em Tetsuo, reutilizando alguns sets de Tsukamoto em seu próprio curta. Ao que parece, isso rendeu a Fukui a experiência necessária para a realização de um longa metragem.
O timing era perfeito. Quando Fukui lançou seu primeiro longa metragem, 964 Pinocchio (1991), o caminho já estava pavimentado para uma recepção calorosa, com um movimento – ainda que informal – já legitimado e fundamentado solidamente. O filme, que chegou a ser exibido no Festival de Cinema de Rotterdam, conta a história de um andróide usado como escravo sexual, que após começar a ter dificuldades para manter suas ereções, acaba sendo descartado por sua dona. Não sabemos ao certo seu grau de modificação além de o fato dele não possuir memórias e ser incapaz de se comunicar verbalmente.
Vagando pelas ruas, a máquina faz amizade com Himiko, uma menina sem teto mentalmente instável, que tenta ensiná-lo a falar. Paralelamente, a empresa que o fabricou começa a caçá-lo, a fim de recuperá-lo e destrui-lo. Quando a situação aperta, Pinocchio, como Himiko o batizou, tem uma epifania e se torna ciente de sua situação. Seu corpo passa por uma metamorfose e finalmente descobrimos o quanto ele foi modificado…
O filme seguinte de Fukui, Rubber’s Lover (1996), seria ainda mais insano e despirocado! Totalmente ambientado em um laboratório soturno conhecido como ‘A Unidade’ (possivelmente em referência à Unidade 731, uma unidade do exército japonês responsável por experimentos terríveis envolvendo seres humanos durante a Segunda Guerra Mundial), o filme tem um clima, digamos, cybernoir industrial, com uma atmosfera tensa, um senso de alarmismo crescente (o famoso “vai-dar-merda-no-final“) e muita violência gráfica, que pode ser uma experiência desconfortável ou desagradável para alguns espectadores, haja visto que em certos momentos o filme parece algo como um snuff movie de bom gosto, se é que algo assim pode existir.
Na tal Unidade, acompanhamos um grupo clandestino de cientistas conduzindo bizarros e cruéis experimentos em indivíduos sequestrados nas ruas que envolvem sadismo, tortura, BDSM (DE NOVO!), drogas alucinógenas, interfaces com computadores, privação sensorial, dentre outras perversidades. Invariavelmente as cobaias morrem de formas horríveis até que um último experimento traz consequências catastróficas de proporções enormes. Rubber’s Lover talvez seja o filme mais visualmente arrebatador e criativo de Fukui, quiçá de toda essa leva Cyberpunk, e parece ser também o canto do cisne desse ‘movimento’, encerrando um ciclo. Isto é, se não fosse por um nome das antigas retornando alguns anos depois para um último soco no estômago…
“Nosso amor pode destruir essa merda de mundo inteiro!“
Em 2001, titio Sogo Ishii volta com Electric Dragon 80000v, um longa metragem que era uma declaração de amor ao movimento que ele ajudara a conceber duas décadas antes. Em uma metrópole futurista, dois homens dotados de poderes elétricos se enfrentam em sequências de ação overpower com a já conhecida fotografia alucinada e edição surtada. O protagonista Dragon-Eye Morrison (Interpretado por Tadanobu Asano, o Wagner Moura japonês) vive em um depósito cheio de peças de metal, dorme preso a uma cama sem colchão e toca uma guitarra do jeito mais esporrento e distorcido possível. Até que surge o antagonista Thunderbolt Buddha, que parece saído de um dos filmes mais antigos de Ishii para desafiá-lo. E sim, a história é só isso. E é maneiro P A C A R A I O.
Electric Dragon 80000v faz questão de marcar toda a cartelinha do bingo Cyberpunk, e em seus 55 minutos quase sem trama ou diálogos somos arremessados, fotograma a fotograma, sem perder o espírito anárquico e o vigor punk rocker sentidos em Burst City e Crazy Thunder Road, em uma edição implacável até o estroboscópico e barulhento embate final entre os personagens. QUEM É PIKACHU NO JOGO DO BICHO???
Amante Emborrachado
Aproveito pra sugerir também as animações Robot Carnival (1987) e Neo Tokyo (1987), não exatamente por fazerem parte dessa onda Cyberpunk, mas pelo ano das produções e o gênero serem próximos e algumas temáticas se repetirem e dialogarem entre si, pode jogar tudo no balaio porque o clima é o mesmo!
E é isso. Dá pra resumir o Cinema Cyberpunk Japonês a essencialmente todos esses filmes citados. Qualquer pesquisa além disso leva a rip offs, homenagens e referências, mas a coisa real acaba por aqui, esse é o filé. O que aconteceu no cinema japonês dos anos 90 fica no cinema japonês dos anos 90! Cabôsse! Finito! Game over!
Em tempos de serviços de streaming com os catálogos inchados de conteúdo repetitivo ou de uma variedade enorme de coisas terrivelmente desinteressantes, vale muito a experiência buscar, por todos os meios à disposição, alguns filmes dessa safra nem que seja só para sentir um gostinho. Vocês podem achar tudo isso um grande WTF cinematográfico, ou quem sabe, como aconteceu comigo, vocês não se apaixonem pela estética, pela criatividade na execução das obras e pelo storytelling completamente fora do convencional? O delirante século XXI concebido na Tóquio do final do século XX em todos esses filmes tem seu encanto pessoal e inclusive evoca nostalgia, já que o Cinema Cyberpunk Japonês ficou cristalizado e fortemente representado nessas películas inimitáveis, garantindo sua IMENSA relevância cultural.
探し出す!
さようなら.
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