Ou, “COMO GARTH ENNIS ESTÁ USANDO A MARVEL PRA ESCREVER SUAS HISTÓRIAS DE GUERRA (E EU POSSO PROVAR, HEIN!)”
Garth Ennis é um puta professor de história! Só tem um detalhezinho… A cátedra do roteirista de Preacher, The Boys, Crossed e outros clássicos dos quadrinhos adultos é um tanto quanto restrita: Ennis dá aulas de guerra! Ele tem o auxílio dos melhores artistas e prefere dar essas aulas fazendo o que faz de melhor, escrever e produzir HQs.
Analisando a bibliografia do roteirista a fundo, dá pra apurar que o bichinho de contar histórias de guerra mordeu ele forte mesmo por volta do ano 2000, embora antes disso ele já mostrasse essa predileção aqui e ali em suas séries regulares. Afinal, que leitor não lembra do arco de Hitman onde vemos um grupo de ex membros da SAS, a Special Air Service, tropa de elite britânica quase dar cabo de Tommy Monaghan e sua turma? Ou dos flashbacks durante a Guerra do Vietnã de John Custer, pai de Jesse Custer, o protagonista da HQ Preacher? Ennis sempre deu um jeitinho de comentar as guerras da vida real em suas HQs, fossem elas autorais ou propriedades de outras editoras. Mas já disparava (trocadilho intencional) aqui e ali o que parece ser sua maior paixão: Histórias sobre a Segunda Guerra Mundial, e mais adiante, outros conflitos da história contemporânea. E acima de tudo, expor em suas narrativas o CUSTO HUMANO desses conflitos.
Arte de John McCrea e Garry Leach.
TODA HISTÓRIA DO ENNIS É UMA HISTÓRIA DE GUERRA (?)
Em 2000, Ennis havia contribuído com uma história curta na antologia Weird War Tales Special e a mini série Adventures in The Rifle Brigade, ambas publicadas pelo selo Vertigo da DC Comics. Por ser Vertigo as duas histórias possuem um tom de fantástico e cômico, respectivamente. Ambas as histórias menos realistas do que as histórias de guerra que viriam no ano seguinte: Os dois arcos publicados também pela Vertigo em 2001 eram intitulados War Story e consistiam de duas mini séries de 4 edições e tinham a característica de ‘pé no chão’, que daria o tom de todos os War Story que viriam a seguir.
Capas de Brian Bolland.
A partir do terceiro arco, publicado pela editora Avatar Press em 2014, o título passou a ser War Stories – no plural mesmo – e teve mais cinco mini séries publicadas na sequência. A maioria destas histórias se passava durante a 2ª Guerra Mundial, com duas exceções: Uma história ambientada durante a Guerra Civil Espanhola e outra no Oriente Médio em 1973. E, pra coroar de vez a obsessão de Ennis por conflitos mundiais do século XX preciso citar também a série Battlefields, publicada pela Dynamite Entertainment entre 2008-2010, com a mesma temática que as War Stories e que também rendeu histórias incríveis, inclusive algumas publicadas aqui pela Editora Mythos, como Campos de Batalha: As Bruxas da Noite. Além dessas, Ennis também visitou o tema com a excelente 303, lançada pela Avatar Press, com arte de Jacen Burrows (Neonomicon, Providence).
De casa nova, já na Avatar Press… 
…E na Dynamite Entertainment.
FRANK CASTLE EM SEU DEVIDO LUGAR
Apesar de todos os trampos, que iam de The Simpsons Comics a Star Wars, Ennis nunca deixou de lado essa predileção pelas histórias de guerra. Ainda em 2000, ele viria a assumir um personagem que seria vinculado para sempre à sua obra, apesar de não ser uma criação sua: Com o arco em 12 partes intitulado Bem Vindo de Volta, Frank, Ennis e o artista Steve Dillon – E NÃO POSSO JAMAIS ESQUECER AS ICÔNICAS CAPAS DE TIM BRADSTREET! – revitalizam o Justiceiro após fases bastante esquecíveis por outras equipes criativas e, bem… não tem expressão que defina melhor… Ennis TOMA*PARA*SI o polêmico e violento personagem da Marvel! Quando um roteirista aficionado por guerras trabalha com um personagem que basicamente, é um veterano amargurado que trava uma guerra sem fim por motivos de vingança… bom, quem leu sabe que foi um parque de diversões para Ennis! Tanto que depois de concluído o arco de 12 edições, no mesmo ano (2001) a Marvel o coloca à frente de uma nova série do personagem, pelo selo Marvel Knights, que durou cerca de 37 edições, a maioria delas escrita por ele. Mas Frank Castle só brilharia mesmo em toda a sua fúria selvagem quando o Justiceiro tivesse suas histórias publicadas pelo MAX, selo editorial com obras de teor adulto dentro do Universo Marvel. Essa fase foi a mais marcante e posso afirmar, insuperada até agora em termos de qualidade de um personagem que, convenhamos, nem é tão profundo assim. Não pelo menos até o Ennis fornecer camadas muito interessantes a Frank Castle.
Depois do tratamento de Ennis ao personagem, nosso querido Frank Castle evoluiu de uma máquina de matar bandidos unidimensional queridinha de leitores acéfalos reacionários – e que inclusive serviu de base para o sofrível Doutrinador – para um homem profundamente marcado pelo trauma da morte violenta da família mas que ao mesmo tempo já carregava em si o gosto pela guerra bem antes de sua tragédia pessoal. Ennis junta esses dois elementos e temos um homem incansável, imparável, incorruptível em seu objetivo, sem ter mais nada pelo que viver além de sua guerra ao crime em quase todas as suas formas. Mas não se enganem, não é heroísmo: Existe um buraco na alma de Castle e ele segue preenchendo esse poço sem fundo executando criminosos, quase como uma compulsão – ou uma vocação. Ele não faz o que faz pelo nosso bem estar e segurança, e sim para aplacar essa vendetta sem data pra acabar.
O FIM, O INÍCIO E O MEIO
Justiceiro MAX teve 65 edições e alguns especiais publicados – entre eles o sensacional Justiceiro – O Fim, com arte de Richard Corben, onde Ennis imagina como Castle finalmente vai bater as botas… e é épico! – e marcou uma era de boas histórias na Casa das Idéias. A fase Ennis deixou saudades nos fãs, e era questão de tempo até a gente ter mais um gostinho dela após esses anos, nem que fosse a conta-gotas. Foi exatamente o que aconteceu em 2017. Punisher: The Platoon foi publicada como uma mini série em seis partes (aqui encadernada em volume único pela editora Panini) e situada cronologicamente antes da mini série The Punisher: Born, aqui publicada como Justiceiro: Nascido Para Matar.
DOIS VIETNÃS
A história de Justiceiro: O Pelotão gira em torno de uma premissa muito simples: Se trata da primeira incursão de Castle no conflito do Vietnã. A HQ é contada em forma de flashbacks mesclando os depoimentos dos soldados que serviram com Castle, onde vemos emergir o modus operandi que mais tarde seria aplicado na guerra solitária do personagem, além de alternar com o ponto de vista do oponente, onde acompanhamos um comandante do exército Vietcongue travando sua parte do conflito de forma cuidadosa e ponderada. Essa narrativa que reveza os dois lados da história ajuda a humanizá-los sem pré julgamentos. Ennis não lança mão do manjado estereótipo do “Americano bonzinho versus Vietcongue malvado”, e se há algo para se revoltar nessa história toda é o descaso e a corrupção vindos de cima na hierarquia militar (mas até nisso Castle deu um jeitinho heheheh), bem como o que sobrou para os veteranos desse conflito, desprezados após sacrificarem tanto por um conflito em que seus governantes os colocaram.
O enfoque histórico que o Ennis dá para o conflito, o lado humano em destaque (como eu disse, não existe aqui o estereótipo persistente do vietnamita selvagem, sub humano, que só quer matar os americanos bonzinhos). O oponente é digno de respeito e formidável, e a motivação dessa guerra é tratada como algo fútil, motivação que fez com que muitos jovens, de ambos os países, pagassem com a vida. Mas também Ennis pontua sutilmente que os americanos não tinham nada que se intrometer na treta dos vietnamitas com os franceses. Era uma guerrilha de uma colônia lutando contra uma potência imperialista européia que sufocava seu país, quando de repente os palhaços da América do Norte apareceram pra mostrar que o big stick deles era grande.
E tomaram uma surra do cacete. Merecidamente.
A história conta ainda com o traço do fantástico Goran Parlov, que auxiliou Ennis em vários arcos de Justiceiro Max, dando vida a muitas das cenas de ultraviolência absurda concebidas pelo roteirista ao longo de vários arcos do título. Destaque para a fisionomia de Castle, que é COMPLETAMENTE diferente de como o próprio Parlov o desenha nas histórias passadas em Justiceiro Max, ambientadas cronologicamente no ‘presente’: Castle ainda não havia perdido a família nem se tornado uma máquina de matar impiedosa – apesar de já ser bom na coisa – e isso se reflete principalmente no olhar que o artista deu para o personagem, levando em conta o extremo dano psicológico que o personagem sofreu nessa trajetória. Frank ainda era reconhecível como um indivíduo ‘normal’ até então.
Então, sim. Confirmado. Podemos considerar Justiceiro: O Pelotão como o War Story da Guerra do Vietnã! 😉😉😉
Mas e o Afeganistão?
Já Justiceiro: O Soviético é outra ótima desculpa pro Ennis usar o personagem pra contar mais uma história de guerra. Mais precisamente o conflito no Afeganistão nos anos 80 (1979-1989), envolvendo a Rússia, os afegãos mujahidins, a CIA, aquela zorra toda.
Pra resumir, essa guerra foi um conflito civil na nação Afegã com envolvimento militar da União Soviética, que lutou ao lado das tropas do governo da República Democrática do Afeganistão contra os guerrilheiros insurgentes mujahidins. Esses tinham suporte militar do ocidente, sendo inclusive armados e treinados pela CIA! Entre esses muitos guerrilheiros mujahidins financiados pela América, havia um tal de Osama Bin Laden, que numa inversão narrativa tão mal contada quanto uma história roteirizada pelo Jeph Loeb, viria a se tornar um dos maiores inimigos do Grande Satã… digo, Estados Unidos da América. Os Russos tomaram um cacete por lá e historiadores afirmam inclusive que o custo do conflito foi um dos fatores que contribuiu na derrocada da União Soviética, no que é considerado o “Vietnã da Rússia”.
Aqui Ennis radicaliza ainda mais e faz de Castle um personagem secundário em sua própria HQ! O destaque fica por conta de Valery Stepanovitch, o tal soviético do título, personagem que Ennis introduz para nos dar aquela aula de história da guerra nessa mini série. Na hora em que os dois personagens estão de boas, comendo um rango chinês (EI, MATAR QUASE MEIA CENTENA DE MAFIOSOS RUSSOS DEVE DAR FOME!), se abre uma janela para um flashback no Afeganistão dos anos 80, e aí senta que lá vem História com “H” maiúsculo! O roteirista joga luz em detalhes escabrosos desse conflito chave da Guerra Fria e eu quase lamentei voltar à linha principal da história depois que Valery termina sua narrativa do passado. Não me entendam mal, a HQ é ótima, mas a aula de história… Não tem preço! A arte fica por conta do sempre competente Jacen Burrows (Cavaleiro da Lua, Crossed, Providence).
Acho que não percebi esse paralelo com os War Stories da primeira vez que li as duas HQs porque estava muito no automático pra ler ‘apenas’ uma história do Justiceiro Max, e sendo só isso que eu gerei de expectativa, foi só isso que eu tive. Pelo menos na primeira leitura. Agora, depois de dar dois passos pra trás e analisar a bibliografia do Ennis em uma perspectiva mais ampla, fica evidente minha argumentação, senhoras e senhores do júri: As histórias que Ennis entregou pós Justiceiro MAX são War Stories disfarçados SIM! E pra quem curte, é prato cheio, pode confiar!
Então é isso. Falo com tranquilidade que o safado do Ennis usou a Marvel pra entregar dois ótimos War Stories disfarçados na encolha, e acho que o ponto de partida foi quando ele decidiu produzir a mini série Justiceiro: Nascido Para Matar (The Punisher: Born). Ali ele plantou as sementes que fizeram do Justiceiro mais do que o personagem bidimensional matador de bandido. Ali Ennis desenvolveu Frank Castle como um homem perturbado, que tomou um gostinho mórbido por guerra. E pra alguém assim, que guerra melhor do que uma guerra que nunca acaba?
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Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.
Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.