Chegou o dia de falarmos desse autor icônico e nada menos controverso que foi o Dostoiévski, com sua gama de romances gigantescos, e personagens extremamente complexos, confesso que vejo muita ausência de discussão ou até resenhas sobre o material do livro que comentarei aqui agora, o tão famoso e ao mesmo tempo tão desconhecido aqui no brasil que se chama “Os demônios”.
Ler Dostoiévski sabemos que nunca foi uma tarefa um tanto fácil, além dos amigos que temos que aturar nos obrigando a ler “Guerra e Paz” do outro gênio chamado Tolstói, é comum ouvirmos sempre alguém nos obrigar ou dizer que já leu “Crime e castigo” ou “Irmãos Karamazov”, clássicos desse autor que poderemos comentar em outro momento.
Os demônios, obra fortemente marcada pelo contexto em que foi escrita, na condição colonial e semifeudal da Rússia Czarista mostra muito além do que apenas a situação política daqueles jovens inseridos na sociedade, assim como as crueldades de seu tempo, o assassinato de um militante anarquista chamado I.I ivanov pelo seu próprio grupo político influenciou o Dostoiévski a criar uma obra quase panfletária sobre os tempos e mudanças políticas que envolviam seu tempo.
Na obra Entramos no cenário da Rússia czarista de 1872, pós guerra da Criméia e num ambiente onde as revoluções e pensamentos dos países externos como Alemanha e França entravam no país. Temos o crescimento de movimentos anarquistas e consequentemente os movimentos do niilismo russo, que perpetuava a exaltação ao conhecimento como forma pura, e uma desvinculação total com as ideias dos parentes da velha geração, que viam seus pais como hipócritas que defendiam um mundo romântico (porém escravizava os seus servos, chamados por Almas) e também questionavam a fé cristã.
Ainda entrando nesse mesmo ponto de Almas, somos introduzidos ao personagem Trofimovitch, eterno intelectual da sua cidadezinha, que chamou a atenção de uma outra senhora de meia idade e já viúva chamada Varvara Nikolaievna, que o vê não só como um grande intelectual, como o símbolo para uma nova Rússia, mesmo que o seu “guru” seja totalmente sustentado por ela, sofra de eternas manias de perseguição e seja um eterno escritor frustrado, promete escrever um grande livro, mas nunca pratica a ação de suas idéias, porém como um sujeito muito persuasivo, acaba criando um circulo de intelectuais entre os “ricos” da cidadezinha e que acaba com essa fama, trazendo intelectuais e ricos de São Peterbursgo e outras cidades da Rússia, logo, seu círculo se amplia quando vindo de outros países da Europa, como França e Bélgica, chegam o Vierkhovenski (filho de Trofimovitch) e Nikolaiev (filho de Varvara), ambos educados pelo próprio guru, desenvolvem ideais completamente liberais e utópicas sobre uma sociedade que depois de sofrer diversas atrocidades comandadas por um determinado grupo (formado por eles), seria obrigada a implementar um regime alá Thomas Hobbes, onde apenas um determinado grupo de nobres iriam comandar e dar as ordens diretas ao povo, mantendo uma ditadura de autoridade desse próprio grupo.
The Bad, The Evil And the Ugly
Assim que somos apresentados a esses personagens, logo percebemos que nenhum deles confia no outro, e cada um tem seus hábitos duvidosos, enquanto o Nikolaiev é um viciado em duelos e se envolve com mulheres casadas, o Vierkhovienski é um assassino frio e calculista, não se importando com nenhuma pessoa, inclusive seu pai, porém incrivelmente se afeiçoa e quase venera o seu parceiro de conspiração Nikolaiev.
Logo descobrimos que eles dois comandam uma espécie de quinteto conspiratório dentro da cidadezinha, e vão ganhando cada vez mais, por influência do Guru e velho Trofimovitch a aceitação da elite, e ficam cada vez mais habituados a frequentarem os antigos e lindos bailes de gala, festas e encontros da mais alta elite, percebemos então que o Trofimovitch apesar de influenciador, é um covarde em suas ações, buscando apenas incitar seus amigos e colegas a realizarem ações contra o sistema, mas ele mesmo acaba não fazendo nada, jogando assim toda a responsabilidade para esse quinteto, comandado pelos dois jovens e prodígios do círculo de intelectuais daquela cidade.
Logo os “líderes” voltam a cidadezinha, e percebem que precisam radicalizar ainda mais suas ações, comandar incêndios e até assassinatos para implementar medo naquela cidade, e buscar outros incitadores nas outras, mantendo uma organização com diversos tentáculos, porém tudo isso começa a ficar mais intenso quando o Vierkhovienski decide matar um dos membros do quinteto, para fazer eles se tornarem mais leais para com a causa, e fazerem as suas ações mais por medo dos seus comandantes do que usando sua própria consciência, daí vira uma trama um tanto quanto filosófica, com diversos personagens profundos, como o Kirilov, um dos membros do quinteto que decide se matar para provar para a sociedade que Deus não existe e que é dono de suas próprias ações, e muitos outros fascinantemente complexos e profundos do jeito que o Dostoievski sabe fazer com seus personagens.
Lendo teremos que ter em mente a época e tensão histórica que era a Rússia czarista e feudal, e enxergar que apesar de muitos “gurus” conservadores usarem o argumento que o livro fala sobre partidos “comunistas” e de esquerda, na verdade o livro fala sobre o liberalismo clássico e personagens que buscam atitudes autoritárias para implementar na sociedade russa um mundo moldado com suas concepções do liberalismo, cheio de medo e desconfiança de todos (bem leviatã mesmo), e perceber também que o autor nos denuncia já naquela época, o erro de seguirmos gurus ou famosos Olavos pseudo pensadores como reis da moralidade e das boas ações, sem questionar nada do que se acontece ou do que é colocado por eles como verdade, termos cuidado com opiniões perigosas e diversos discursos com várias meias verdades para apenas desinformar as pessoas e trazer mais terror em suas vidas, que tenhamos sempre pensamento científico e que sejamos sempre questionadores, afinal, não questionar nada nos faz pouco a pouco, nos tornarmos ovelhas, ou como já diz o título do livro, demônios.
Menção Honrosa…
A edição da Editora 34 é traduzida genialmente direto do russo, ate com o intuito de corrigir muitos dos erros de interpretação dos antigos tradutores (que erroneamente traduziram o título como “Os Possuídos”), além do tradutor ser um especialista em literatura russa no Brasil e tradução, a edição é cheia de notas de rodapé que não só explicam o contexto daquela época que foi escrita, como também aborda curiosidades e o porquê que o tradutor usou determinado termo, em alguns casos, mostrando até para nós mais ou menos como funciona o mundo árduo que é o da tradução literária rsrs.
Infelizmente a capa é brochura comum, mas muito bem encadernada, com desenhos do artista Claudio Mubarac inclusos, a edição tem 699 páginas, que genialmente fez questão de incluir o capítulo polêmico em que Dostoiévski foi até sugerido pelo próprio Czar de retirar da obra, pois era demasiadamente pesado. Porém a inclusão do capítulo na edição só nos mostra o quanto ele é essencial para maior entendimento da obra.
Editora 34
Tradução de Paulo Bezerra
Ilustrações de Claudio Mubarac
Páginas: 699
Preço de Capa: R$ 108,00
Texto por Matheus Martiniano (@martinianofromars)