Recentemente viciei na música “Childhood’s End” do disco Obscured by Clouds da banda Pink Floyd. Ouvia a canção de dia a noite e acompanhava sua letra quase que como uma oração cotidiana, e em meio a esse fascínio, me veio a pesquisa sobre a música e uma das minhas suspeitas quanto a canção se confirmou. Ela foi escrita após David Gilmour ler o livro O Fim da Infância, de Arthur C. Clarke, e então decidi, por carinho à canção, dar uma chance a esse clássico da ficção científica.
O livro foi escrito durante a guerra fria, portanto grande influência do período ressoa nele; aspectos como a corrida espacial são temas centrais nesta obra. No livro, uma nave alienígena chega à Terra trazendo seres conhecidos pelos humanos como “senhores supremos”, que se comunicam com a humanidade em busca de criar uma utopia em nosso planeta. Os motivos da benfeitoria são um mistério, tão mistério quanto a única grande proibição estabelecida pelos senhores supremos, que no caso é que os humanos desistam da exploração espacial.
A premissa do livro é deveras interessante, porém esse é o tipo do livro que toda hora coloca uma bola na trave. Não é que o livro seja ruim ou não seja assertivo em várias das suas reflexões. O ponto é que ele pincela coisas demais e não aprofunda praticamente nada. As personagens são rasas, apesar de neste ponto ser possível dar um desconto, pois a história se foca nos senhores supremos e existem grandes passagens de tempo que acontecem ao decorrer da história. Mas mesmo com esse desconto, é complicado se apegar a qualquer personagem da história, e existe um determinado momento em que Clarke tenta criar um drama familiar que pouco convence, exatamente por este problema.
O livro não coloca bolas na trave unicamente por seu fraco desenvolvimento de personagens, ele também pincela temáticas que poderiam ser aprofundadas, como o desenvolvimento da ciência e arte pouco proveitosos em tempos de paz. Um ponto é a questão religiosa que aparece em um primeiro momento como resistência aos senhores supremos, pois eles diretamente contrariariam os ensinamentos sagrados. Essa é uma ideia interessante, mas que é rapidamente abordada e suprimida quando ocorre a primeira grande passagem de tempo na história; a temática é retomada posteriormente quando citam uma tecnologia que possibilita a humanidade observar o passado e por consequência, seus profetas. Mas quando o aspecto dessa tecnologia é encaixado na história, os grupos religiosos do início do livro e qualquer movimento por parte da religião já desapareceram e já não tem mais importância na narrativa.
E isso ocorre em praticamente todos os pontos que o livro toca, ele aparentemente não tem um fio condutor que deseja discutir, apesar de ter a narrativa construída de maneira coerente. O final do livro pode desagradar quem procura uma crítica a religiões, guerras e sistemas econômicos vigentes ou passados. O final parece uma crítica a exacerbação do materialismo científico em detrimento da religiosidade, inclusive podendo ser compreendido como uma união das duas coisas. Discussão que é também rasa, e vai do leitor uma interpretação de tais fatos.
O que talvez tenha feito eu gostar em uma espécie de “7/10” desse livro, é a música de Gilmour baseada nele. A música reafirma o argumento de que tudo terminará, inclusive aquela canção. As dores, sofrimentos e prazeres da vida são sempre passageiros e não existe um estado de ser, mas de estar, vigente para cada um de nós. Não somente do eu, mas do mundo à nossa volta também, sejam eventos, líderes, dores ou qualquer outra coisa que te incomoda. Vai passar.
Inclusive este é um tema recorrente na história humana, posso citar rapidamente de cabeça o poema Ozymandias, escrito por Percy Shelley e a música Survivor Guilt da banda Rise Against, ambas batem muito mais na questão de impérios e construções grandiosas caírem, mas ainda assim remetem a essa temática de nada ser eterno, mas unicamente estar vigente e ter chances de cair e acabar.
É um livro que penso ser interessante para quem está iniciando na ficção científica, pois leitores já calejados de outras grandes obras podem acabar se frustrando pela superficialidade com que o autor toca em vários assuntos. Não é um livro ruim e apresenta conceitos que te fazem querer logo virar a próxima página para descobrir o que vai acontecer, a narrativa e a psicologia de todas as suas personagens (inclusive os senhores supremos) é rasa, porém para quem procura unicamente uma boa história, creio que essa acabe valendo a pena dedicar uns dias na leitura.
A recomendação suprema deste texto é o vídeo que coloquei no início em que apresenta uma versão legendada da música do Pink Floyd, em que o Gilmour coloca sua voz e toda sua potência em uma mensagem bem sintetizada.
Caso o leitor busque um livro profundo que vai abordar política e pensamentos profundos sobre a religião em nosso mundo, esqueça este de Arthur C. Clarke. Mas se o que busca é uma narrativa fluida em uma história bem amarrada com plots interessantes, talvez seja legal dar uma chance pra este que é considerado um clássico da ficção científica.
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