No meio dessa pandemia que ainda continua a assolar o nosso país, com várias famílias perdendo seus entes queridos ou pessoas próximas, somos confrontados com uma sensação de solidão e imobilismo, onde parece que não podemos fazer nada para mudar o destino de nossa nação e de nosso povo, uma sensação de luto gigante nos consome todos os dias, e nesse meio tempo de solidão necessária do isolamento social, descubro esse filme que não só ganhou prêmios como a Berlinale de 2019, com ursos de prata para a jovem atriz Yong Mei e o ator Wang Jinchun, com o sucesso gigante do grande filme “Parasita” no Oscar passado, e com a vontade de conhecer mais uma obra fora do radar do Hollywood, dou play e me sinto fascinado não só pela direção de arte e produção, mas com um roteiro que fala muito bem sobre solidão, luto e mais do que tudo, coragem, que é o que precisamos para enfrentar esse momento tão terrível.

Impactos culturais e temporais
Nesse filme acompanhamos a história de duas famílias ligadas a um único acontecimento trágico, acontecimento que flui sem pressa, já que o diretor Wang Xiaoushua é conhecido por entregar tramas mais lentas, porém extremamente profundas, dando o tempo necessário para sentirmos as emoções dos personagens. Os principais são Liu Yaojun, Wang Liyun e seu filho Liu Xing (apelidado por Xing Xing) e a família composta pelo casal Shen Yingming e Li Haiyan e seu filho Shen Shao (apelidado de Hao Hao). Tanto Hao Hao quanto Xing Xing nasceram exatamente no mesmo dia, mantendo assim ainda mais estreitos os laços entre ambas as famílias, sendo criados como irmãos, já que além de sua amizade desde o nascimento, seus pais também trabalham na mesma fábrica, sendo operários humildes na década de 80. Década esta que mostra as mudanças culturais da China pós anos 70, onde através de um golpe de estado, Deng Xiaoping executa e prende a oposição dos setores mais à esquerda do partido e junto com o grupo de direita liderado pelo mesmo, se conclama como o novo presidente e com sua posse instaura as famosas Quatro Modernizações, que fez com que a China largasse cada vez mais sua ligação com o socialismo e se tornasse cada vez mais capitalista, com a introdução de capital estrangeiro privado e monopólios estrangeiros sendo introduzidos, a destruição das fábricas coletivas estatais e fazendas coletivas, onde podemos ver o impacto gigante nas vidas dos personagens de Yaojun e Liyun, que simplesmente são demitidos de seus respectivos empregos sem nenhum motivo aparente, sendo definido pelos superiores como “um mal necessário para as finanças”.

Vemos também o impacto da lei do “filho único”, onde cada família que tivesse um filho seria multada por uma quantia de dinheiro para justamente evitar os problemas econômicos acarretados disso, inclusive sendo o nascimento do próprio Xing Xing o momento onde essa lei entra em vigor, causando uma tensão muito grande em seus pais, por medo de perderem seus empregos (e também da taxa da multa) e acabarem não podendo dar o sustento necessário para a criação do amado filho.
Porém o filme não se passa apenas na década de 80, e vamos acompanhando a família ao longo das décadas e também o envelhecimento desses personagens. O diretor é absolutamente sutil e a direção de arte foi bastante inteligente em contextualizar perfeitamente cada época, sendo assim não mais necessário ter alguma numeração no canto da tela mostrando o ano de cada cena onde ocorrem essas mudanças de tempo, mas notamos apenas pelo toque sutil da direção mostrando a passagem do tempo nos figurinos, nos cenários e locações, nas músicas e em todo o contexto de cada época.


Podemos ver nessa imagem a forma como o diretor consegue retratar tanto o luto quanto a distância e tristeza que a família enfrenta.
O peso do luto
Bem no começo do filme, o filho do casal Liu Yaojun e Wang Liyun acaba sofrendo um acidente terrível ao brincar com seu melhor amigo Hao Hao, e acaba morrendo afogado de uma forma trágica. Nesse momento da obra sentimos todo o impacto causado em ambas as famílias, o peso da culpa sentido por Hao Hao de não ter ajudado seu amigo, o peso da própria família não conseguindo aceitar o falecimento do seu único filho, impactando-os de uma forma tão grande que eles acabam largando tudo para morar numa província mais no interior da China, vivendo uma vida bem simples, ou assim como o próprio personagem Liu Yaojun fala: “O tempo parou para nós desde que Xing Xing se foi, agora só esperamos ficarmos velhos”.
Percebemos todo o impacto do casal de não conseguir mais seguir em frente, a amizade com Shen Yingming e Li Haiyan se distancia e do nada o casal aparece com uma nova criança adotada, nomeando-o Xing Xing , tratando-o como uma espécie de substituto do antigo que faleceu. Isso causa um impacto muito grande nessa criança, pois ele sempre se vê à sombra daquele que ele nunca conheceu e que ele supostamente teria que imitar para agradar os seus pais adotivos. Quando ele já é adolescente, abandona o lar e deixa seus pais sozinhos, e é aí que vemos a consequência mais pesada da velhice e as consequências de escondermos um sentimento necessário e não lidarmos com ele, para justamente não seguirmos em frente e continuarmos não só de luto, mas também morrendo por dentro. Liu Yaojun vira um homem distante e frio com sua esposa, Wang Liyun vira uma mulher que apesar de forte, permanece deprimida, sempre relembrando dos seus velhos amigos e do seu primeiro filho, e completamente preocupado com o outro adotado, chegando a ponto de passarem meses procurando o mesmo, eles se sentem alienados de tudo, sozinhos com sua própria dor, e a atuação dos atores brilha mais, a cada minuto em cena vemos o peso no olhar deles, das palavras não ditas e da dor ainda não curada, a cada passo e cada ação deles, sentimos todas as dores do percalço.

A esperança que vem
O filme é bem pesado na maior parte do tempo, mas ao decorrer da trama admiramos mais cada um dos personagens, que apesar da adversidade, conseguem continuar tocando suas vidas, que no fim do túnel sempre temos algo novo a nos agarrar, que a luta em si nunca acaba, que embora as coisas pareçam em muitas horas fora do nosso controle. Nós podemos sim superar esses problemas, e muito disso através da união, o homem é um ser coletivo e o filme foca muito nisso. Cada vez que nossos protagonistas estão isolados, eles perdem sua humanidade, sendo totalmente felizes e mais realizados quando estão em conjunto, e quando em conjunto conseguem lidar com seu luto ao perceber que no final, ninguém está sozinho. Recomendo esse filme pela questão do momento atual de isolamento social e de nos lembrarmos sempre, que ninguém está sozinho nesse mundo.
Um abraço pra você que está lendo isso.
Duração: 3h 05min
Gênero: Drama
Roteiro: Wang Xiaoshuai, Mei Ah
Texto por: Matheus Martiniano (@matinianofrommars)