“Na Cidade das Fábulas, lutamos esgrima com lâminas reais porque estamos treinando para batalhas reais.”
Releituras de mitologias e fábulas sempre me cativaram. Eu tenho um verdadeiro fascínio por reinvenções, por poder ver através da visão de um novo escritor uma história com a qual já tive contato antes. Devido a isso não é difícil deduzir que quando me deparei com Fábulas, pelo selo Vertigo, fiquei encantado com a proposta. Na época que essa série saiu em mensais pela Pixel, eu tive contato com uma única edição, mas a curiosidade nunca me deixou. Desnecessário dizer o quão feliz fiquei com a edição de luxo trazida pela Panini. Não acho que eu precisasse de uma edição de luxo, uma cartonada safada já estaria de bom tamanho, mas é o que temos para hoje e minha vontade de ler é maior que minha sensatez econômica. Devido a tudo isso não podia deixar de trazer minhas impressões sobre essa obra depois de tanto tempo de namoro.
Fábulas narra o cotidiano de um grupo de personagens saídos de contos de fadas, que fugiram direto do imaginário para o mundo real, numa comunidade inserida em Nova Iorque que eles chamam de “Cidade das Fábulas”. Esse imaginário na verdade é um lugar real, em outro plano, que eles chamam de Terras Natais. Voltando a Nova Iorque, eles se vêem rodeados de mundanos, como eles chamam os humanos comuns, e precisam lidar com todos os dilemas de serem criaturas mágicas nesse mundo. Para isso eles criam leis, entre elas uma lei de anistia, e um sistema de governo onde possuem um prefeito e uma vice prefeita, que é mais decisiva e importante que o próprio. Essa vice é nossa velha conhecida, Branca de Neve. Isso tudo você fica sabendo nas primeiras páginas. Inclusive o motivo da fuga deles de suas antigas terras, a ameaça do Adversário, um tirano implacável, munido de um exército e com bastante sede de poder. A identidade deste inimigo parece ser um mistério que irá se perpetuar ao longo do título.
Nessa primeira edição temos dois arcos fechados, a investigação de um possível assassinato e uma revolução dos bichos (sim, é exatamente isso que você está pensando). No primeiro arco somos apresentados aos principais personagens dessa sociedade secreta. Branca é a vice prefeita, que tem total autonomia na administração da Cidade, apenas repassando suas decisões ao Rei Cole. Claro que isso é dito em “boca pequena” e ninguém sem um bom motivo tem coragem de jogar tais verdades na cara da intimidadora vice. João, aquele dos feijões mágicos, é o responsável pelo pontapé inicial da história relatando o crime ao detetive Lobo. Lobo Mau, após a fuga das Terras Natais e devidamente anistiado, precisava de uma função nesse novo mundo e foi contratado por Branca como o investigador e principal figura da lei. João relata que sua namorada sofreu um ataque, pois ele encontrou o apartamento dela repleto de sangue e com indícios de luta. Daí se desenrola uma investigação em busca do que aconteceu ali, de onde a jovem estaria e se estaria viva e quem seria o criminoso. Com um clima investigativo meio noir e clichês bem utilizados, a história é bem desenvolvida e com um desfecho inesperado.
No segundo arco, somos apresentados a um lugar que é mencionado já no primeiro, a Fazenda. Nela habitam todas as fábulas que não possuem forma humana ou que podem comprometer, mesmo que por acidente, a principal lei da Cidade das Fábulas que é de não revelarem, por ação ou inércia, sua verdadeira condição mágica aos mundanos. Revoltados com as condições de vida ali, seu isolamento do mundo mundano e da convivência com as demais fábulas, um grupo de revoltosos se forma dentro da Fazenda. Com ideais políticos e um discurso populista, os três porquinhos lideram a revolução e Branca é surpreendida em meio a revolta numa inocente visita ao local. Quem está certo nessa história? Os porquinhos que falam em nome de um grupo que se sente injustiçado e tomam de assalto a administração da fazenda ou a vice prefeita que tem certeza de que tem feito tudo o possível para manter boas condições de vida na Fazenda, mesmo segregando eles e intervindo no seu direito de ir e vir?
O texto de Bill Willingham (Elementals, Lanterna Verde) é muito bom. Ele usa muito bem as referências de séculos de contos de fadas e consegue interligar esses personagens de contos diferentes de maneira bem orgânica. A grande jogada de Bill é tratar os personagens de maneira isolada do restante de seu conto de origem, dando assim a devida profundidade a tantos personagens notórios em nosso imaginário, porém muito rasos se tirados de todo aquele contexto de ensinamento moral em que foram inseridos. A habilidade de perverter a moralidade imposta a esses contos faz da leitura de Fábulas uma experiência gostosa, que consegue ser inovadora e nostálgica ao mesmo tempo.
A arte de Mark Buckingham (Miracleman, Hellblazer) e Lan Medina (Distrito X, Justiceiro MAX) é maravilhosa e o traz todo aquele ar de clássico dos contos de fadas. Fora isso, toda a equipe criativa é primorosa, tendo Steve Leialoha (Sandman, Homem Aranha) e Craig Hamilton (Lúcifer, Starman) na arte final e cores. O traço é muito agradável e todos os personagens são muito expressivos, o que é essencial numa trama que tem animais e todo tipo de coisas antropomorfizadas e cheias de emoções para expressar. Fiquei muito contente com esse primeiro volume e espero continuar me divertindo com os prováveis quinze volumes que ainda vem por aí.
Editora Panini
Capa dura, 264 páginas, papel couchê.
R$ 62,40
Curtiu essa resenha? Então siga essa Zona nas redes sociais e não perca nenhum conteúdo! Textos todas as quartas, quintas e sextas.