Lavagem é o exemplo perfeito de gibi que te captura já na capa. A mulher se afogando em sangue, o olhar exibindo um misto de desespero e horror imediatamente prende a atenção do leitor, preparando-o para o que está por vir. É inútil resistir ao convite feito para desvendar esse mistério e a total falta de informações na quarta capa só aumenta a curiosidade. Só existe uma opção: Embarcar nas páginas internas desse thriller de horror psicológico, guiado pelo roteiro e a arte estonteante de ninguém menos do que Shiko.
A trama se passa em uma área de manguezal, onde um casal vive isolado. Ela, uma beata que sucumbe ao pecado toda vez que faz a travessia de barco para ir ao encontro do Divino. Ele, um homem descrente, embrutecido pela vida e cada vez mais deslocado da realidade, convivendo intensamente com sua criação de porcos. Em uma noite de maré alta, recebem a inesperada visita de um homem que diz levar a palavra de Deus por onde vai.
Uma das questões para qual o roteiro de Shiko aponta, é para as situações limite que enfrentamos na vida e a maneira como lidamos com elas. Essas situações sempre nos empurram a ações que irão gerar grandes mudanças e mesmo que inconscientemente, sabemos disso. Mudanças radicais no status quo da nossa vida causam um medo irracional e mesmo em uma situação limite nos vemos evitando essas ações para não sentirmos esse medo. Quando se decide enfrentá-lo, geralmente por uma situação limite que se tornou insustentável, pode-se pensar em retrospectiva e ir exatamente ao ponto em que um pequeno detalhe foi necessário para desencadear tudo, o ponto sem volta. Em Lavagem esse pequeno detalhe é um copo e o ponto sem volta se dá a partir do momento em que ele se quebra. O copo e também a capa fazem uma boa alusão ao encarceramento que a protagonista enfrenta e a situação limite que empurra a ações extremas.
O cenário do mangue, isolado pela maré alta que traz todo o tipo de lixo, os porcos famintos e inquietos, o canal religioso transmitindo a programação em looping, remetem a um dos círculos infernais, o umbral ou mesmo o purgatório. Shiko brinca com a narrativa, mesclando-a a uma surrealidade que faz o leitor emergir ainda mais nesse cenário dantesco.
Outra questão no roteiro é a enorme influência da religião nas decisões tomadas pelas pessoas desamparadas e isoladas pela pobreza, tendo seu livre arbítrio extirpado e sua vida teleguiada. Abordar tanto em uma trama simples com poucas páginas, é o grande mérito de Shiko como roteirista. A releitura aqui é quase obrigatória e vital para obter novas percepções.
Não façam como este que vos fala, que demorou tanto tempo para ler devido a uma pilha de leitura cada vez maior. Lavagem é visceral, tenso, direto, sujo mas também lindo. Digna de uma das grandes representações do gênero de horror em quadrinhos.
Editora Mino
Capa dura, 72 páginas, p&b