O quadrinhista Ed Piskor é conhecido por aqui por duas HQs: pelo vencedor do prêmio Eisner Hip Hop Genealogia e por X-Men Grand Design. Além disso, Piskor se tornou também conhecido do grande público por conta de sua última história, uma história de sua vida pessoal: O artista se envolveu em um escândalo de acusações de conduta sexual inadequada por várias mulheres, o que o levou a escrever uma dolorosa carta de autodefesa, seguida de seu suicídio, pois ele já não suportava mais o linchamento virtual que a internet estava lhe impondo. Um jovem talento interrompido, por causas que não vou me aprofundar nem julgar aqui, mas que acho importante mencionar por conta do teor da obra que comentarei nas próximas linhas.
Red Room é uma história que Piskor começou a desenvolver durante o período da pandemia de Covid-19, de 2020 a 2024, publicada lá fora pela Fantagraphics. A HQ aborda o submundo das Red Rooms, uma lenda da dark web, onde alegadamente existem sites que transmitem vídeos de torturas brutais seguidas de execuções. Em suma, uma atualização dos snuff movies para a era digital. Em sua HQ, Piskor cria um mundo extremamente pessimista, com toda uma economia e um ecossistema próprios, onde grupos altamente organizados operam com parâmetros elevados de sigilo e segurança, convivendo com pretensos amadores – que inclusive são cooptados para trabalhar com os “profissionais” – e até imitadores baratos. Nesse mundo, uma rede intrincada envolvendo torturadores, vítimas, familiares de um e de outro e agentes da lei interagem, se correlacionam e se atritam, gerando histórias bem pesadas, densas e não raro com conclusões inesperadas e surpreendentemente trágicas.
Piskor já inicia a HQ de forma bem contundente mas vai aumentando ainda mais a intensidade à medida que desenvolve a trama, derramando sua sombra interior sobre o papel, retratando as situações mais degradantes e inimaginavelmente repulsivas possíveis, quase como que desafiando o leitor a encarar o fato de que o mundo tem uma face oculta que é capaz das coisas mais monstruosas, como por exemplo uma “fazenda” onde se cultivam vítimas para as lives; pessoas miseráveis e anônimas que nascem e são criadas como gado apenas para serem objetos de tortura e gerarem conteúdo, mantendo assim o anonimato dos torturadores por não poderem ser reconhecidas, já que vivem à margem da sociedade. Ou a vítima que sofre lavagem cerebral, tem suas feições alteradas cirurgicamente e acaba se tornando uma torturadora de destaque na deep web. Também tem o “artista” da Red Room, que realiza obras de arte com corpos torturados, e que gera todo um público esnobe, que se acha mais sofisticado que os outros seguidores/patrocinadores das Red Rooms de tortura “convencional”, mas aqui nada é o que parece ser. Também não posso esquecer do arco da moça que descobre que seu pai, além de assassino serial, é um astro da Red Room, entre outras subtramas escabrosas.
O traço inconfundível de Piskor só melhora à medida que a história avança, como se o artista ficasse cada vez mais à vontade no lápis, e é um deleite de ver essa evolução ao longo das 12 edições do encadernado, por mais contraditório que isso soe. A criatividade na retratação das cenas de gore, um ponto importante dentro da proposta, também não decepcionam, e a crueldade humana é transmitida com repugnante dedicação, e não vai decepcionar os açougueiros de plantão, bem como vai atiçar a curiosidade dos mais sensíveis pela próxima performance sanguinolenta a ser transmitida nas lives. Piskor também lançou mão de recursos narrativos criativos e bastante interessantes, como nas histórias que abordam personagens secundários do universo de Red Room e que são apresentadas por um anfitrião macabro à la Contos da Cripta, ou a doentia “homenagem” a Quentin Tarantino, um expoente da violência na cultura pop. Piskor ainda ousou fazer – com sucesso! – uma história estilo Alan Moore, onde cada página é dividida em três faixas, uma em cada momento diferente da trama.
A edição da Devir reúne as três minisséries publicadas nos EUA entre 2021 e 2023: A Rede Antissocial, Alerta de Gatilho e Criptoassassinos em um único e gigantesco volume de 416 páginas, de capa cartonada com orelhas e um pouco maior que o formato americano, quase um formato magazine. A edição tem como extra comentários e anotações de Piskor no final do encadernado, onde ele faz diversas observações tanto a respeito do processo de elaboração da história como pequenos comentários de cunho pessoal, referências, entre outras informações que encorpam a experiência de leitura de uma obra dessa natureza. Só senti falta mesmo das capas variantes, que são sensacionais, mas tá beleza, vou lançar umas aqui no post heheheheheheh…
Muitos leitores podem confundir a contundência e a falta de pudor para retratar violência nessa HQ com algum tipo de transtorno ou psicopatia do autor. Eu discordo veementemente. Quando muito, o que Piskor fez foi se permitir ser sombrio e não fazer uso de autocensura para que sua história não perdesse o impacto, o que, na minha opinião, foi uma escolha acertadíssima. Red Room é uma excelente HQ e pelos comentários sociais mais do que necessários e urgentes sobre a desregulamentação da internet, que existe há décadas e continua sendo cada vez mais uma terra de ninguém monstruosa, entrou no meu Top 3 de 2024! Indiscutivelmente é uma história tão boa quanto perturbadora, e é necessário um certo estômago para digeri-la, porque é daquelas que ficam ecoando na cabeça por muito tempo depois de finalizada a leitura, quase como um mix de A Serbian Film, The Life and Death of a Porno Gang ,Cannibal Holocaust e O Albergue, tudo de uma vez só na sua cabeça. Mas vale muito a experiência.
Piskor, no fim de sua vida, experimentou sua Red Room pessoal, onde foi torturado até, por fim, optar pela saída do autoextermínio. Tendo errado ou não, foi obrigado a vislumbrar seu abismo pessoal, e o abismo o contemplou de volta. Sabemos como a história de Piskor acabou, e conhecemos seu legado artístico. Separe-se os erros do homem da genialidade do artista e tudo que ele nos deixou em suas páginas. RIP.
Eduardo Cruz (@eusoueducruz)
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