Esses dias eu estava indo trabalhar, meio sem vontade de ir, mas consciente das minhas obrigações. Fui caminhando, no sol quente mesmo, para pegar o ônibus. Odiava ter que sair de 11 e pouca da manhã todos os dias, mas infelizmente isso fazia parte da minha rotina. Esperei cerca de 15 minutos até o primeiro ônibus chegar. Quando subi, senti que as pessoas estavam todas cansadas iguais a mim (o lado bom de usar máscara é que as nossas expressões ficam escondidas embaixo das camadas de tecido), me sentei e fiquei imaginando o que cada passageiro do ônibus fazia da vida, e a razão de estarem tão exaustos. Às vezes a gente até trabalha com o que ama, mas a vida consegue tornar ruim e amargo até o que a gente gosta. Decidi descer. Eu precisava andar mais, porém mas temerosa, porque como mulher, tinha medo de andar em ruas muito desertas. Enquanto caminhava, eu encarava o mar de gente como se eles fossem inimigos de uma batalha que eu iria travar. Embora o sol queimasse a minha moleira, continuei andando muito tranquila, sabendo que apesar do sacrifício de sair muito cedo, ainda conseguiria chegar a tempo no trabalho.
Andando sem olhar para o chão, sem querer tropecei numa coisa, entretanto disfarcei e continuei andando, como se nada tivesse acontecido. Subitamente, os meus passos ficaram lentos e pesados, percebi que algo pressionava o meu tornozelo, olhei para baixo e vi: uma coisa pequena, do tamanho de um cachorro, que segurava em meus pés como quem estava pedindo socorro, mas não falava nada. Entrei em pânico, pois em nenhum momento aquela situação passou pela minha cabeça, porém engoli o meu medo e me abaixei rapidamente para ajudar a coisa estirada no chão. O seu rosto estava desfigurado. Olhando de novo, não podia ser um cachorro, nem um gato, tampouco uma pessoa. Era como um metamorfo, talvez fruto de uma experiência ilegal de laboratório, tipo essas coisas doidas de filmes, não sei por que imaginei algo assim tão específico. O metamorfo estava derretendo no asfalto quente, como se tivesse sido abandonado por algum cientista que percebeu que a sua obra havia dado errado. Fui tomada por um surto de empatia, apanhei a criatura pelos braços e a convidei para a minha casa. De repente, o meu dia acabara de ficar muito interessante! Arrastei a Coisa para a sombra e sentamos na calçada para que ligasse para a minha chefe e avisasse que eu não poderia comparecer ao trabalho naquele dia, porque havia surgido um imprevisto e eu precisaria cuidar desse caso. A minha chefe demorou a atender, mas quando o fez, compreendeu muito bem, porque eu nunca faltava, e me desejou boa sorte. Pedi um Uber, porque o caminho de ônibus seria muito longo e cansativo, e eu não suportaria os olhares daquelas pessoas, encarando a mim e ao meu novo amigo. Quando o motorista chegou, olhou para mim e para ele, como se tivéssemos cometido algum crime, mas logo fui entrando e enfiando a coisa dentro do carro, sem dar tempo do motorista questionar muito.
…
O caminho foi tranquilo, chegamos em casa bem; o motorista puxou bastante assunto, e ao final da viagem, descobri que ele era um cara legal. Além disso, ele pareceu entender o que estava acontecendo naquele momento. Botei a criatura no quintal, e a primeira coisa que fiz foi pegar uma mangueira e dar um banho nela. Nos divertimos muito no banho, ela pareceu gostar. À medida em que as gotas de água caíam sob a pele do metamorfo, ele descamava. Era como se eu estivesse descobrindo uma nova criatura, diferente até daquela que eu havia resgatado da rua; a sua pele era escamosa como a de uma cobra e, enquanto eu o lavava, camadas de couro eram derramadas junto com a água e o sabão. Fiquei tão preocupada que ele estivesse sentindo dor que desliguei a torneira e corri para pegar uma toalha e enxugá-lo. Subimos juntos para dentro de casa, sentei-o na mesa e coloquei um prato de arroz, macarrão e feijão para ele comer, achei que era uma boa decisão, pois ele aparentava estar com fome, mas ele não quis comer. Passei 30 minutos tentando convencê-lo a comer alguma coisa, todavia ele não aceitava nada que tinha em minha casa. Então, perguntei se ao invés de comer, ele não queria dormir. Ele se inclinou para a esquerda e depois para a direita, e eu entendi aquilo como um sim, logo o levei para o meu quarto, e lá ele dormiu.
Passaram-se dias, precisei voltar a trabalhar, mas ele continuou dormindo. Acho que na verdade ele estava hibernando, e eu não ousaria mais tentar acordá-lo. A cada dia que passava com ele hibernando, eu percebia que ele crescia. Isso mesmo: aumentava de tamanho. Eu andava pela casa, levava as mãos à minha cabeça e me perguntava que merda eu tinha pensado ao trazer aquela criatura amorfa para dentro de casa. Pesquisei no Google sobre ele, e não encontrava nada! A ciência não sabia da existência desse bicho, e se soubesse, omitia!
Os dias raiavam e a noite pintava estrelas no céu e o bicho crescia mais… Se engana quem pensou que foi um crescimento absurdamente rápido e inacreditável, pelo contrário: era lento e cauteloso, como se ele estivesse tentando se sentir a vontade para se expandir dentro do meu lar.
Um ano se passou, e aquele foi o pior ano da minha vida! Estávamos no inverno, chovia o tempo inteiro, por isso eu mal saía de casa para trabalhar. As coisas haviam piorado de novo, mas o bicho permaneceu dormindo, nem aí pra nada. Porém agora, ele já estava do tamanho do meu quarto, e eu dormia na sala, isso quando eu dormia! Era enorme a ansiedade de que o metamorfo acordasse e me matasse durante o sono! Eu já não conhecia mais aquela criatura pequena e desnutrida que havia encontrado na rua, ele se transformara num enorme monstro gosmento e preguiçoso, e eu não tinha ninguém para contar o que estava acontecendo ou para me proteger da própria criatura que eu ajudei a salvar.
Há um ano eu mal sorria… Tinha deixado de falar com todos os meus amigos, afastei a minha família com a desculpa de que prezava pela minha saúde, mas na verdade, era porque ninguém poderia saber que eu estava envolvida em um problema naquela magnitude; que eu havia dado lar a um monstro! De repente, ouvi grunhidos incomuns vindos do quarto. Era ele, acordando do seu transe e se levantando lentamente para vir até mim, na sala. Todo o meu corpo se estremeceu com aquela imagem: ele estava mais feio do que nunca, mais irreconhecível, não parecia nem mesmo algo vivo! O cheiro ruim tomou a casa, estava difícil de respirar com aquele odor, mas continuei tentando fingir naturalidade, para que ele não se voltasse contra mim, que um dia ajudei ele.
A criatura levantou-se da cama e veio andando até mim, do jeito esquisito dela, cada passo que ela dava arrepiava uma parte nova do meu corpo. Minhas pernas começaram a tremer, e eu me sentei no sofá, até coloquei uma almofada em cima para disfarçar. “Bom dia! Está descansado?” Eu não tinha respostas. “Você dormiu por um ano e alguns dias” – Eu tremia para falar, hesitante, com medo de falar algo que despertasse sua ira. Continuei sem respostas. “Você deve estar com fome, vou preparar uma refeição para comermos juntos!” Então ele começou a se aproximar de mim, o meu corpo entrou em choque, pois eu não sabia o que ele ia fazer, e aquela insegurança estava me deixando fora de mim. Ao se aproximar de mim, ele me tocou. Com esse toque, eu senti todas as coisas ruins do mundo: fome, tristeza, miséria, guerra, sangue, traição, etc. O toque dele era frio como a morte, parecia até que ele mesmo estava morto. Depois disso, eu senti os meus pulmões se comprimindo para respirar, mas o ar me faltava. Tentei gesticular, explicar desesperadamente para o bicho que eu precisava de ajuda, que estava passando mal e que talvez morresse. Ele não se importou com isso. A falta de ar foi piorando, senti que o meu corpo estava todo buscando oxigênio onde não existia mais… Então o bicho botou o que parecia ser sua mão em minha cabeça, nesse momento eu senti todo o peso do mundo afundar o meu crânio.
Ele queria que eu sentisse, que eu soubesse como era a miséria, a fome, a dor, era como se ele precisasse mostrar para mim que o mundo era uma merda… Isso durou apenas uns dez segundos, mas pareceu uma hora. Depois disso, o Bicho me pegou com os dois braços e lentamente foi me levando até uma fenda, que parecia ser a sua boca. “Ele vai me devorar!”, pensei. O pânico se alastrou novamente pelo meu corpo. Tudo tremia, parecia que eu estava entrando em um colapso nervoso. “Não!!! Não!!! Eu te dei comida, te dei um lar, eu te salvei! Não me mate! Você já tem me roubado de mim aos poucos, já me fez perder tudo o que eu tinha, não tire de mim também a minha vida!” O metamorfo riu, eu senti a minha alma sendo sugada aos poucos pela sua boca. Não era o meu corpo que ele queria, isso ficou claro depois de alguns segundos. Tudo o que eu tinha passado durante aquele ano, todas as vezes que rejeitei pessoas na minha vida, ao mesmo tempo em que eu expulsava as que já faziam parte dela… Todas as noites sem pregar os olhos com medo de morrer, tudo o que eu gostava e deixei de fazer, com medo que ele acordasse e tirasse a minha vida… Aquela já nem era mais eu… Desde que ele entrou em minha vida, me matava aos poucos. Não teve um dia sequer em que ele não tenha se alimentado de mim.
Foram 379 dias morrendo. E agora, ele havia despertado para o seu banquete final.
Tárcyla Arruda
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