Dizem que Al Columbia é um cara estranho, daqueles típicos artistas reclusos, que não vai à convenções, programas de entrevistas, lives ou nada que exija tanta sociabilidade assim. Isso sem falar na fama de Columbia em ameaçar esfaquear seus editores (!!!). É, acho que dá pra dizer que é um carinha levemente perturbado (inclusive nessa entrevista aqui ele comenta sobre ter tido episódios alucinatórios, chegando a ser hospitalizado por conta disso). Mas mesmo sem saber desses (poucos) detalhes a respeito da vida do artista, como foi meu caso antes de ler Pim & Francie, sua arte entrega sua personalidade, digamos, cognitivamente divergente – pra ficar em um adjetivo gentil e não correr o risco de tomar uma facada. Oriundo dos quadrinhos alternativos norte americanos, Columbia está em atividade desde os anos 90 e inclusive, ainda no começo da carreira, trabalhou como assistente de Bill Sienkiewicz e chegou a ser cotado para substitui-lo depois de dois números na lendária Big Numbers, escrita por Alan Moore, uma HQ colossal em 12 edições que não chegou a ter a terceira edição finalizada, edição essa que ficaria a cargo dele, mas nunca chegou a rolar, infelizmente.
Conhecido por seus quadrinhos perturbadores, o leitor com o olhar destreinado ou pego desprevenido que bata os olhos no trabalho de Columbia sem nunca ter tido um contato prévio com sua obra – com um traço que remete aos cartoons do começo do século XX, à arte de Winsor McCay, criador de Gertie The Dinosaur e Little Nemo, ou Max Fleischer, criador das animações de Betty Boop e Superman ou, para cravar uma referência mais recente, o jogo Cuphead – pode cometer o engano de achar que se trata de um revival fofinho da estética cartunesca de um século atrás. Pois olhem novamente com mais atenção. O grotesco e macabro inseridos na obra podem ser sutis a ponto de passarem desapercebidos em um primeiro exame, mas quando notados, são perturbadoramente escancarados. Com temas que vão de assassinato a ocultismo, incesto, maus tratos a animais, aborto, satanismo… O teor me surpreendeu, e olha que eu estava esperando algo um tantinho sombrio, com base no pouco que eu pesquisei sobre o artista, mas nem tanto assim! Pois é, nenhum tema parece ser macabro o bastante para esse autor, pelo visto. Do jeito que a gente gosta aqui na Zona heheheh…
Além de pinturas, arte de sets de filmagens e ilustrações avulsas, Columbia trabalhou em várias revistas e antologias, como Deadline, Zero Zero, Mome, The Biologic Show, The Trumpets They Play, The Best American Comics e Pim & Francie, sua primeira coletânea, que é o material lançado no final de 2023 por aqui pela Editora Darkside. Em Pim & Francie acompanhamos um par de crianças abandonadas cujas travessuras os colocam em apuros horríveis, A dupla apareceu pela primeira vez na história “Tar Frogs” e são os protagonistas em “Peloria Part One” e “Pim & Francie: The Golden Bear Days“. Os dois têm um relacionamento de amigos/amantes/irmãos vagamente definido. De acordo com Columbia, eles foram originalmente inspirados nele e em sua ex-namorada como personagens de desenhos animados.
Mais do que apenas um amontoado de imagens fofinhas de teor pesado, a própria estrutura de Pim & Francie envolve uma espécie de combinação de graphic novel com artbook, uma narrativa tortuosa e aloprada, carregada de horror, humor negro e violência, em uma assemblage de cerca de 240 páginas que reúne HQs e ilustrações compiladas ao longo de uma década. Originalmente lançado pela Phantagraphics Comics em 2009, o livro foi sucesso de crítica, chegando a ganhar uma indicação para o prêmio Ignatz.
A experiência de leitura é bastante interessante. Comecei esperando histórias e tirinhas mais convencionais, mas ao folhear, a coisa mais parecia um sketchbook, até que, algumas páginas depois, “capturei” o fio narrativo e vi a história cuidadosamente inserida no meio daquele caos. Foi uma experiência bem instigante, e mais interessante ainda foi descobrir que a história é puro acidente! Nas palavras do autor, “Pim & Francie é uma daquelas coisas que tem mais fluxo de consciência. Não há narrativa estrutural. Se houver alguma narrativa primordial ou subconsciente – ou uma vibração histórica –, ela foi produzida, eu diria, quase acidentalmente. Eu realmente queria encontrar uma maneira interessante de colar essas peças. Então, comecei com a página um e depois passei para o que parecia ser a próxima – é quase como gravar camadas ou uma mixtape. Foi tudo o que fiz. Apenas apresentei vislumbres da vida desses personagens. Um álbum familiar de momentos absurdos e espontâneos”. Nada que tentar entrar na sintonia do artista não resolva hehehehe.
Aliás, uma coisa bizarra e pessoal que eu comentei com uma amiga, mas decidi relatar aqui é que as histórias enganosamente simples, mas de múltiplas camadas vão criando mais e mais conexões em uma releitura (e Pim & Francie me instigou terminar a última página e começar tudo de novo pra processar o conteúdo) e logo novos elementos surgem, detalhes e até mesmo personagens que não estavam ali. Sério, deu uma leve paranoia quanto ao livro se reconfigurar a cada releitura 🤭.
Nesse tour pela parte sombria da floresta encantada ou pelo porão da casa feita de doces da bruxa, por assim dizer, somos surpreendidos com vislumbres de criaturas sombrias em interações ou sugestões que provocam inquietação, perturbação e medo, muitas vezes contrastando com cenários idílicos ou fabulescos, com histórias a serem lidas entre as camadas, nos sketches rasgados e depois colados novamente, deixando implícita toda uma história de “caderno de serial killer” nas páginas, como se algumas coisas só fizessem sentido para a mente que produziu todo aquele conjunto. Uma densidade narrativa mesclada ao próprio processo de criação desde os rudimentos, a base à lápis, as anotações no canto da página o rascunho não finalizado, as colagens e sobreposições… Tudo compõe a história, o próprio conceito do livro tal como se apresenta é uma história. Uma história que cada leitor vai entender à sua própria maneira, perdido em uma dimensão de fofura, sanguinolência, empalações, mutilações, moedores de carne e muitas, muitas facas, canivetes, cutelos e machados. Em muitos momentos, o traço e a ambientação dão a impressão de se estar em um conto de fadas, mas na parte de pesadelos especificamente, e sem direito a final feliz. Um delírio febril que precisa da ressonância com o leitor para se completar. Em síntese, uma obra de arte, contanto que se tenha o estômago – e nervos – para apreciá-la.
Além da HQ, recomendo também o bizarríssimo perfil do artista no Instagram, o @orangesunshinehouse, e lá dá pra acompanhar o que o artista vem fazendo atualmente, além de possivelmente ser a coisa mais bizarra a passar no seu feed do Insta.
Eduardo Cruz (@eusoueducruz)
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