Na indústria dos quadrinhos eróticos, Guido Crepax tem seu nome destacado pela sua incrível habilidade de produzir histórias consideradas de vanguarda. Arquiteto de profissão e tendo um irmão cineasta que o influenciou na arte narrativa, talvez isso tenha feito com que seus quadrinhos tivessem uma pegada ímpar. Nesta HQ, ele vai muito além do convencional, trespassando o senso moral para abordar um tema que ainda nos dias de hoje é um tabu. Publicada originalmente em 1975, A História de O carrega consigo uma aura de requinte e elitismo europeu sobre o tema. Adaptação do livro de Pauline Réage, traz como personagem principal a figura de “O”, assim chamada em toda a série. Não saber o nome da personagem é proposital e traz impessoalidade, uma característica associada à submissão do BDSM. A HQ mostra a relação de Dominador e Submissa entre René (seu amante) e um terceiro personagem que adentra posterior na série, este o irmão de René, chamado Sir Stephen, formando um triângulo amoroso. A iniciação de “O” passa pela Academia Roissy, onde mulheres são levadas para serem iniciadas e aprovadas nos mais rigorosos campos da tortura física e psicológica. Crepax nos mostra elementos deste submundo requintado onde chicotes, enemas, espartilhos e plugs anais são utilizados para expurgar todo senso moral que uma mulher tem sobre ter uma vida dita normal. Técnicas são destrinchadas na cara do leitor de modo a chocar aquele que não está inserido nesta cultura. As sessões de chicote são particularmente impactantes, mas quando damos um close no rosto e na boca da personagem, vemos uma lascívia com toda aquela aflição.
O leitor tem um choque de dualidades em mente, como alguém é capaz de suportar tanta tortura e ainda gostar? A época em que a HQ foi escrita (1975), tal prática era centrada numa cultura machista e de supressão do desejo da mulher. Mais do que submissão, nós somos capazes de perceber que os homens exercem um machismo um tanto revoltante neste roteiro. No processo de transformação de “O”, acabamos por nos deparar com situações em que ela cria uma certa resistência, mas que pouco a pouco elas vão caindo em nome da submissão. Chega a ser sufocante observar que aquela mulher está sendo suprimida em todos os campos, do intelectual ao sentimental. As cenas de sexo retratadas são bem lascivas e empolgantes como uma boa HQ erótica deve ser, e te pegam pelo desenho notável e explícito, tal qual pela situação em que se desenrola o sexo, você é capaz de sentir a tensão sexual ao observar o desenho, a ação e os rostos expressivos dos personagens.
A conclusão final dessa transformação é de uma mulher que vira uma mera ferramenta ao bel-prazer dos seus donos. A conversão se dá pela submissão, de modo que a personagem consente com tudo o que lhe é imputado a fazer, de modo que ela estar naquela situação não é um fardo imposto, mas algo que ela sempre quis e satisfaz-se com a situação. A depravação além dos limites é o que “O” almejou e nos faz pensar até quanto uma pessoa é capaz de se desconstruir em nome de um desejo. A cena final é emblemática, lhes adianto, e é notável a transformação física pela qual a personagem passa, chegando a obter uma posição de destaque dentro daquele meio elitista. Os donos satisfeitos a exibem como um animal (metaforicamente) domesticado.
A arte de Crepax não é convencional e pode irritar o leitor mais conservador. São planos de enquadramento complexos, às vezes um quadrinho pequeno demais, às vezes vários pequenos quadrinhos na página, com balões de fala muitas vezes exprimindo as emoções dos personagens. Os desenhos em página inteira são um requinte aos olhos e a impressão é que cada uma destas artes pode, individualmente, ser impressa e emoldurada. É importante estar muito atento aos detalhes de cada desenho para que consigamos um aproveitamento do intelecto e destreza do artista. Crepax está nos detalhes, nem sempre o primeiro plano é o diferencial: Olhe nos cantos, olhe nos detalhes e você vai perceber que um artista não se faz apenas da arte principal, mas sim também de uma composição de cenário e objetos dispostos, objetos estes que você deve se atentar mais ainda, pois na prática do BDSM, tais objetos são peça central nesta cultura.
A edição da L&PM Editores conta com uma introdução escrita por Marco Giovannini, que nos presenteia com um panorama extenso com detalhes biográficos do autor e de suas obras, em uma introdução caprichada para fazer o leitor entender melhor quem é e como Crepax veio a ter uma posição de destaque nos quadrinhos eróticos. Mas essa introdução foi originalmente publicada em outro livro do autor, Anita – Uma História Possível (Publicado nos anos 80 no Brasil pela mesma L&PM). Acho que nós temos profissionais do ramo dos quadrinhos que conhecem Crepax e poderiam fazer uma introdução especialmente para esta HQ, isso certamente traria um senso de coesão maior a edição. Dito estas últimas palavras, eu diria que sendo fã ou não de histórias eróticas, você deve conhecer o trabalho de Crepax. Vale cada centavo investido.
Texto por Conde
L&PM Editores.
184 páginas. Capa cartão, papel off-set, formato 16×23 (Livro).
R$ 38,00
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