“Pode soar exagerado, para quem o orgasmo e a masturbação são rotineiros desde a infância e compreendidos como naturais, mas para mim e para outras mulheres com vulvas, ter prazer em se masturbar e gozar sozinha representa um dos passos mais importantes na emancipação sexual. Significa que nosso tesão não depende de outro corpo para ser satisfeito. A autonomia no sexo é real, explorar a relação sexual em busca de afeto ou simplesmente aliviar-se com um orgasmo casual são alternativas possíveis.”
A autora Lovelove6, na introdução do encadernado
Desnecessário avisar, mas pelo título, já deu pra perceber que o assunto pode ser um tanto agressivo para certos(as) leitores(as).
Entretanto, não deveria ser assim. Mas não se preocupe, a culpa não é sua. O trabalho de demolição de certos conceitos absurdos que inculcam na gente desde criança começa agora!
Se você não se incomodou com o título lá em cima, deveria ler Garota Siririca, independente do sexo, mas logicamente, se for menina, vai rolar aquela identificação com a personagem principal, que só existe pra validar que o conhecimento autoerótico é importante e necessário SIM. Agora, se você se incomodou com a temática que a HQ aborda, se só o título já escandalizou, aí é que você tem que ter contato com esse material MERRRMO!
Mas afinal, o que é a Garota Siririca? Uma super heroína nova???
De certa forma sim, se você considerar como trabalho super heróico o serviço de desconstrução no inconsciente popular a respeito desta visão medíocre e extremamente limitante da sexualidade feminina como algo sujo, impróprio, nocivo e inadequado. Esse dogma social de que a sexualidade do homem é ilimitada (pode tudo! até esporrar no pescoço de desconhecidas no ônibus! PQP, que judiciário é esse, mano… ainda não assimilei essa decisão salomônica…), mas a mulher precisa permanecer pura, casta e recatada. Então, sim a Garota Siririca É uma super heroína, e sua luta é árdua: a busca do prazer próprio e a erradicação da ignorância a respeito do próprio corpo, a afirmação do amor próprio, de gostar de seus próprios cheiros, seu próprio gosto, ouvir suas próprias vísceras e conhecer seus ciclos. Gozar sem culpas. Essa é uma batalha inspiradora que toda garota deveria travar e vencer. O mundo seria bem menos neurótico, creio eu.
Mas falemos de seu alter ego, a quadrinhista, ilustradora e artista plástica Gabriela Masson, ou Lovelove6, ou lvlv6. Essa mana sempre teve como o foco de seu trabalho artístico a exploração da sexualidade feminina e as relações sociais de poder decorrentes desse sexismo tão grotescamente naturalizado nas bases da nossa sociedade. Gabriela começou ilustrando alguns fanzines, como o Artemis, e algumas webcomics. Inicialmente, Garota Siririca saía como uma dessas webcomics, e ilustrava as próprias aventuras masturbatórias da artista da infância à idade adulta (sim, crianças se masturbam! você não se lembra da sua mãozinha mexendo dentro da fralda????), suas descobertas com relação e este libertador contato íntimo consigo mesma, suas experimentações com brinquedos sexuais, inclusive acenando a possibilidade da cannabis sativa como mais um canal para incrementar todo esse prazer – dizem que a erva, além de ampliar a acuidade musical de quem a utiliza, tem efeitos afrodisíacos!!!
Lovelove6 fez tudo no estilo Grant Morrison de Traje Ficcional, ou sejE: a forma com que o autor se insere dentro de sua própria obra 2D (as histórias em quadrinhos), vivenciando as situações criadas por ele(e) próprio(a). É vestir o personagem para circular dentro da paisagem fictícia, basicamente. Posteriormente a Garota Siririca deixou de ser um avatar exclusivo de sua criadora e foi ampliada para retratar experiências de outras mulheres que a autora admira. Com o tempo, ainda foi adicionada mais uma camada à HQ: O viés político da obra, o que era realmente de se esperar, visto que é uma questão social delicada, que motivou a autora a quebrar todo esse silêncio e falta de informação em relação à masturbação feminina. Após publicar diversos episódios de Garota Siririca no blog da revista Samba entre 2013 e 2015, Lovelove6 iniciou a captação de recursos via Catarse para publicar esse álbum, que reúne vários episódios da webcomic pela primeira vez em uma edição física. O resultado é uma encadernação em brochura colorida, com papel em alta gramatura. Um belo trabalho gráfico, onde atestamos que a arte de Gabriela funciona tanto no monitor quanto no papel, com sua técnica mista de grafite, canetas de diversas espessuras, o que faz com que seu traço seja bem versátil, e colorização via Photoshop. Além disso, o fato de a HQ ter conseguido ultrapassar a meta inicial de financiamento é um termômetro que indica que esse nicho tem público e é muito bom ver nossa produção independente nacional cada vez mais diversificada!!!
“A intenção de publicar a Garora Siririca é que este material desperte a curiosidade de mulheres a respeito de suas corpas*. Que façam mais amigas, mais alianças, mais quadrinhos ou quaisquer outras coisas, entre mulheres. Aumentar a representatividade, apostando na construção de um imaginário feminino feminista.”
A autora Lovelove6, na introdução do encadernado
* corpa é um termo original do lesbofeminismo latino. A intenção em seu uso é reconhecer o corpo da mulher como território político e marcar uma dissidência em relação às normas do heteropatriarcado.
Destaque aqui para a trilha sonora de Garota Siririca. Isso mesmo! a banda Belicosa, composta por minha amiga Letícia Lopes, e mais Fefê, Bonnie, Prisley e Sofia. Elas compuseram uma faixa título especial para a HQ, na vibe Riot Grrrl perfeita para acompanhar a leitura do gibi. Deixa aí um gosto de quero mais. Poderia ser um EP. Ou melhor, por que não um álbum conceitual inteiro dedicado à Garota Siririca??? pensando bem, um álbum duplo! De qualquer forma, brincadeiras à parte, essa colaboração intermídias entre as manas é sempre algo que me deixa bem animado, e só acrescenta pontos de consistência à obra!
Por fim, desencanem com o papo furado de culpa e pecado e inferno e blábláblá por um instante e considerem isso: Se masturbar (também) faz parte do ritual de autoconhecimento humano. Assim como lemos livros, ouvimos música, viajamos, fazemos ioga, usamos drogas, praticamos bungee jump ou mesmo que só fiquemos sozinhos, quietos em um canto, no fim das contas, com o foco correto, tudo serve à jornada da auto descoberta. Nenhum momento é desperdiçado e tudo que vivenciamos acaba por nos construir como pessoas. Negar esse impulso é optar pelo esvaziamento de si mesmo, é não gerar o próprio conteúdo para se preencher, é, de certa forma, não desenvolver uma parte integrante de sua identidade, e, em última análise, não saber quem é. Então meu conselho pra vocês? Parem o que estão fazendo e vão bater uma. E depois disso vão ler garota siririca. Quem sabe vocês não aprendam uma coisinha ou duas…. e um grande “FODA-SE!” a quem quer cercear e fiscalizar a maneira como queremos nos relacionar com nossos próprios corpos!
Há um mangá interessante que serve como contraponto masculino ao tema — Self, de Yukizou Saku. Não tem imagens tão gráficas mas achei que valia a pena a menção.
Aliás, ele tem uma das cenas mais involuntariamente engraçadas que já li em quadrinhos: ele foi iniciado ainda moleque por uma mulher mais velha — que jogou essa frase para cima dele: “você sabia que somos escravos de nossos genitais?”
Muito interessante! Vamos procurar essa parada ae pra dar um confere. Valeu pela dica!!!