“Não é assim que o mundo acaba!“
Imhotep, polímata egípcio da Terceira Dinastia e conselheiro do faraó Djoser
Em 2007 o roteirista superstar e queridinho de 9 entre 10 leitores de HQs mainstream atualmente, Jonathan Hickman, começou sua trajetória na Marvel. Por volta de 2010, depois de um punhado de histórias curtas com personagens menores da editora, Hickman começou a brilhar mesmo depois de uma passagem pelos títulos do Quarteto Fantástico e da Fundação Futuro. Na sequência, Hickman continuou sua trajetória de arquiteto do universo Marvel com os títulos The Ultimates, Vingadores e Novos Vingadores – que gerou as mega sagas Infinito e Guerras Secretas – além de mais recentemente estar à frente da linha mutante da Marvel. No meio de todo esse intenso fluxo criativo, uma pequena HQ passou quase despercebida da maioria dos leitores, mas quem deu a sorte de olhar pra esse cantinho mais escuro da Marvel teve contato com um ótimo material.
S.H.I.E.L.D., da dupla criativa Jonathan Hickman/Dustin Weaver foi um título pequeno, totalizando treze edições, mas enorme em termos de enriquecimento de elementos em um universo ficcional que já carregava em si mais de 80 anos de cronologia, e pleno da ambição que seu roteirista demonstraria mais e mais frequentemente em sua bibliografia. Não é a obra prima que define o universo Marvel, mas como entretenimento de massas certamente se colocou acima da média da maioria dos comics da indústria, e vamos espiar o que fez desse gibi semi obscuro da década passada algo digno de menção.
A Máquina Humana, A Máquina Noturna e o Doutor Manhattan da Marvel
E SE a S.H.I.E.L.D., tradicional agência de inteligência e espionagem do universo Marvel, tem origens que remontam a antes, beeeeeeeem antes do pós segunda Guerra Mundial? Em um retcon bem sacado, Hickman apresenta uma nova visão sobre a origem de uma organização que ficou cimentada na cultura pop, principalmente depois dos filmes do MCU e de ganhar uma série própria na TV.
A HQ S.H.I.E.L.D. durou apenas duas ‘temporadas’ de 6 edições e mais um especial one shot. Mesclando momentos de teoria da conspiração, sociedades secretas que encapsulam toda uma vibe de “A história secreta por trás da história do mundo”, no melhor estilo Planetary (ainda que menos complexo e não tão milimetricamente executado quanto a obra prima de Warren Ellis) e bons momentos massavéio (pro leitor se lembrar que é uma HQ da Marvel), a S.H.I.E.L.D. de Hickman/Weaver é uma boa saga que apesar de não ser perfeita (porque Watchmen, só existe um! 😎) certamente tem seus pontos altos!
“Tá, mas cadê o Nick Fury???”
“Então é um gibi contando mais uma história de Nick Fury, Maria Hill, Greg Coulson e etc? Onde tá a novidade nisso, se o Jim Steranko já fez a história definitiva sobre a superagência de espionagem?“, vai perguntar o leitor exigente da Zona Negativa. Bem, acho que a primeira coisa a ser feita pra curtir a história é esquecer um pouquinho dessa S.H.I.E.L.D. nutella. Hickman aborda os primórdios da organização, a RAIZ da organização.
O que faz de S.H.I.E.L.D. algo tão formidável e acima da média é basicamente, a mesma fórmula que Hickman já utilizara em outros títulos como Projeto Manhattan ou Black Monday Murders: Uma mescla inteligente entre ficção e história real. Assim, pelo menos pra mim, o que explodiu a minha cabeça desde o primeiro contato foi ver como Hickman gera a interação entre figuras históricas e personagens fictícios com tanta maestria, e é isso que engrandece e muito o gibi. Não é todo dia que se abre uma HQ onde vemos por exemplo, o cientista Nikola Tesla brigando com o pai do Homem de Ferro nos anos 50, Galileu Galilei repelindo uma tentativa (talvez a primeira) de Galactus se alimentar da Terra em sua época, Michelangelo Buonarotti, a Tartaruga Ninja o escultor, bancando o Doutor Manhattan da Marvel, Nostradamus prevendo o advento do Capitão América, X-Men e outros super humanos ou Isaac Newton acasalando com uma fêmea deviante e lutando com Leonardo Da Vinci pelo controle do que viria a se tornar a S.H.I.E.L.D. como hoje a conhecemos, com seus Modelos de Vida Artificial (Inventados por Da Vinci, a propósito 😉) e os Aeroporta-aviões. E quem é Nick Fury perto do pintor da Mona Lisa rs?
Segue a tradução de um pequeno resumo de um dos encadernados, só pra vocês terem uma ideia da doideira (no melhor sentido possível!) que envolve essa série:
“Desde que Imhotep conteve a invasão da Ninhada ocorrida em 2620 A.C., uma organização tomou para si a responsabilidade de salvaguardar a humanidade contra ameaças conhecidas e desconhecidas. Eles são segurança, eles são abrigo… eles são o Escudo. Esse chamado grandioso foi passado à frente, de geração em geração, de Imhotep a Leonardo Da Vinci a Galileu. E agora, está sendo passado a um jovem chamado Leonid.
O alto conselho da ordem do Escudo, a Cidade Imortal preservada bem abaixo de Roma, é governada pelo imortal Sir Isaac Newton. Ele instruiu Leonid na história oculta do mundo. Contudo, a posição de Newton, tanto como líder do Escudo quanto como mentor de Leonid é ameaçada pelo retorno de Leonardo Da Vinci. Representando duas filosofias opostas, Da Vinci e Newton começam a reunir seguidores… e o conflito aumenta entre eles, eventualmente levando à batalha.
Enquanto Leonid tenta descobrir uma maneira de sufocar o conflito, ele se depara com outro membro da Irmandade: Michelangelo Buonarotti.”
A HQ teve uma ótima recepção dos críticos e dos leitores na época, alcançando altas notas entre os reviews, digo, altas MESMO, como não estamos acostumados a ver todo dia, em sites como o Comic Vine, Goodreads e Comic Book Roundup, por exemplo. A HQ ficou em hiato por vários anos, com as duas últimas edições inacabadas em stand by, até que finalmente em 2018, após Hickman e Weaver acertarem suas agendas e terminarem a produção dos derradeiros números, a HQ ganhou uma conclusão (quase) à altura da expectativa que vinha gerando desde 2010, com uma resolução de confronto ocorrendo em três linhas temporais simultaneamente! Como eu disse, nada menos que ambicioso.
Uma ressalva que eu sou obrigado a fazer é com relação à pouca quantidade de personagens femininas na trama. Dá uma sensação de ‘clube do Bolinha’, pois vemos duas ou três personagens femininas, pelo que posso me recordar, sem muita relevância e com um papel de mãe de personagens maiores, sem grande peso na trama. Um vacilo do Hickman, creio eu, com tantas figuras históricas femininas para se incluir na trama, fiquei na vontade em ver Joana D’Arc ou Cleópatra – isso pra ficar nas manjadas! – causando na Marvel….
A arte de Dustin Weaver é primorosa, riquíssima. Assim como Hickman foi ambicioso em contar sua história, Weaver segurou o tranco na parte que lhe cabia e nos entregou páginas e páginas lindas de chorar ao expandir o Universo Marvel para fronteiras nunca imaginadas. Weaver é um daqueles desenhistas que passam a impressão de serem capazes de desenhar TUDO! Justo o que uma história grandiosa dessas pedia…
Infelizmente, a Panini mais uma vez dorme no ponto: Essa maravilhosidade nunca foi publicada no Brasil, apesar das estreitas relações com Quarteto Fantástico e menções de leve em um ou dois momentos de Vingadores/Novos Vingadores, títulos também conduzidos por Hickman. Então a solução é recorrer a meios alternativos pra ler esse material, não nos resta escolha…
Construída com a engenhosidade do Homem Vitruviano, uma pitada de beleza e mistério como o sorriso da Mona Lisa e tão empolgante quanto as HQs da era de prata, ao mesmo tempo em que aponta um – sempre bem vinda! – respiro dentro das HQs mainstream contemporâneas, a S.H.I.E.L.D. de Hickman/Weaver reverencia o passado e sinaliza o futuro.
Essa HQ tinha que sair no Brasil. Panini nunca vai lançar essa joia
E se sair vai ser a preços altamente proibitivos!