CONTOS DA ZONA: Demonologia da Prosperidade.

1. Parque Perfeição

Sabe quando, nos filmes de terror, acontece uma merda estranha e logo mandam o FBI ou o exército interceder? Na vida real é diferente. Na vida real, quem se fode primeiro sou eu. Ou vocês acham que no Brasil existe um grupo de elite altamente treinado para emergências fora do normal? QUE NADA! Quem chega primeiro sempre são os PMs ou os Bombeiros. E às vezes a situação é tão bizarra, tão fora de qualquer parâmetro que não existe qualquer treinamento pra preparar os agentes da ordem pública pra encarar certas coisas… E certamente não somos remunerados à altura pra enfrentar essas situações.

É estranho e hediondo perceber que existem coisas na vida que são maiores que a vida em si. Quando acordei naquela manhã minha maior preocupação era como fazer meu salário esticar o suficiente pra dar conta das despesas do mês, levar a Mariângela pra sair, pagar a escola dos meninos… Agora sei que essa realidade caótica aqui, onde a sobrevivência está sempre por um fio, é uma bolha de paz que alguns insistem em furar, trazendo caos e horror indescritíveis, uma bolha fina como se feita de sabão…

Atendemos a ocorrência por volta das duas e quarenta da manhã, na comunidade Parque Perfeição, uma pequena favela que fazia o nome parecer uma piada de mau gosto. Lixo acumulado nas esquinas, esgoto a céu aberto, usuários de drogas se amontoando nas calçadas… Parque Perfeição era deplorável em todos os sentidos, e o relato era de que havia uma possível desordem, ou episódio de violência doméstica, ou… enfim, os relatos eram incertos. O pouco que o distrito sabia e nos repassou era que uma viatura já se encontrava no local, bem como uma ambulância dos bombeiros, mas como não houve resposta de nenhum deles, reforços haviam sido solicitados. Nós éramos os reforços. Nossa presença era requisitada, mas não sabiam ao certo do que se tratava a ocorrência. Essa parte era com a gente. Quando eu e Pereira chegamos, foi fácil encontrar o local: Além de alguns curiosos, as viaturas estavam paradas na entrada da comunidade, em uma ruela próxima ao local da suposta ocorrência.

Ao descermos da viatura, antes mesmo de vermos qualquer coisa, sentimos o cheiro: Pungente e agressivo. Nunca senti nada parecido. Um odor almiscarado muito forte, misturado a um cheiro de podridão intenso e mais alguma coisa que não sou capaz de definir. Os moradores, sempre muito curiosos em casos assim, estavam afastados do tal barraco, aterrorizados. Todos os vizinhos que se arriscaram entrar no barraco não retornaram, o que tornou a situação ainda mais bizarra. Porém, mesmo se recusando a se aproximar do local, nos deram indicações de como chegar ao tal barraco.

Em uma rápida troca de informações, ficamos sabendo que a família que ocupava aquele barraco em questão já residia ali há alguns anos, vindos de outra parte da cidade. Não se destacavam dos outros moradores, apesar de serem alguns dos mais desprovidos materialmente ali naquele lugar, onde todos eram paupérrimos. A família trabalhava com reciclagem de lixo, catando os refugos pelas ruas e vendendo nos ferros-velhos. Eram três pessoas, um casal e um filho de aproximadamente treze anos. Fizeram parte de uma congregação evangélica em um bairro próximo, mas como as promessas de prosperidade do pastor nunca se concretizavam, haviam abandonado a igreja há alguns meses. Eram reservados, falavam e interagiam pouco com os vizinhos, apesar de não demonstrarem nada incomum além da pouca sociabilidade. O garoto não era matriculado em escola alguma, e assim viviam, sobrevivendo, ganhando o suficiente apenas para a próxima refeição. Alguns vizinhos mais maledicentes diziam que a tal família, a qual ninguém sequer lembrava dos nomes, havia, nos últimos meses, se tornado dependente de crack e outras substâncias, vivendo em condições subhumanas. Demos um basta nos boatos e conjecturas e sem perder tempo continuamos a incursão para apurarmos os fatos.

***

2. Estranha Carne

Andamos por duas ou três ruelas curtas e as indicações que os moradores nos deram de como chegar ao local eram desnecessárias: Seguindo os sons, deduzimos qual seria o tal barracão. A algazarra era pavorosa, e quando Pereira me encarou, de arma na mão, pude ver medo em seus olhos. Talvez eu tenha demonstrado algo parecido pra ele, porque eu não estava nada confortável com a situação e fazia um esforço imenso para continuar firme nas pernas. Não sei explicar, mas havia uma aura pesada nisso tudo, e já estava nos afetando com força. Nosso treinamento não dava margem para o pavor, e mesmo assim, ele se insinuava cada vez mais forte, incontrolável. Ignoramos essa sensação crescente o melhor que pudemos e prosseguimos. Logo encontramos o tal barracão da família. A porta encostada, claramente destrancada. Pereira e eu nos entreolhamos novamente. Eu abriria a porta enquanto ele entraria na frente, realizando a varredura e dando o comando para rendição de qualquer possível meliante, comigo entrando logo atrás, resguardando assim os flancos e a retaguarda do colega.

Abri a porta e Pereira adentrou o recinto. Os sons pavorosos aumentaram ainda mais de intensidade com a porta escancarada. Segui já trêmulo os passos de Pereira, fazendo a varredura do local: O barraco não tinha divisões de cômodos e era muito sujo e mal iluminado. Observei alguns colchões com lençóis sujos e amarfanhados em um canto, roupas espalhadas pelo chão por toda parte, inclusive algumas fardas da PM e dos Bombeiros, uma mesa e um fogão do outro lado e um filete de esgoto correndo no chão de terra batida no meio do barraco. Ao lado do filete de esgoto, algo que meu cérebro não conseguiu registrar a princípio: No centro do barracão havia um círculo traçado no chão com as bordas demarcadas em alto relevo, como se fosse uma corda esticada em forma de círculo, velas acesas em volta da tal corda, e no centro, a fonte de todos aqueles sons grotescos e abomináveis: Um emaranhado de carne pulsante que se esticava até o teto, lambendo as telhas de amianto. Um pilar obsceno de onde brotavam rostos, braços, pernas, seios, bocas horrendas e genitálias latejando, expurgando e mudando constantemente de forma, como se a matéria que compunha aquela coisa abominável fosse um líquido imitando carne e pele e músculos e nervos. Nada mantinha a mesma aparência por mais do que alguns segundos, e os sons horríveis, agora bem mais claros, emanavam de todas essas bocas que saíam do pilar de carne: Urros animalescos, gemidos de prazer intenso, cânticos em línguas estranhas e outros sons indescritíveis. Tudo isso formava uma cacofonia demoníaca, de deixar os nervos de qualquer um em frangalhos. Os gemidos de prazer eram os mais perturbadores, como se aquela abominação fosse a conjunção carnal suprema, uma grande orgia em um único corpo grotesco que borbulhava, ondulava e mudava suas formas sem parar nenhum momento, todas pavorosas. E os rostos que brotavam da coisa… Acho que reconheci os colegas que fizeram a incursão antes de nós, o que explicaria as fardas no chão. Enlouquecedor e além de qualquer horror que eu pudesse ser capaz de imaginar até então. Pereira estava visivelmente transtornado, mudo de pavor, visivelmente tendo mais problemas do que eu pra processar aquele horror indecente à nossa frente.

Em um canto, reparei que havia um livro estranho, com aparência de antigo, aberto próximo ao círculo. Tão estranho quanto a própria criatura era um livro antigo dentro daquele barraco. Daí foi fácil de deduzir que o livro tinha alguma coisa a ver com tudo isso. O mais perturbador é que quanto mais nos aproximávamos daquela coisa, mais excitado eu me sentia. No sentido sexual mesmo. Era inconcebível pensar na possibilidade de se sentir excitação sexual em um cenário tão grotesco assim, mas só aquela loucura se retorcendo a três metros de nós explicaria isso. Os cheiros, os gemidos, o calor dentro do barraco… Senti uma lassidão imensa, suando, sentindo minhas partes intimas formigando….. E só despertei quando ouvi os urros de Pereira, que tinha se aproximado demais da borda do círculo, que a julgar pelos cílios e dentes, na verdade era uma boca…. Ou observando com mais atenção, lembrava uma grande vagina, pulsante e úmida, brotando do chão.

Eu seria capaz de arrancar as minhas roupas e me jogar ávido naquelas bocas e orifícios monstruosos, tamanho era o tesão me arrebatando, se Pereira não tivesse feito isso antes. A forma como ele se fundiu à coisa, como ele foi…. engolfado…. Seus urros, que desconcertantemente sugeriam um prazer imenso, e a certeza de que aquela fusão prometia êxtase…. Isso acabou me despertando momentaneamente, tempo o suficiente pra que eu conseguisse pensar em uma maneira de sair dali. E teria que ser com o máximo de destruição possível. Olhando em volta, na casa desprovida de tudo, só vi as roupas pelo chão, as velas, o livro…. e o botijão de gás. Disparei contra o botijão, o silvo agudo do gás pressurizado escapando, se espalhando naquele espaço pequeno. Parei apenas para pegar o livro estranho e saí em disparada.

***

3. Rescaldo

O colapso daquilo implodindo pra fora desse mundo engoliu o barraco e tudo mais em um raio de cinquenta metros à sua volta. Mal consegui escapar. A versão oficial diz que foi um deslizamento de uma galeria subterrânea que cedeu, mas quem estava lá sabe a verdade. Claro que ninguém vai contar o que realmente aconteceu por ali. Entre a verdade absurda, que apenas traz descrédito e incredulidade a quem a conta, os calabocas e promoções para amarrar firme a mentira e as ameaças de morte aos revoltados na comunidade que queriam divulgar a versão deles, a rotina seguiu na cidade, com o sol nascendo pra todo mundo. Menos para quem foi engolfado por aquela coisa repugnante que brotava do chão. Os pobres coitados que moravam naquele barracão deplorável, os vizinhos que foram investigar e outros em volta tiveram tudo engolido por aquela imensa boca-vagina, inclusive os documentos e pertences. Nunca vão ter a identidade oficialmente confirmada. Os ninguéns que ignoramos todos os dias apagados horrivelmente da nossa realidade.

Tem gente que nasceu pra se foder na vida. Se foderam quando nasceram no fundo da pirâmide social, se foderam quando, tentando se libertar desse padrão cruel, foram explorados por abutres da fé alheia que prometeram riquezas em vida em troco do pouco dinheiro suado que eles tinham, e se foderam de vez quando não receberam instrução formal o suficiente pra ler e interpretar o que estava nas páginas de um livro profano e foram transfigurados horrivelmente e por fim engolidos, levando junto com eles nove de meus colegas, seis bombeiros e cerca de quarenta moradores.

4. O Arrebatamento da Cabra

Levei aquele livro para minha casa. O escondi na garagem, e com cada vez mais frequência tenho acordado de madrugada pra não chamar a atenção da Mari e as crianças. Lendo, estudando. Pesquisando. Li muito a respeito de Shub-Niggurath. A Cabra Negra da Floresta com Mil Crias. Segundo o livro (que aliás, se chama Necronomicon) Shub-Niggurath é um aspecto selvagem do próprio universo, que rege a fertilidade e transforma tudo que cruza seu caminho. Estudando tudo que o livro trazia sobre o ente infernal, descobri que aquilo que vimos escancarado no chão no meio do barracão era uma fração ínfima que os infelizes conseguiram manifestar da criatura ali, naquele espaço imundo e miserável, não atendendo todas as exigências que o ritual demandava. Altamente ignorantes, altamente descuidados. E olha o estrago que a coisa causou. Aqueles coitados, em desespero, simplesmente abriram o livro e realizaram o primeiro ritual que viram pela frente! Só poderia terminar em merda mesmo. Mesmo assim, seria muito pior se eles soubessem o que estavam fazendo e Shub-Niggurath conseguisse se manifestar em sua totalidade. Além disso, Parque Perfeição ainda sofre os efeitos macabros dessa visita breve: Os animais da localidade deram à luz a crias com características anormais e as crianças também têm nascido com anomalias medonhas, deformidades que as deixam com a aparência mais grotesca possível, como aqueles fetos anômalos que vemos no formol em hospitais e museus. Só que não nascem mortos. Segundo o livro, isso é conhecido como O Arrebatamento da Cabra. A próxima geração a viver em Parque Perfeição vai tornar a piada com o nome da comunidade ainda mais cruel do que já era.

Mas eu não vou fazer merda. Estou lendo esse livro com muita calma. Sou cuidadoso, prudente. Num volume reunindo invocações de entidades tão poderosas, é só uma questão de pensar grande! Esse é o fim das preocupações com grana! A prosperidade bateu na minha porta! Não sou um miserável desdentado semianalfabeto qualquer! Vou conseguir poder, fortuna e quem sabe até imortalidade! Assim que eu decidir entre esses dois aqui…. Azatoth… ou Yog-Sototh? Acho que vou me dar muito bem com um desses dois…

Eduardo Cruz (@eduardo_cruz_80)

Os Contos da Zona são histórias escritas pelos membros da Zona Negativa, com o objetivo de expandirem a produção de conteúdo para além das resenhas. Assim sendo, esperamos proporcionar boas experiências de leituras e reflexões. Deixe seu comentário 😁

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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