CONTOS DA ZONA: Genésio Dente de Faca.

Apesar de todos esses anos ainda não me acostumei com o lado de cá do espelho. Acho que nunca vou me acostumar. Não sei se é assim pra todo mundo depois de morrer, pelo menos comigo tudo aconteceu de repente, tudo muito rápido. Numa hora eu estava na Terra, aproveitando os prazeres da vida, fazendo as minhas coisas do jeito que eu achava que devia fazer, vivendo sem ser escravo de nenhuma das regras inúteis da sociedade. Um instante depois…. aquela covardia que fizeram comigo! Disseram que foi justiça, toda a longa sessão de tortura e o linchamento logo em seguida, lento e doloroso. Covardes desgraçados! Daí vim parar aqui. Do outro lado do espelho. Onde os espelhos não refletem, mas onde vemos tudo que é refletido neles.

Foi a melhor coisa que me aconteceu.

Vejo tudo que vocês fazem na frente do espelho. E enquanto observo, espero finalmente ser chamado um dia. Invocado de volta pro lado de vocês, mesmo que só por alguns instantes.

Você pode levar horas e horas para nascer, mas morrer é muito mais rápido. Pra morrer basta piscar os olhos e JÁ ERA! Acontece. Por isso o que eu fazia era tão importante. A vida como EU escolhi levar precisava ter mais cor, mais sabor, mais… substância! Logo cedo aprendi que para isso eu não poderia viver como o resto do gado vive; os mesmos ciclos de mediocridade, as mesmas decisões que sempre levam a rumos previsíveis, a vida pálida que todos vivem contentes… o máximo que eles podem ter é pouco mais do que nada! Isso não me satisfaz! As opções eram muito poucas, mesmo que mais amplas para mim, e eu tinha necessidades mais… elevadas. Determinei ainda jovem que eu é que não ia me acabar no esquecimento.

Se eu tinha certeza de que era muito mais do que a ralé, eu precisava de meios pra não ter um fim igual a toda essa carne inútil que anda pela Terra a pastar. Na capital, enquanto eu era estudante, busquei conhecimento onde pudesse alcançar: livros, manuscritos, diários “desaparecidos” de pessoas consideradas infames, execráveis e excomungadas do mundo dos medíocres, pessoas que como eu se recusaram a aceitar o destino comum de toda a humanidade. Fui a lugares inóspitos e perigosos, onde poderia ter a minha garganta cortada só de perguntar a respeito de certos itens. Subornei, furtei, gastei todo o patrimônio que herdei da família com livros ‘malditos’, livros que a maioria não suportaria ler uma página sequer, textos profanos que me forneceriam uma trilha para superar a morte física, deter a dissolução da consciência que ocorre depois que o corpo físico expira. Se a morte era inevitável, eu precisava saber como continuar a existir depois dela. Eu me dediquei a pesquisar isso. Era minha obsessão. Superar a morte física.

Com esses fragmentos de conhecimento em mãos fui me aprofundando em minha pesquisa, aprendendo e trilhando o conhecimento que, esperava que me levasse ao meu objetivo. Mas esse tipo de conhecimento, para trazer poder realmente, precisava ser validado por certos…. procedimentos. Tive que barganhar com inteligências desincorporadas, habitantes de esferas tenebrosas, entidades onde empregar termos como “anjo” ou “demônio” não davam conta de definir.

Sim, é claro que eles pediram coisas que o gado medíocre consideraria horríveis e impensáveis nessas barganhas por poder e vida eterna. Tive que realizar sacrifícios. No começo, eles pediram coisas insignificantes: animais pequenos, filhotes de cães e gatos, um bode preto, um novilho branco. Em seguida demandaram auto sacrifício, e tive que extrair pedaços da minha própria carne, como minhas cicatrizes pelo corpo inteiro e meus pés e mãos com menos dedos podem comprovar. Por fim eles exigiram crianças, mulheres, pessoas frágeis e inocentes. Gado pra abate.

Eu conseguia sentir a mudança na minha carne, pouco a pouco. Eu estava mudando, sentindo uma fração mínima de poder deles sendo dado a mim. A princípio era muito sutil, não passava de autoconfiança, de olhar os outros de cima. Acho que essa foi a porta de entrada pro Inferno, olhar os outros de cima. Depois dos auto sacrifícios, dos dedos amputados, de lixar meus dentes para que ficassem pontiagudos eu sentia o respeito e mais doce ainda, o MEDO das pessoas do vilarejo. Eu até tinha um apelido que os idiotas me deram: Genésio Dente de Faca.

Estava dando certo! Eu teria poder real nesse mundo de vítimas pálidas! Todos já me olhavam diferente. A cabecinha deles não consegue conceber o que eu estava almejando, pra eles era mais simples pensar que eu era um louco, mas eu sentia! Sentia minha essência…. crescendo e se modificando. Por dentro, eu estava aos poucos abandonando o que ainda tinha em comum com o gado para virar algo mais! Depois dos primeiros bebês, um casal de irmãos de 3 e 5 anos, fáceis de ludibriar e levar até o barracão do meu sítio, onde eu fazia meus…. tratos. Eu já me sentia acima da humanidade! Minha autoconfiança estava altíssima! Eu sentia que nada nem ninguém desse mundo poderia me fazer mal! E foi aí, quando chegava com um recém nascido escondido em uma bolsa para selar mais uma etapa do meu grande acordo, que fui encurralado pelo povinho do vilarejo, que fazendo o que eles entendiam por “justiça”. Em meu barracão viram os círculos desenhados em sangue, as velas, as imagens de barro e chumbo, os pedaços de corpos desaparecidos com marcas de mordidas. A minha mordida. Não tiveram dúvidas: Me espancaram e me despedaçaram, incineraram os restos e enterraram o que sobrou em uma mata qualquer.

Logo depois dessa violência vim parar atrás dos espelhos. Aqui é muito grande e muito escuro. Espelhos sem fim se enfileirando, todos suspensos feito janelas flutuando no vazio. A única luz vem de cima, mas sem nenhuma fonte que possa ser discernida. Uma luz pálida, fria e mortiça, não muito forte, criando uma penumbra que faz tudo ficar tenebroso. Não dá pra ver nada de longe, a não ser um recorte ou outro no ar, indicando mais e mais espelhos flutuantes, infinitos.

E nesse espaço imenso, com essa luz difusa, luz o bastante pra ficar vagando por aqui, vendo o que parecem ser todos os espelhos do mundo, foi que eu conheci outros como eu. Outros que barganharam o bastante para conseguir parar aqui. Outros que cometeram atos contra o gado que causaram pesadelos nos adultos e terror nas crianças por várias gerações. Outros cuja história reverberou através dos anos, à boca miúda, atribuindo a eles uma malignidade fora da condição humana. Outros bichos papões. Aqui eu conheci Benedito do Mato, que aterrorizou o interior baiano oitenta anos antes de mim. Ou a Bruxa do Arco do Telles, que sequestrava e sangrava crianças para se manter jovem na cidade do Rio de Janeiro, consorciando com as mesmas entidades que eu servia.

Um deles me falou que se eu vim pra cá é porque sou especial. Pode ser porque segui à risca o que estava registrado nos meus livros. Tudo que eu fiz usando aquelas pessoas, aquelas crianças, os bebês não nascidos, tirados da barriga da mãe… os altares, não cheios de carne em decomposição mas sim os próprios altares feitos de carne podre, tudo como os livros mandavam. Se eu fizesse tudo certo, viraria uma lenda. Eu queria ser imortal. Teria uma existência maior e com mais significado do que o dos sonâmbulos que passam pela vida, que só seguem seus estômagos e sexos. Se o preço era fazer tudo aquilo que eu fiz, foi pago com gosto e faria tudo outra vez!

Os que me receberam do lado de cá me congratularam, disseram que virei um bicho papão, que a dedicação e criatividade com que realizei os sacrifício exigidos fizeram de mim algo maior. Não tão grande quanto eles, mas essa marca que deixei no mundo, esse resíduo de medo, ódio, sangue, trauma e pavor é algo forte demais pra ser apagado da realidade, mesmo depois de tanto tempo. Pelo visto, marquei uma quantidade de pessoas o suficiente para virar uma lenda e merecer parar aqui, mas não sou um dos graúdos atrás do espelho. A Loira do Banheiro, Maria Sangrenta, Candyman…. Eles ficaram grandes demais, e são lembrados até hoje. Dentre nós todos são os que saem com mais frequência em incursões do outro lado, por sempre serem chamados por algum curioso inconsequente. Eles sempre estão atravessando o espelho, quando vozes estúpidas chamam por seus nomes três, ou cinco vezes, depende da liturgia individual de cada um. E eles sempre voltam lavados em sangue, suas lendas renovadas, seus nomes gravados em carne dilacerada.

Eles garantem a sua posteridade. Eles são lembrados.

Eles me disseram, os poucos que se dispõem a se aproximar e trocar algumas palavras sem agressividade, os menos bestiais de nós, que somos especiais: Enquanto alguns de nós se tornam algo mais que uma alma penada, outros são mais rudes, arredios, quase irracionais. Parece que algumas mentes não são capazes de suportar mais do que 200 anos de autoconhecimento. Quando se vive tempo demais, não dá pra suportar nem a si próprio. Ou talvez não tivessem se preparado, se munido de conhecimento como eu fiz. Ou talvez suas mentes já não fossem saudáveis ainda em vida.

Infelizmente, minha história foi efêmera. Não passei de um bicho papão que aterrorizou as pessoas de sua localidade mas foi logo esquecido, ainda mais pelo fato de a população ter conseguido fazer “justiça” com suas mãos imundas. Minha história, toda a minha tentativa de atingir a grandeza se tornou uma lenda obscura mesmo na cidade onde tudo aconteceu. Poucas pessoas se lembram, menos pessoas ainda se importam. Soterrado pelo ciclo imenso de violência e morte do século vinte, acabei esquecido. Sou medíocre dentro de minha nova existência aqui. Mas isso vai mudar.

Por anos fiquei vagando entre os espelhos, sem alimentar esperanças de ser chamado por ninguém do outro lado, até a criação de algo chamado Internet. Apesar de ter morrido anos antes do seu surgimento, através do espelho e dos anos consegui entender o que ela era, compreendi seu alcance e as possibilidades que ela me trazia, vendo como as pessoas utilizavam isso. Se a minha história fosse parar nessa rede de informações, talvez fosse uma questão de tempo até alguém descobrir a minha história e decidir chamar pelo Genésio Dente de Faca três vezes na frente do espelho.

E eu atenderia o chamado.

***

Até lá, continuo aqui, esperando. Que alguém descubra a minha história. Que ela se espalhe pela rede. Que alguém se sinta desafiado. Esperando alguém que queira sentir na boca o gosto ferroso do medo enquanto encara o próprio reflexo, me chamando na frente do espelho. Porque um dia eu também vou me tornar uma lenda. E a Internet é o lugar onde nascem os mitos e lendas agora, isso eu aprendi. Mais cedo ou mais tarde o rebanho vai sentir meus dentes em sua carne de novo, e vão se lembrar de uma coisa que nunca deveriam ter esquecido: A ter muito, muito medo de Genésio Dente de Faca. Quando alguém se lembrar de mim e chamar “Genésio Dente de Faca!” três vezes na frente do espelho, finalmente vou voltar pro lado de lá do espelho. O lado de VOCÊS.

Só preciso que alguém se lembre de mim e me chame.

E preciso de tempo. E tempo é tudo que eu tenho aqui…

Eduardo Cruz (@eduardo_cruz_80)

Os Contos da Zona são histórias escritas pelos membros da Zona Negativa, com o objetivo de expandirem a produção de conteúdo para além das resenhas. Assim sendo, esperamos proporcionar boas experiências de leituras e reflexões. Deixe seu comentário

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

4 comentários em “CONTOS DA ZONA: Genésio Dente de Faca.”

  1. Terminei de ler neste momento este conto genial!
    A genialidade está narrativa envolvente, com a criação de toda uma mitologia própria, crível e que sustenta a história e o caráter do “protagonista”.
    Excelente história!

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