CONTOS DA ZONA: (In)humano

O sol havia desaparecido e dado lugar à gigante lua, quando fui despertada abruptamente por um estrondo muito alto. Desesperada, pulei da cama rapidamente e peguei as primeiras roupas que encontrei em cima da minha cadeira, vesti e desci correndo, pulando os degraus, quase caindo. Quando abri a porta e saí para a rua, sujei os meus pés na areia molhada, percebendo que havia esquecido o meu chinelo. Mesmo assim, ignorei os meus pés descalços e fui ao encontro do estrondo. Quando cheguei na esquina, lá estava a causa do barulho: um buraco enorme, que parecia estar vivo. Ele se mexia, borbulhava e parecia estar me chamando. Por um momento pensei que aquela situação nada mais era do que eu, em meus sonos conturbados, sonhando com um episódio de Doctor Who. Entretanto, o buraco à minha frente era muito real e cada vez que eu desviava e retornava o olhar, ele se expandia, engolindo o que vinha pela frente. Era ameaçador; demoníaco, inumano e poderoso demais para qualquer intervenção humana, até mesmo do exército.

Todas as casas estavam com suas luzes apagadas, aparentemente os vizinhos dormiam, e não tinha nem um animal presente para testemunhar a cena. O buraco se estendia, nada discreto, tomava todo o cruzamento, transmitindo um calor insuportável. Desesperada, eu não sabia se voltava para a segurança e conforto do meu lar, ou gritava por ajuda. Tomada pela insensatez e curiosidade, resolvi gritar por ajuda, mas ninguém ouviu. Eu gritei, e gritei, e gritei… Senti as minhas cordas vocais estilhaçarem-se dentro de mim, e nenhum sinal de sequer uma alma viva. Naquele momento, percebi que estava sozinha, saber disso me machucava por dentro. Ainda insisti; gritei mais alto, corri para a outra esquina, bati nos portões das três primeiras casas da rua, mas ninguém me ouvia e nem viria me salvar. Eu estava completamente sozinha, presenciando um evento que jamais havia sido documentado antes, e não havia ninguém para compartilhar o meu medo e a magnitude do que estava acontecendo. Saber que ninguém iria vir ao meu encontro foi como um soco no estômago, e acabou com todas as minhas esperanças e razões. Eu sentia como se o juízo final já acontecera, e Deus me puniu com a pior das mortes: lentamente sozinha, sentindo cada átomo frágil do meu corpo se desprendendo um do outro, até eu virar nada. Quando me dei conta, um nó ameaçou espremer a minha garganta, então eu sentei na calçada mais próxima a mim e desabei no choro, como uma criança chora ao perceber que a sua chantagem emocional não funcionou. “Quem quer que esteja aí em cima, já pode me tirar desse inferno? Você não tá vendo que eu já sofri o suficiente?” – eu gritei. “Faz essa merda parar! Não tem mais graça!” – supliquei, irracionalmente, aos prantos, mas absolutamente nada aconteceu. O buraco inumano continuou a crescer, como se a sua expansão fosse por necessidade, parecia que ele também sentia.

Então, resolvi fazer fazer o que qualquer ser humano não faria: me atirar dentro do buraco. Me levantei devagar, com os olhos marejados, fui cambaleando até a cratera. Encarei-a um pouco, como quem olha no fundo dos olhos do inimigo uma vez, antes de matar ou morrer numa guerra. Enchi os meus pulmões de ar e gritei mais alto do que imaginava que pudera, então pulei.

Parecia que eu era uma oferenda para o buraco, pois assim que eu mergulhei, ele se expandiu e tomou toda a rua, as árvores, as casas, todos fomos engolidos por aquela força sobrenatural e apocalíptica. A queda foi rápida, mas ao meu redor tudo passava lento demais. O meu estômago se embrulhava, meu coração quase saiu pela boca e todo o meu corpo doía. Eu estava em queda livre. Enquanto encarava de longe o chão, meu corpo ia chegando mais perto, e o medo da queda me tomou por inteira. Eu quis voltar, ter asas e voar; me belisquei para acordar, me debati, mas de nada adiantou. Tudo era real, especialmente a queda.

Dentro do buraco eu não enxergava nada além de mim, parecia que havia sido arrastada para um vácuo. Era molhado, gosmento, e às vezes se retorcia e emitia ruídos. De fato, a cratera demoníaca parecia um organismo vivo. O meu corpo jamais poderia se acostumar com algo tão inumano assim, por isso, doía muito. Uma dor pungente, que me virava do avesso, esticava e escancarou tudo o que havia em mim. Quis gritar de dor, mas nenhum som saía da minha boca. A curiosidade havia me abandonado, o medo havia arrumado as suas malas, a insegurança tinha aberto mão da minha mente, tudo o que eu sentia era uma dor incessante. Não sei se doía mais o meu corpo, ou o fato de eu não ter mais voz e estar completamente sozinha e abandonada num mundo que não deveria existir. Subitamente, algo havia entrado dentro de mim, algo pesado, denso e cortante. Era como se eu estivesse sendo aberta de dentro para fora. Os meus órgãos, tripas, nervos, todos misturados, escorriam pelo buraco agora, aberto também dentro de mim. O que antes era um feixe, se expandiu rapidamente, à medida que o buraco aberto em meu peito se amplificava, o que eu estava inserida se retraía e gritava, como se também estivesse com dor. Nós dois gritamos juntos e por um momento eu senti que aquilo poderia em outra vida, outra dimensão, também ter sido uma pessoa. Eu estava sendo consumida por algo desconhecido, como se fosse um verme, um parasita. Que se entranhou dentro de mim e dominou o meu corpo, tomando ele para si. Uma doença venenosa, uma vez que o parasita tomava o corpo do hospedeiro, apenas um poderia sobreviver. Sorte dele, pois naquela noite eu desistira de lutar, provavelmente o verme soube disso, por isso ele me escolheu. Involuntariamente, eu cedia espaço para ele.

De repente, era mais como se o meu corpo estivesse flutuando em um mundo hostil e cheio de espinhos e espelhos. Ele estava me guiando, tentando me contar uma história. Não havia vozes, o único ruído que podia se ouvir era o da própria coisa. Logo de súbito, me assustei com a ausência de gravidade, o demônio me transportou para um lugar diferente daquele que ele me recepcionou. O meu corpo flutuava, e por mais que eu tentasse andar, segurar-me a alguma coisa, não conseguia. Eu não sabia onde estava, todavia, era caos absoluto; objetos estranhos e diversos pairavam no ar com toda a sujeira. Me assustei ao entender que talvez aquela fosse a casa do verme, ele havia me trazido para a sua toca. Não havia mais força que eu conhecia no meu mundo, eu não podia mais escolher para onde ir ou até mesmo ficar parada. O meu corpo apenas era guiado por uma criatura inumana, eu não pertencia mais à mim, porém a ele. Tudo que me fazia eu havia se despedaçado, não me reconhecia mais. O meu corpo não era pesado e nem leve, ele estava apenas vazio. Talvez eu até tivesse sido dissecada. Não sentia mais o meu coração bater, nem mesmo sabia como estava respirando – ou se estava. A única sensação presente era de perda total. Ao me atirar desesperadamente no buraco, eu sacrifiquei a mim mesma, e deixei que ele engolisse tudo que me fazia ser eu, não lembro nem mesmo do meu nome.

Enquanto o vento levava num ritmo lento a minha carcaça, enxerguei sem querer em um espelho, que flutuava perdido no ar, o reflexo de uma jovem em desespero, como se estivesse sufocada. Aquilo despertou em mim uma sensação nostálgica, parecia até que eu estava perdendo o fôlego junto com ela. Aquela merda era um quebra-cabeça bizarro e doentio, e infelizmente, eu era parte do jogo. Era aquela peça perdida, que normalmente fica embaixo do sofá, até alguém pensar em procurar lá. De repente, o lugar se fechou a minha volta, criando um pequeno quarto de espelhos. As imagens estavam fragmentadas, quase impossíveis de entender. Mesmo assim, era notável o seu impacto, elas se comunicavam comigo, mas eu não consegui decifrar o que elas diziam. A estranha criatura de outro mundo, estava tentando me passar uma mensagem, porém era difícil demais para a minha cabeça entender. As coisas simplesmente não se encaixavam em minha mente. Ele tentava me fazer entender de todas as formas, me guiando para lugares desconhecidos dentro daquele mundo quebrado. A minha mente já estava exausta e eu sentia, como se mesmo sem órgão nenhum, eu sangrava por dentro. O esforço solidário que eu fizera para compreender o verme estava me matando, a dor era esmagadora e dilaceradora. Eu cedi todo o espaço que podia para ele, porém agora não dava mais para aguentar.

O rombo dentro de mim era gigantesco e crescia cada vez mais. Doía, latejava, rasgava por dentro, era pura agonia. Tentei mais uma vez gritar e implorei por socorro, mas a criatura não era benevolente. A minha carcaça terminava de se despedaçar, parecia até que eu era feita de vidro. Fiquei tão pequenina, que aos poucos deixei de importar, e o vazio me tomou por completo. Essa parte não doeu tanto, porque o meu corpo já estava dormente de tanta dor. Na verdade, acho que inconscientemente, eu já sabia o que estava por vir: senti os sinais. Chovera bastante esses dias, os ratos deixaram de vir à minha casa porque sabiam do perigo que eles corriam, o vento parou, e consequentemente o festival de dança das árvores havia sido encerrado. Por todos os lugares ouvia-se falar de um evento meteorológico que aconteceria em breve e seria devastador, algumas semanas depois todos trancaram-se em suas casas e aguardavam ansiosos por esse evento. Aparentemente eu estava ocupada demais, sempre correndo, e não percebi os sinais, não ouvi as reportagens, não fiquei de lero-lero na rua com os vizinhos. Só soube de verdade quando o meu coração se afundou e pesou, eu não conseguia nem andar mais com tanto peso, porém foi assim que eu soube. Em alguns casos, quando o verme tenta se apossar do organismo do hospedeiro, os remédios curam o corpo hospedeiro e matam o verme. No meu caso, foi tarde demais, a doença avançou muito rápido e eu não pude evitar abrir mão de mim. Nós dois não podíamos existir um no outro sem causar tanta dor, então eu cedi, e o vazio me tomou.

Não pude fazer nada, apenas esperei que ele chegasse.

Por Tárcyla Arruda (@arrudatarcy)

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