CONTOS DA ZONA: O Cadáver na Minha Cozinha.

Por Tárcyla Arruda (@arrudatarcy)

As minhas narinas ardem, a minha cabeça dói e o meu corpo está pesado demais. O cheiro que vem de dentro da cozinha invade o meu nariz, é tão podre que queima como ácido, até os meus olhos lacrimejam com o fedor emitido pela cozinha. Tem algo estragado lá dentro. Entretanto, depois de semanas sendo asfixiada lentamente pelo cheiro que só cresce diariamente, hoje eu decidi evitá-lo um pouco. Eu quero saber como é sentir um aroma diferente da putrefação. O medo de ir na cozinha verificar o que cheira tão mal me sufoca mais do que o próprio fedor. Eu não sei se eu tenho mais medo do que vou encontrar ou dos questionamentos que virão a seguir: “Não achei que fosse tão grande” ou “Achei que fosse maior, ou que tivesse mais pelos” ou até mesmo, “Meu Deus do céu, o que eu fiz?”. Por isso, hoje eu tomei um banho, vesti a roupa mais bonita que eu tenho e peguei um ônibus para o centro da cidade.

A cidade está quente mas tudo bem, pois por coincidência, a roupa que eu escolhi é apropriada para o verão. Todavia, percebi que a roupa já não importa mais, porque depois de tantos dias em casa, com medo da rua, quando finalmente o meu medo trocou de endereço e se instalou em meu lar, notei que não consigo encarar as pessoas. Os seus rostos parecem ferver em emoção, e à minha vista os seus corpos estão tão pesados que a locomoção torna-se uma missão quase impossível de se cumprir.

Eu havia esquecido de como é olhar para as pessoas profundamente e tentar sentir as suas emoções. Porém, me enganei quando pensei por um segundo que os rostos ao meu redor pareciam ferver de emoção, porque eu olho para todos os lados e tudo o que eu vejo é um grande vazio, e de dentro dele ecoam gritos. Gritos contínuos e carregados de um profundo nada; gritos completamente indecifráveis e sem nenhuma importância. E mesmo na ausência de importância, precisei fechar os meus olhos na tentativa de decifrar os gritos, porque eu não consigo não me importar com as minúcias.

Não fiquei espantada ao perceber que aqueles barulhos estridentes pareciam pertencer a outro idioma, então o vazio se dissipou e deu lugar ao desconhecido. E o desconhecido, intrometido do jeito que só ele pode ser, convidou o medo para sentar à mesa no vácuo de pânico que eu mesma criei ao fechar os olhos e ouvir os gritos. E fora deles, os rostos que antes ferviam em emoções e depois afogavam-se no vazio profundo, agora o desconhecido e o medo dançam e quebram tudo, como se não houvesse vida nos corpos, apenas o caos. Ao descer do ônibus, eu botei a minha bolsa para frente e cruzei os braços bem forte, como uma maneira de me sentir segura em meu próprio corpo. Me apeguei às minhas roupas como se elas fossem um bem muito precioso, e andei com as pernas tremendo e passos imprecisos – tropecei no meu pé esquerdo três vezes.

O centro da cidade fede a mijo, porém esse cheiro não me assusta. Eu não tenho medo dos meus questionamentos sobre a origem do fedor; na verdade, eu nem tenho questionamentos sobre isso porque simplesmente não me interessa. A idéia de ter um resquício de culpa não me afeta, porque eu e meu mijo nem saímos de casa. Até que continuar caminhando uma hora para de doer, e aos poucos eu volto a me acostumar com as ruas. Essas tão sujas, podres, mijadas, vandalizadas, quebradas e nojentas. Eu senti falta dessas ruas – que mal dá para andar direito, porque se por acaso a atenção for perdida mesmo que por um minuto, você pode cair em um buraco ou em um bueiro. Apesar da podridão, nada se compara à coisa morta que eu venho cultivando dentro de casa, e estar na rua é um misto de alívio com medo, porém muito mais aliviante do que amedrontador.

Os rostos que eu jamais vi antes – e que provavelmente não verei depois – não são mais tão intimidantes quanto pareciam no início do passeio. Uma criança nos braços de sua mãe fez careta para mim e eu até consegui sorrir. Vi um mendigo jogado e abandonado, minúsculo como eu jamais havia visto alguém ser, quase que composto por um só átomo, e me solidarizei por ele. Senti, depois de muito tempo, empatia e o que eu acho que seria algo como carinho, por ele. Então eu sentei ao seu lado. Antes de tudo isso, antes da coisa que se decompõe na minha cozinha, eu teria medo de sentar ao lado dele. Mas não medo dele! Medo da realidade, e do que viria depois de eu encará-la. Pois a realidade é uma agulha pronta para estourar bolhas sociais, e eu estava confortável demais na minha para permitir que algo me tirasse dela. Antes do cadáver da coisa, eu pensava que não poderia viver fora da minha bolha; que o tipo de ar que eu respirava nela era único e essencial para a minha existência, mas acontece que a bolha já foi estourada e quando isso aconteceu, a coisa morta na cozinha foi revelada.

O mendigo perguntou como eu me chamava, e eu o disse, e logo depois perguntei como ele se chamava, e ele chorou. Eu acho que depois de tanto tempo sem dizer o seu nome, ele acabou esquecendo que tinha um. E eu quis abraçá-lo, mas pensei que certas distâncias são seguras e que também são escolhas, eu jamais poderia invadi-lo. Eu o desejei sorte, e levantei. Foi o ato mais covarde que eu já cometi em toda a minha vida. Como se eu não soubesse que sorte não significa nada, como se eu entendesse algo sobre distâncias, como se eu soubesse o que é ser gente. A frustração tomou conta de mim como a noite engole o dia, e furiosa, decidi pegar outro ônibus e ir ver o mar.

A paisagem passando rápida pela janela do ônibus me apavora, são quilômetros e
segundos correndo de você, parece até uma metáfora sobre a vida. E tudo sobre a vida me faz lembrar da coisa morta na minha cozinha, e eu não quero lembrar dela. Pedi parada quando avistei a orla, caminhei um pouco e desci para a areia. Sentei lá e descansei o meu corpo pesado. O cheiro do mar, apesar de toda poluição, é único e revigorante, e instantaneamente a minha mente me trouxe à tona pensamentos e histórias sobre segundas chances e como elas existem há tanto tempo. É quando eu finalmente penso que o nosso destino é cheio de segundas chances, e a razão para isso é que estamos sempre ferrando com tudo e encontrando novas formas de nos redimirmos e começarmos tudo de novo. O que me faz pensar que eu não tenho uma opinião sólida sobre segundas chances, nem terceiras, nem quartas, nem mil. E se eu não sei nada sobre as possibilidades de nos reinventarmos e de arrependimento e perdão, também não sei por quê estou aqui, ou até mesmo porque não percebi isso logo.

Quando me dei conta, estava aos prantos na beira do mar. Eu havia andado e chorado e nem senti. Será que é isso? Vou me questionar para sempre até ficar anestesiada? Quando olhei para cima vi que ia começar a chover, e também que já era hora de voltar para casa, então fui para a parada de ônibus e peguei o primeiro que me levaria para o terminal.

Ao chegar em meu bairro, a idéia de entrar em casa e ter o meu nariz, a minha boca, os olhos, a cabeça… Todo o meu corpo, tomado pelo fedor da coisa morta, comecei a hiperventilar e a ficar ansiosa, então desci na primeira parada do bairro e subi a ladeira andando para extravasar.

Cheguei na porta da minha casa às 18:47 e demorei poucos minutos para tomar coragem e entrar. Eu estava ensopada de suor, – porque mesmo à noite, o clima aqui continua quente e abafado, e meu pulmão ardia muito, pois estava desacostumada a andar distâncias longas. Mas quando tomei coragem, em meio a tantos atos covardes, abri a porta e fui até a cozinha: Lá estava a coisa morta. O corpo pálido, nojento, cheio de secreções, parecia estar pronto para ser visto por mim. E como eu já imaginava, inúmeros questionamentos invadiram a minha mente e eu fiquei tonta, não sei se pelo cheiro ou por tantos pensamentos, mas eu entendi o que tinha acontecido. Não vou revelar a identidade do corpo, acredito que o mesmo precisa descansar em paz, porém vou conviver para sempre com a culpa massacrante de ter sido eu quem lhe tirou a vida.

Angelina Zhogina ©

Ato II
Raízes

O barulho era contínuo, irritante, angustiante, esmagador, e atravessava a minha
garganta. Tudo o que eu conseguia sentir eram todos os meus ossos, desde a garganta perfurada pelo barulho inconveniente, até o cóccix. Eu poderia contar os meus ossos só pela dor transmitida a eles pelo frio do chão. Esse, tão gelado pelo vento forte que invadia a casa e pela chuva que inundou o quarto preto. Ao acordar lentamente e olhar para as paredes, pela primeira vez em anos, enxerguei as rachaduras. E uma vez que você enxerga as rachaduras de uma casa, é impossível não senti-las e se preocupar com elas. Pois a partir do momento em que a sua consciência se desperta para os rasgos estampados na parede da casa, é difícil não pensar na possibilidade de desabamento.

A verdade é que desde o momento em que eu notei as rachaduras na parede, não consegui mais dormir bem, porque todos os dias o medo do desmoronamento me tomava por inteira e espantava de mim o sono. Quem não dá importância às rachaduras que abrem a parede à força, ao mesmo tempo em que a delicadeza se faz presente, no mínimo já decidiu que vai viver a vida da forma que der, com ou sem rachaduras.

O zunido da televisão fora do ar fazia os meus ouvidos latejarem, mas foi assim que eu percebi que o barulho não vinha da televisão, e sim de dentro de mim. Continuei estática, com o corpo estirado no chão frio, porque todo ele doía. Desde as unhas dos pés até a cabeça, uma dor agonizante. Uma agonia indescritível corria por todos os meus membros e músculos, mas não conseguia sequer mover um dedo, parece que eu havia sido sedada. As únicas partes do meu corpo que eu conseguia mover eram os olhos, que iam da direita para cima e de cima para esquerda, então da esquerda para baixo.

Eu tentava identificar o ambiente, pois apesar de imaginar o que talvez tenha acontecido, eu preferi continuar a examinar. A continuidade do barulho tirava o meu ar aos poucos, eu senti que todo o meu corpo estava prestes a sucumbir ao barulho e à imobilidade. Então me veio à cabeça que talvez fosse melhor desistir deste corpo dolorido e dessa casa cheia de rachaduras. Até que eu ouvi a sua respiração; era lenta e profunda, perfeitamente ritmada, mas o seu ritmo e organização me desorganizavam. À medida que ele expirava o ar os meus pulmões se comprimiam e faziam um esforço visceral para também conseguir tomar o ar para si, entretanto era praticamente impossível, porque a respiração da coisa era mais forte que a minha, além de sua motivação também ser mais forte que as minhas. Pois eu me importava com as rachaduras, a coisa não.

Não demorou para eu entender que a coisa era o cadáver que há pouco eu cultivara em minha cozinha. As suas raízes penduradas no corpo, o sangue pingando e molhando todo o chão da casa, os seus olhos famintos e vazios e a sua boca fedendo a ódio. A coisa era grande; gosmenta e seca ao mesmo tempo, era complexa e cheia de ossos e raízes, e os músculos estavam expostos. Não tinha sexo, tampouco gênero. Não tinha razões, ou talvez as tivesse demais. Era vazio absoluto ao mesmo tempo em que tinha nela todas as respostas, as fórmulas, os sentimentos e conhecimento. Era grande, extenso, volumoso, parecia uma cidade em forma de gente – mas não chegava nem perto de ser gente. Passei tanto tempo vislumbrando a grandeza e o volume do cadáver, que antes estava estirado na minha cozinha, que eu pude me esquecer por alguns minutos a dor que me furava até a alma. Mas logo o meu corpo todo voltou a doer, então eu percebi que a dor nos ossos não era do chão frio e sim das raízes que se espalhavam e cresciam – sem timidez nenhuma dentro do meu corpo. Nesse momento, tudo perdeu o sentido e nada mais era a mesma coisa.

As raízes perfuram os meus ossos e se entrelaçam neles, como se isso fosse algo natural. Algo biologicamente normal para o corpo de um ser humano. Por mais que agora eu fuja desse fato, é bem verdade que eu fui longe demais ao cultivar esse cadáver, realmente extrapolei todos os limites da ciência e perdi completamente o senso.

Eu o torturei e deixei que criasse raízes na minha cozinha, porque eu não aguentava mais a minha própria companhia. Era muito melhor estar com ele do que sozinha. E como tudo na minha vida, eu perdi o controle disso também. O cadáver havia crescido tanto, ganhado tanta força, ao ponto de se desprender das minhas raízes e criar as suas próprias. Agora ele faz o mesmo comigo; o meu corpo todo se comprime de dor, e eu não consigo gritar. Não consigo fazer parar, nem chorar, nem me mover. Estou completamente inerte, mas a minha mente, ao contrário do corpo, está mais acordada do que nunca e o barulho corta os meus pensamentos, desligando-os e dando espaço para os pensamentos do próprio cadáver.

Ele continua parado, olhando para mim, como se estivesse se buscando dentro de mim, mas para a surpresa dele eu ecoo tanto quanto ele. Mesmo com o cadáver vivo, não consigo enxergar um resquício de vida em um corpo tão pesado e vazio. Achei que pelo anseio em meus olhos, ele poderia entender e se solidarizar pela minha dor intangível, mas não obtive nenhuma reação da coisa grande na minha frente, e isso só me provou o quão parecidos nós somos: Ambos pesados e vazios. O cadáver desafia todas as leis da ciência, da psicologia, da religião. Ele desafia a própria existência ao passo em que ameaça a minha. Até que depois de horas de agonia e já perto da minha inexistência súbita, o cadáver se moveu e cambaleou até mim. O bairro já estava sendo engolido pela noite e as ruas estavam completamente vazias. Ninguém sabia do cadáver, nem mesmo imaginava o que estava acontecendo ali, dentro daquela pequena casa.

Cada vez que o cadáver se aproximava de mim, eu buscava novas formas e códigos para me comunicar, na tentativa de implorar para que tudo aquilo parasse. Eu já sentia que as raízes haviam alcançado uma parte do meu coração e eu sabia que aquele tormento já estava chegando ao fim. Todavia, uma parte das minhas expectativas sobreviveu aquela doença da “ausência de gente”, a outra parte também permaneceu viva mesmo depois do incêndio. Eu nunca tinha notado o quanto as minhas expectativas eram resistentes, e ainda aqui, no exato momento que rasga o meio e o fim, tornando-os dois, elas não me abandonaram e permaneceram firmes para que eu também o fizesse. Entretanto, depois de encarar em vida o que eu fiz, não consigo acreditar que sou digna do esforço das minhas singelas expectativas, e o cadáver também parece ter a mesma opinião. Mesmo assim, ele aproximou o seu rosto ao meu e os seus olhos, pela primeira vez, me disseram alguma coisa. Palavras tão pesadas e cheias de significado e frases complexas e cheias de códigos. Eu decifrei tudo lentamente, enquanto as raízes enroscavam-se nos meus pulmões, a dor lutava para que eu não conseguisse pensar, e por pouco todos os meus pensamentos foram interrompidos quando o ardor da falta de ar ficou mais forte do que as minhas expectativas e eu desejava ser outro animal. Qualquer um sem capacidade cognitiva o suficiente para criar um cadáver nojento e vazio. Ele deveria ser à minha imagem e semelhança, mas parece que eu sou a dele. Demorei tanto tempo para admitir que eu não falhei. Não, de forma alguma! O cadáver foi o meu primeiro êxito na vida, todavia era difícil para mim aceitar que o meu primeiro êxito era na verdade uma grande montanha de erros, imundícies e uma teia enorme de complexidade.

Ele não teve pena de mim ao se aproximar e a me fazer decifrar tudo o que ele quis dizer. O cadáver sabia falar todos os idiomas falados no mundo inteiro e poderia naturalmente se comunicar comigo em português, porém decidiu misturar todas as línguas existentes e criar – subitamente – palavras que eu jamais havia visto na vida. Ele queria que eu sofresse até na hora de receber a mensagem que eu já imaginava que seria. Então, a minha criação se aproximou do meu rosto e tomou de mim o direito de respirar. E, nesse momento, a poucos segundos de morrer, me dei conta de que a minha existência ameaçava a dele, e nós jamais poderíamos coexistir.

Samuel Araya ©

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