Parte 1: Tropeços
Exibicionismo, voyeurismo…. algumas pessoas se inflamam com essas coisas. Fetiche é uma coisa engraçada. O que deixa você fora de controle pode ser a coisa mais entediante do mundo pra mim. Ou pode ser só esquisito, como os macroherpetófilos, por exemplo. Macro é ‘grande‘ em latim, e ‘herpetófilo‘, bem… é o cidadão que sente uma…. atração especial por répteis. Sendo bem direto, um macroherpetófilo é uma pessoa que tem fantasias sexuais com o Godzilla! Dá pra ser mais estranho do que isso??
Falo isso exatamente para dar um contraste entre o que eu curto e o que é realmente ESTRANHO, assim você entende o meu lado sem me ver como um tarado maluco, como um necrófilo ou…. bom, um macroherpetófilo!
Então, onde estávamos? Ah, sim! Voyeurismo, exibicionismo, masoquismo, sadismo… Pra mim isso é chatice pura! Eu sou um pouco mais… intrusivo nas minhas paixões. Quando eu entro, entro fundo! Uma penetração metafísica, por assim dizer. Eu diria que o meu fetiche é … o possessionismo!
Quando eu descobri que podia saltar entre corpos eu era um moleque, não tinha mais que 13 anos. Foi mais ou menos na época em que descobri a masturbação. Acho engraçado quando penso nisso, de começar a explorar o próprio corpo ao mesmo tempo em que explorava corpos alheios. Foi meio sem querer que me dei conta dessa habilidade. Aconteceu no sexto ano. Eu estava no recreio, olhando uma menina da minha turma de quem eu gostava. Me lembro que observava ela fixamente, com uma mistura de desejo e devaneio, bem típico da idade. Depois de uns instantes naquele estado, já não me sentia mais plenamente desperto; as pontas dos dedos começaram a formigar e a visão escureceu nos cantos. Aquela foi a primeira vez em que consegui atingir o foco específico, as condições necessárias para saltar para o corpo de outra pessoa. Uma vez lá, a mudança repentina de perspectiva foi confusa, mas pra minha colega/crush foi uma experiência tão aterrorizante e desnorteadora que ela apagou sem lembrar de nada quando acordou, felizmente.
Não que eu mesmo tenha conseguido entender de cara o que tinha me acontecido naquele primeiro salto. Quando olhei pra baixo vi mãos, roupas e pernas que não eram as minhas, as sandálias nos pés, reconheci o pátio da escola de um ângulo completamente diferente de onde eu estava segundos antes, e principalmente, eu me vi do outro lado do pátio da escola! Vi a mim mesmo com uma expressão confusa e atordoada, logo antes de cair no chão. A coisa toda não chegou a durar nem um minuto. Me senti outra vez sem fôlego, tudo escuro e lá estava eu, caído no chão e de volta ao meu corpo. Os colegas, a coordenação, meus pais, todos acharam que era um simples episódio de indisposição, uma queda de pressão ou um episódio de insolação, coisa corriqueira. Mas eu já tinha começado a ter uma noção do que poderia estar acontecendo.
Depois da noção inicial carregada de absurdo veio a aceitação. Por mais absurda que minha… habilidade pudesse parecer, era algo que eu tinha conseguido fazer! Eu vivenciei aquilo! Não foi um sonho! E, se eu fiz uma vez, poderia fazer de novo? Quais eram as condições exatas pra se reproduzir aquilo? Como um adolescente em idade escolar e muito tempo livre, aprendi a dominar minha habilidade de saltar de corpos, a princípio para sacanear os colegas, entrando em seus corpos e fazendo bobagens ridículas e humilhantes enquanto “pilotava” eles por alguns segundos, aproveitando a desorientação deles. Eu chamava isso de “telebullying” e, é claro, nunca contei pra ninguém. Como qualquer outra habilidade que uma pessoa desenvolva, fui melhorando com a prática e agora eu já conseguia entrar nas pessoas mesmo à distância. Eu nem precisava mais estar próximo dos meus alvos. Bastava pensar na pessoa, focar em sua imagem. Sentia os já familiares formigamentos, a visão borrada e pronto! Mesmo assim, sempre voltava rápido ao meu próprio corpo, já que a mente de quem eu estava montando estava no meu corpo enquanto isso. A confusão das minhas “vítimas” sempre agia a meu favor, e ninguém nunca chegava a entender o que tinha acontecido naqueles dois ou três minutos que pareciam um sonho de se viver a vida de outra pessoa.
Eu não fazia a menor ideia de como essa… habilidade funcionava. Se era fisiológico, se tinha algum elemento metafísico envolvido, se eu era uma mutação como naquela novela da Record ou se isso era resultado de uma abdução alienígena da qual obviamente não me lembro… Eu especulava mil possibilidades e terminava frustrado por não ter nenhuma resposta concreta pra minha situação. Também não tinha a quem perguntar, já que aparentemente eu era o único com essa capacidade inacreditável. Procurar alguém disposto a pesquisar a minha… condição não era uma opção, já que eu poderia acabar anestesiado em uma mesa de operações com meu cérebro cortado em fatias até se descobrir como aquele dom funcionava. Nem pensar! Depois de um tempo decidi desencanar e me divertir como dava, com essas brincadeiras de adolescente sem noção. Por mais surpreendente que fosse, o possessionismo não era uma constante na minha vida. Não pelo menos até que a grande motivação que me impeliu a saltar todos os dias se apresentasse como um plano perverso na minha cabeça: SEXO!
Em algum momento no meio da minha adolescência, com os hormônios em ebulição, pensei “E se eu saltasse pro corpo do marido da professora Andréia?“. A professora de biologia era a mulher mais gostosa da escola, e no recreio a molecada conversava sem o menor pudor sobre como… homenageavam Dona Andréia diariamente. Porra, todo mundo sonhava em comer a professora, mesmo nunca tendo realizado o ato sexual com nada além da própria mão. A diferença é que EU REALMENTE PODIA FAZER ISSO!
Porém, mesmo caindo no lugar certo e na hora certa, ou seja, em casa depois do jantar, eu, controlando o corpo de Seu Jaime, marido de Dona Andréia, poderia tentar seduzi-la, como eu já tinha visto naqueles filmes que só passavam depois de meia noite na tevê, e faturar o prêmio. Mas quantos minutos isso levaria? E o corno no meu corpo, que tipo de baderna ele poderia fazer enquanto eu estava no corpo dele??? Foi aí que eu tive a idéia que possibilitou todos os anos de putarias que viriam pela frente: Vasculhei a cômoda da minha mãe e achei alguns remedinhos que ela usava pra dormir. Dois comprimidos e FOCO antes que eles fizessem efeito! Saltei pro corpo de Seu Jaime e a consciência dele automaticamente saltou pro meu corpo, deitado na cama; apenas um estudante inocente dormindo pra acordar cedo pra prova no dia seguinte. Dona Andreia estranhou a pegada diferente, desajeitada e afobada do marido, além de comentar que ele estava falando menos putarias que de costume. Ok, anotado. Na próxima vez eu faria melhor.
E foi assim que eu perdi minha virgindade.
Eu gostava de pensar que era um crime sem vítimas, e se eu agisse direitinho ninguém nunca iria desconfiar. Na pior das hipóteses, seria um sonho estranho, já que do lado de lá meu corpo estava dopado na marra, mantendo uma mente dentro dele como refém temporariamente.
Eu tinha uma coisa que qualquer moleque da minha idade mataria os próprios pais pra ter: Acesso a sexo praticamente irrestrito e ilimitado. Contanto que eu respeitasse algumas regras que desenvolvi na tentativa e erro ao longo dos anos:
1 – O SILÊNCIO GARANTE O PRAZER: Mesmo numa situação normal, onde não tem ninguém tomando posse do seu corpo, o sexo pede poucas palavras na maior parte das vezes. Melhor manter a boca fechada, mas tendo um feeling pra possibilidade de se trocar umas palavras quentes, o que leva automaticamente à segunda regra…
2 – DANÇAR CONFORME A MÚSICA: Você cai de paraquedas no meio da trepada alheia, ou melhor, você toma o controle de uma das partes e cria o clima pra conseguir o que veio buscar, mas cada casal tem sua particularidade, não é mesmo? Melhor bancar o caladão e deixar a dama conduzir a dança do que fazer alguma coisa completamente estranha à rotina daquele casal, rotina essa que você não conhece. Então pra conseguir entrar fundo, é necessário pisar devagarinho, pelo menos no começo. A paciência traz recompensa.
3 – SEM ENVOLVIMENTO EMOCIONAL: Essa regra foi criada quando comecei a fazer os saltos com intenções sexuais, ainda no final da adolescência. Nos primeiros saltos eu acabava ficando meio gamado depois do sexo, juvenil e hormonal que eu era. Mesma lógica da regra anterior: qual é o sentido de se apaixonar por uma mulher que você não conhece e com um corpo que não é seu, só porque a trepada foi fantástica? Aprendi faz tempo que nada de bom pode sair de um descuido tão grande. Mesmo assim, a regra permanece, desse jeito não boto nada a perder.
4 – NÃO DEIXAR PISTAS: Por mais óbvio que possa parecer, eu apago qualquer evidência de minha personalidade no local onde eu estou. Não deixo nada que possa causar estranheza à parceira e muito menos ao possuído quando ele volta pro corpo dele. Nem um copo fora do lugar, nem uma camisinha, que aliás eu não uso porque não tenho que me preocupar com ISTs, certo? Parece bobagem, mas acho a regra mais importante, é o que garante uma segunda, terceira, quarta transas. Não criar ondas no ambiente, não quebrar os padrões existentes.
5 – NUNCA PERNOITAR! Como meu corpo ficava inerte na cama na hora de dormir e meus pais nunca desconfiaram de nada de estranho nessas minhas noites de “sono pesado”, a regra não escrita, acima de todas as outras: era obrigatório que eu pulasse de corpos sempre à noite! Por isso, por mais gostosa que fosse a transa, assim que eu terminasse, era hora de cair fora! Nada de relaxar de conchinha com a señorita enquanto o corno está no meu corpo fazendo sabe lá o quê. É fuque fuque e PARTIU!!!
Com esse conjunto de regras eu tinha um suprimento garantido de sexo pra vida inteira e as precauções para evitar que qualquer imprevisto me ferrasse. Se eu seguisse elas à risca, nada poderia dar errado!
Eu sei, vocês devem estar pensando “Por quê diabos esse idiota não salta pro corpo de um bilionário e enquanto possui o cara, transfere uns milhões pra própria conta e vive o resto da vida confortável como um ricaço?“. Bom, primeiro porque eu entrar no corpo de alguém não faz com que eu conheça as senhas da conta ou a combinação do cofre da pessoa cujo corpo que eu ocupo. E segundo, eu tenho prazeres muito simples, só gosto de sexo mesmo. Não sei se nasci assim, com essa predisposição ou se a minha condição especial provocou alguma compulsão nesse sentido, ou mesmo se foi a facilidade de conseguir fazer sexo que me fez desenvolver o vício. Mas a verdade é que pouca coisa mais me importa. Faço o básico, trabalho, socializo o suficiente pra não chamar muita atenção, mas o que gosto mesmo é de saltar. Eu sou provavelmente o único possessionista que existe, então, como essa habilidade deve morrer comigo, vou aproveitar ela ao máximo.
Parte 2: Saltos
E que loucura foi esse rolê do Possessionismo! Sempre que eu estava a fim a sacanagem rolava solta, ou melhor, quase sempre. De vez em quando eu me metia em situações…. anômalas. Pra quem pensa que ter a capacidade de assumir o corpo de outro cara com a intenção de traçar a mulher dele é uma coisa simples e tudo vai sair conforme você planejou na sua cabeça, está MUITO enganado. A real é que você pode entrar na ação a qualquer momento, até mesmo em um momento em que a ação ainda nem começou. E em algumas ocasiões a ação não era nada do que se esperava!
Às vezes eu caía no meio das preliminares do casal e bastava tocar o barco e tentar não dar muita pinta de que alguma coisa diferente aconteceu. De vez em quando eu dava sorte e caía num ménage animado; o povo é bem menos recatado do que costuma alardear por aí, a julgar a frequência com que isso acontecia nesses saltos noturnos de corpo em corpo. Umas duas vezes tirei a sorte grande: Quando você troca de corpo esperando uma noite quente a dois e cai de paraquedas no meio de uma orgia, uma delas inclusive com tudo que se tem direito: Drogas, anões, jumentos e outras coisas estranhas. Coisa fina, de alta classe. Mas nem tudo era prazer. Também já entrei em um corpo que estava amarrado e sendo espancado por uma dominatrix e o pior de tudo, sem saber a palavra de segurança para ela parar!!!
Em outra ocasião (e corpo), de olho na mulher do pastor de uma igreja a duas ruas de minha casa acabei parando dentro da igreja, em pleno ato sexual atrás das cortinas do púlpito durante um culto de vigília à uma da manhã. Estava engatado em alguém, mas no escuro não consegui distinguir muito bem. Eu sentia a umidade, estava sem sombra de dúvida penetrando um orifício úmido e muito aconchegante, crente que realizava mais uma fantasia, quando no escuro, ouço uma voz masculina da pessoa que eu estava montando que disse “Ai, pastor Malaquias, derrama seu Maná sobre mim, varão!“, e isso ao mesmo tempo em que tentei tocar a pessoa e senti um volume…. inesperado entre as pernas. Parei. Broxei. Olhei pela fresta da cortina e vi a mulher do pastor entre as irmãs da igreja, rezando com fervor. Eu, ou melhor, o pastor Malaquias estava traçando um dos obreiros de sua congregação! Voltei imediatamente pro meu próprio corpo, pasmo e abalado e frustrado.
Enfim, nunca tinha uma noite chata.
E como estamos falando de pessoas, sempre dá pra ficar mais estranho. Meu cartão de crédito pode ter um limite – e bem baixo – mas a bizarrice humana não. Uma noite decidi focar pra trocar de corpo com o dono de um mercadinho perto de onde trabalho, um português meio paspalho que tinha uma esposa daquelas de parar o trânsito, uma louraça que chamava a atenção de quem entrasse na loja. Animado e prevendo uma boa trepada, atentei pro horário do mercadinho fechar e esperei mais umas duas horas, só pra garantir. De noite, saltei pro corpo do portuga sortudo, já planejando me fartar com a louraça, na expectativa de entrar no meio da ação. Mas eu não estava pronto pro que me aconteceu: Na troca, me vi deitado de barriga pra baixo em um lugar completamente escuro e gelado. Sem nenhuma visibilidade, só consegui tatear alguma coisa grande, de consistência viscosa, gelatinosa e fria embaixo de mim e o fedor mais intenso que eu já senti na vida. Depois de vomitar duas vezes por causa do mau cheiro forte, percebi uma coceira ao longo do “meu” corpo. Uma coceirinha fraca mas constante nos braços, pernas, costas, pescoço, até subindo pelo rosto. Quando me cocei, senti algo esfarelando em minhas mãos. Depois de vomitar pela terceira vez, tentei ficar em pé mas batia a cabeça em uma tampa que parecia ser de concreto e foi aí que percebi: estava dentro de uma sepultura em algum cemitério, completamente nu e com uma ereção que murchava rapidamente. Com a ajuda de um pouco de luz de um poste próximo, descobri que o que coçava sem parar sobre a pele do corpo que eu estava ocupando eram larvas e mais larvas do corpo que estava sendo intensamente aproveitado pelo português maluco. O maldito do português era um necrófilo que deixava aquele mulherão sozinho em casa pra ficar de putaria com defuntos! Aquilo quase me fez desistir do Possessionismo!
Mas como eu provavelmente sou viciado em sexo, duas noites depois lá estava eu saltando pra outros corpos, continuando a provar esse bufê infinito sem precisar pagar a conta, ou era o que eu achava. Como não era realmente o meu corpo, eu conseguia sacudir aquele desconforto das situações que não davam certo em pouco tempo, por mais traumáticas que fossem, como na noite em que mais uma vez eu presumi que teria acesso a mais um mulherão de um trouxa qualquer. Lá fui eu: Deitei na cama, tomei dois diazepam e saltei pro corpo do cara. Imediatamente senti uma dor excruciante no meu rabo. Me percebi de quatro em uma cama e logo imaginei que tivesse cometido algum erro e entrado no corpo da mulher ao invés de no corpo do marido. Uma olhada pra baixo e a julgar pela barriga e os pelos nos braços e no peito pra confirmar, era o corpo do cara sim, mas a mulher é que estava no papel de ativa, usando uma daquelas cintas e mandando ver no marido. Claro que pulei fora, aquele susto tinha acabado com o meu tesão. E juro que senti a dor na bunda do meu próprio corpo quando voltei, mas devia ser só o trauma.
Você tem que estar preparado pra absolutamente qualquer coisa nesse ramo de Possessionismo. Aliás, os episódios da cintaralha e do português necrófilo me fizeram pensar seriamente em criar uma sexta regra: ZERO EXPECTATIVAS NA HORA DE SALTAR PRA OUTROS CORPOS.
Parte 3: Tombo
Quando eu falo ‘troca de corpos’ parece uma coisa simples, mas tem uma série de sensações que percorrem meu corpo cada vez que faço uso dessa capacidade. Minha habilidade de saltar de corpos tem algumas características que eu sinto como sendo as condições de funcionamento dela. É uma coisa muito subjetiva e difícil de explicar pra quem não tem essa capacidade. Como eu já disse, de jeito nenhum vou disponibilizar meu corpo para pesquisas, pra ciência entender como meu dom funciona. Não vou ser cobaia de ninguém, então o que me resta é perceber os sinais que o meu corpo transmite e tentar entender eles e o funcionamento da habilidade de saltos de um ponto de vista orgânico.
Uma vez que eu salte, não consigo voltar pro meu corpo imediatamente. Não é teleporte, não acontece num piscar de olhos. Existe um esforço, que eu comparo ao esforço de se fazer uma conta grande de cabeça ou, pra dar um exemplo melhor, saltar de corpos é mais ou menos como tentar enxergar aquelas figuras em 3D onde você tem que desfocar a vista pra poder ver o desenho. Tem gente que consegue em segundos, alguns levam mais tempo, outros não conseguem de jeito nenhum! Com a concentração certa, eu conseguia entrar ou sair de alguém em 40 segundos, no máximo um minuto. Não importava o que estivesse acontecendo com o dono do corpo onde eu tinha saltado, sempre dava pra cair fora se alguma coisa desse errado, mas não leva menos do que quarenta segundos, por melhor que seja meu foco. Esse é o meu ‘recorde’.
Por que estou falando sobre uma tecnicalidade insignificante do possessionismo? Porque não é tão insignificante assim. Muita merda pode acontecer em quarenta segundos. Quarenta segundos separam a vida da morte. Acidentes horríveis acontecem em muito menos tempo que isso. Vidas se acabam em quarenta segundos.
No meu caso tudo se acabou em menos de trinta segundos. E como qualquer acidente fatal, aconteceu em um momento banal, rotineiro. Minha vida acabou porque eu desejei Dona Ismênia.
Ismênia era a esposa de Rogério, um colega da firma de logística onde eu trabalhava. Quando a vi pela primeira vez, na festa de confraternização da empresa, marquei a patroa do colega como um alvo em potencial. Uma mulher linda, na casa dos quarenta anos. Muito bonita de rosto, mas seu corpo era de uma voluptuosidade que chegava a ser agressiva. Nesses eventos da empresa onde todos levavam as famílias, a mulher de Rogério sempre estava bem maquiada, sem exageros, e apesar de se vestir discretamente, suas curvas eram tão generosas que seu corpo gritava por baixo das roupas comportadas. Ismênia e Rogério pareciam ser o casal perfeito, só sorrisos e simpatia nessas ocasiões sociais. Um casal em perfeita sintonia, era o que eles passavam a quem conversasse com qualquer um dos dois. Casais como esse me animavam a …. entrar na relação, já que essa boa química me facilitava a usufruir da mulher em questão; ficava mais convincente eu tomar controle do corpo do corno e as esposas não percebiam nada de estranho. Foi por isso que, depois daquela festinha de final de ano, após uma conversa animada falando sobre amenidades, decidir que saltaria em Rogério naquela noite, depois da festa.
Chegando bêbado em casa, fiz os preparativos pra trocar de corpo com Rogério e conhecer Dona Ismênia mais de perto: Os comprimidos, a concentração, o formigamento nos dedos, aquela sensação familiar de sair do próprio corpo pra saltar em outro eeeeeeeeee…. PRONTO! E parece que cheguei na melhor hora: Estou deitado no chão, e Dona Ismênia já me cavalgando, que maravilha! Olho ela nos olhos, mas ela parece não conseguir me encarar de volta, sinto aí uma sombra de desconforto, e não faço idéia do que pode ter sido, já que entrei no meio da brincadeira. Mas vamos lá. Tento não dar muita atenção pra isso e olho pra Ismênia, nua, em cima de mim, as mãos atrás do corpo, rebolando os quadris no encaixe homem/mulher no qual eu sou tão viciado. E que corpo, lindo como eu imaginava olhando as roupas que o cobriam na festa! A vida é boa pra quem pode saltar de corpos!
Já não me sinto mais bêbado, afinal, Rogério consumiu muito pouco ou nenhum álcool na festa. Apesar de um pouco mais velho que eu, Rogério ainda estava em boa forma. Sinto tudo, meu fôlego está ok, e o equipamento que peguei emprestado parece dar conta da tarefa com a patroa. Disse pra mim mesmo que era só relaxar, curtir, gozar e pular fora, de olhos fechados, pensando em o quanto a vida era boa, até que Ismênia diminuiu a cadência da cavalgada e disse “Você acha que eu sou idiota, né Rogério?“.
Sem entender direito, respondi meio lânguido “O que foi, benzinho? Não entendi…”. Isso deixou Ismênia possessa, terminando de vez a movimentação lá embaixo: “Benzinho? BENZINHO???? BENZINHO VOCÊ CHAMA LÁ AS TUAS PIRANHA!! EU SABIA QUE VOCÊ TAVA ME TRAINDO! EU NÃO AGUENTO MAIS ROGÉRIO, HOJE EU VOU DAR UM FIM NISSO!!!“
Ismênia move os braços de detrás de seu corpo e vejo que ela escondia uma faca enorme, daquelas de cabo branco, de açougueiro, e sem a menor hesitação afunda a faca até o cabo, certeiro em meu peito, ou melhor, no peito de Rogério. O choque foi tão grande que não consegui reunir o foco necessário pra saltar fora e deixar que Rogério se entendesse com sua mulher, e acho que o ferimento que ela me infligiu não me daria os quarenta segundos de que precisava pra saltar de volta pro meu corpo, de qualquer forma. Ismênia, possessa, puxa a faca, apenas para voltar a enterrar ela em meu peito seis, sete, oito vezes…. perdi a conta. Estou morto. Estou morto e não morri no meu corpo.
***
Engraçado. Por menos que eu saiba como minha habilidade funciona, ter “morrido” me fez perceber que a dinâmica da coisa exige algum processo fisiológico envolvendo os corpos, algum processo que não ocorre quando o corpo morre. Mas o bizarro é que seja lá pra onde vão as mentes ou as almas depois da morte, talvez por causa da minha condição fora do natural, minha consciência não seguiu essa rota e permaneceu no corpo de Rogério. Para todos os efeitos, Rogério morreu, assassinado por Ismênia, sua esposa ciumenta, que por causa de alguma suspeita, confirmada ou não, desferiu 39 facadas em seu peito. Em meu peito.
Não importa. Sei disso porque o legista registrou e, claro, eu estava presente durante a autópsia. E senti cada incisão, cada sutura. Depois o embalsamamento e os procedimentos para o velório, e por fim o funeral.
Deitado no caixão na capela, assisti de camarote à cerimônia fúnebre, tive que aguentar os parentes e amigos de Rogério choramingando sobre o corpo. E também os vizinhos. E os colegas de trabalho.
E sim, a uma certa altura do velório eu estava lá. Ou melhor, Rogério, usando o meu corpo! Rogério, que deve ter acordado com uma puta ressaca na manhã seguinte, em um corpo diferente, mas VIVO. Deve ter entendido mais ou menos o que aconteceu. Tendo uma segunda chance pra viver por aí. Talvez até tenha a possibilidade de aprender a saltar um dia, se isso realmente for uma habilidade física, e se divertir a valer com isso. E ser mais esperto que eu. Já as minhas perspectivas daqui pra frente? Ir pra debaixo da terra.
Aqui no jazigo perpétuo, lacrado dentro do caixão, virei testemunha da decomposição desse corpo, debaixo da terra até sei lá quando. Consigo sentir “meu” corpo apodrecendo. Consigo sentir os vermes escavando seus túneis na carne arruinada, e também outros bichos maiores. Insetos, ratos…. todos vêm e levam alguma coisa desse corpo embora, um pedacinho de cada vez, me cutucando, provocando uma espécie de cócega que, logicamente, não consigo coçar. Não chega a ser o Inferno, mas ainda assim é uma tortura. Ou talvez seja o meu Inferno pessoal. Quando você se mete em uma situação onde se estrepa feio, acho que é normal pensar que aquilo é a sua punição. Bom, só o que posso fazer é torcer pra que esses bichinhos sejam rápidos e vorazes e devorem tudo, já que essa carcaça é uma prisão. Quem sabe quando não sobrar nada eu esteja livre. Mas isso acaba fazendo com que outras perguntas surjam. Até quando vou ter que ficar assistindo isso? Até virar pó? E depois, pra onde vou depois disso? Minha consciência vai continuar presa a esses restos até me transformar em um punhado de pó? Acho que vou descobrir, mas vão ser segundos após segundos infinitos até eu ter as respostas aqui embaixo. Acho que tentar fazer amor com o Godzilla teria sido menos perigoso….
Eduardo Cruz (@eduardo_cruz_80)
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Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.
Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.
Insano!!!! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Showww!!!! Amei, muito bon. 👏🏾👏🏾👏🏾
MUITO BOM, MEU NOBRE!!!
Mergulhei na narrativa, excelente, por sinal!
Muito obrigado, Josias!