CONTOS DA ZONA: Recompensa.

Então é isso. Fim.

Acabou.

Engraçado isso, um final que é um começo que é um final… parece aquela música, não lembro de quem… Como era mesmo….? “The End Is The Beginning Is The End“… A cobra mordendo a própria cauda, a vida REALMENTE passando feito filme, momentos desconexos, não lineares… O fluxo de pensamento é tão intenso e confuso quando não se tem mais um corpo físico! Me sinto como água que se espalha depois que o jarro se quebra. Mas não posso me espalhar! Não vou me desmanchar no éter! Não vivi uma vida de privação e dificuldade para me desvanecer na eternidade como se fosse fumaça! Cadê minha recompensa? Você nasce, cresce, pisca, passam vinte anos, se casa, pisca de novo e se passam mais vinte anos, suas juntas doem e você mal consegue andar, mais alguns anos, pisca outra vez, tudo turvo e borrado, e daí você morre. Com sorte, é assim que as coisas acontecem. Mas e o que vem depois? O que tem pra mim?

Agora estou aqui. O tal além-vida. O famoso além… Sem máscaras, sem invencionices. Todo mundo especula e ninguém tem certeza absoluta, desde… sempre! Crenças, mitos, conjecturas, suposições. Agora é a hora de descobrir a verdade. Superei o choque inicial, a confusão, sei o que me aconteceu, não estou confuso. Não muito. A consciência íntegra… consigo ver outros aqui. Como eu, devem ter merecido a paz, o descanso do mundo material, e também conseguiram conservar sua essência. Suas… ‘almas’… Somos lindos! Somos cristais luminosos e perfeitos, ressoando em uma vibração de amor… É nisso que nos metamorfoseamos depois de morrer…? FOCO! Onde estou exatamente? Pra onde vou agora? O que é aquele movimento lá longe? O que são aquelas… coisas? O que estão fazendo…?

As dimensões deles… são indescritíveis. ‘Colossal‘ mal define o porte desses seres. Eles parecem existir… em muitos ângulos ao mesmo tempo. É estranho focar a visão nisso. Como num sonho, paira a noção, ou melhor, a certeza de que eles sempre existiram… difícil descrever em palavras. Por mais que eu tente, não sou capaz de descrevê-los. Não com os termos limitados que a humanidade possui. Só consigo compreender que conceitos como ‘beleza’ e ‘horror’ aqui não são aplicáveis. Mais fácil descrever uma cor que não existe. Também como em um sonho, consigo entender o que eles dizem uns aos outros, apesar de mal ser possível taxar aquilo de linguagem… pelo menos não no sentido convencional. Eles se exprimem através de agregados emocionais, gestos amplos, sons pavorosos… Eu entendo um deles exprimir uma sentença: “Quanto mais puros melhor“. Do que essas… coisas estão falando?

Antes que eu consiga começar a especular o significado da frase, vejo um deles pegar outros como eu, com o que imagino ser o equivalente a braços. A criatura escolhe cuidadosamente alguns dos cristais que um dia foram pessoas espalhados ao redor deles, de forma aleatória, ao que me parece. Como uma colheita. Isso é perturbador… E colocam essas almas em uma espécie de… Não! Não é isso, não pode ser isso! Nós temos objetos parecidos. Apesar das diferenças grotescas na aparência desse aqui, a função é óbvia demais para confundir. Aquilo é um narguilê! Eles colocam almas humanas em um grande cachimbo… e as vaporizam, tragando o que é queimado! Displicentes e indiferentes a nós, que aos poucos, nos aproximamos chorando, horrorizados com a compreensão do que vai acontecer e com a impotência da certeza de que não existe fuga disso. Viemos pra cá pra morrer uma segunda e definitiva morte. Dessa vez apagados pra sempre da existência.
Meu deus, isso é uma gargalhada de prazer? Eles sabem que eu sei. E se divertem com isso. Eles estão chapados. E o ‘barato’ são nossas almas imortais.

Não matei. Não roubei. Não fui infiel. Não fui cruel nem desleal com o próximo. Não ultrapassei a fronteira do ‘imoral’ ou ‘errado’. Ou pelo menos o que nós cremos ser imoral e errado. Lutei a minha vida toda para manter minha alma como esse cristal puro e imaculado, orientado sempre por um maniqueísmo inflexível! Só fiz o bem. Sempre o bem. Fui uma pessoa boa. Ascendi para um plano superior de realidade. E qual foi a minha recompensa? Me tornei uma mera droga recreativa dos nossos ‘Deuses’, indolentes e egoístas. E vou me desmanchar como fumaça no cachimbo dos deuses. É assim que tudo acaba? Sou só mais uma dose para alimentar o vício de deuses embriagados? Minha vida, um sonho limitado. Minha morte, um delírio efêmero. Essa é a recompensa da humanidade?

Se eu pudesse dar um conselho de além túmulo pra vocês, esse conselho seria: NÃO MORRAM! Façam o impossível, o que for preciso, mas nunca saiam desse plano! NUNCA VENHAM PARA CÁ! Não abandonem o mundo material sob hipótese alguma! O pecado em vida não faz diferença! No fim das contas, nada do que se faz na Terra importa! Se o ‘bem’ leva a isso, que diferença faz trilhar o ‘mal’? Agora eu entendo a razão dos mitos, das religiões, das mentiras! Tudo é uma grande cortina de fumaça pra encobrir essa realidade insuportável! Nada pode ser pior do que esse ‘paraíso’! O que nos espera aqui é…

Eduardo Cruz (eduardo_cruz80)

Contos da Zona são histórias escritas pelos membros da Zona Negativa, com o objetivo de expandirem a produção de conteúdo para além das resenhas. Assim sendo, esperamos proporcionar boas experiências de leituras e reflexões. Deixe seu comentário 🙂

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

2 comentários em “CONTOS DA ZONA: Recompensa.”

    • Josias Ortega, o leitor mais antigo e mais fiel da Zona! Faltam palavras para agradecer seu carinho e sua persistência em seguir a gente. E se eu te dissesse que tem mais uns dois ou três contos tão perturbadores quanto esse ainda por serem publicados nas próximas semanas? E só estou me referindo à minha produção, fora as loucuras que o Wesley despeja nas semanas em que é a vez dele hehehehehe. A Zona Negativa ainda tem muita história pra contar. Cola com a gente e continue acompanhando nossos contos inquietantes 😉

      Responder

Deixe um comentário