Doutor Castor – Parece ficção, mas é apenas o retrato de um Rio nem tão antigo assim.

Antes de escrever esse texto, eu fui perguntar para as pessoas o que vinha à cabeça delas quando pensavam em Rio de Janeiro. Foram inúmeras respostas. Algumas inesperadas como linguiça artesanal, mas a maioria entrou no clichê: praia, carnaval e futebol. Na juventude, Castor Gonçalves de Andrade e Silva, frequentava assiduamente a praia, mas foram os outros dois itens dessa lista de patrimônios do Rio que o eternizaram como um dos mais icônicos personagens do Brasil.



Em fevereiro de 2021 a plataforma de streaming Globoplay lançou um documentário em quatro episódios sobre a vida do bicheiro Castor de Andrade, figura altamente conhecida nas décadas de 80/90. Mas chamar ele apenas de bicheiro é desperdiçar uma história, do sujeito que falava com absolutamente qualquer casta da sociedade brasileira como se estivesse falando com alguém próximo. Ele aparecia em tudo quanto era lugar, cercado de todo tipo de pessoas. Aparecia no carnaval, no futebol, com políticos, bandidos e famosos. Aparecia nas colunas esportivas, policiais e sociais. E aí você se pergunta, mas ninguém sabia que ele era bandido né? Ledo engano.

Castor de Andrade nasceu em fevereiro de 1926, no Rio de Janeiro. Filho de Euzébio de Andrade e Dona Carmem, estudou no Colégio Pedro II e se formou em Direito. Herdou do pai duas coisas que seriam fundamentais para que ele se tornasse a figura que se tornou, o Bangu Atlético Clube e o esquema de jogo do bicho, do qual sua vó, Dona Eurídice era matrona. Euzébio nunca gostou muito do jogo do bicho, apesar do dinheiro que fazia com a contravenção. Castor, no entanto, havia herdado da avó o gosto pelo jogo. Euzébio pavimentou o que seria a estrada do filho até a fama.

Uma bola no pé, uma arma na mão.

Castor não escondia de ninguém sua paixão pelo Bangu. Muitos dizem que não existe Bangu sem Castor, que o clube afundou sem ele e nunca mais voltará. Não é difícil acreditar nisso se você parar para pensar no que o Bangu já foi e onde ele se encontra hoje. De final do campeonato brasileiro e participação na libertadores, o Bangu chegou à atual série D do nacional. Qual a diferença entre uma fase e outra? A presença do patrono Castor de Andrade, financiando o clube e brigando, de maneira literal, pelo alvirrubro carioca.



O documentário aborda com profundidade a presença de Castor no clube que tem o castor como seu mascote. Vários jogadores da época dão seus depoimentos sobre a figura do patrono, conservando um ar nostálgico e até mesmo lúdico em alguns casos. O presidente do clube era famoso por pagar prêmios em dinheiro, chamados de “bicho”, para seus atletas por vitórias ou destaques de desempenho. Sempre em dinheiro vivo, essas quantias eram uma motivação e tanto para que os jogadores desempenhassem o seu melhor em campo.

O Bangu chegou a disputar a final do Campeonato Brasileiro contra o Coritiba, em 85. Apesar de um desempenho notavelmente melhor em campo, a disputa foi para os pênaltis e o alvirrubro perdeu por 6 a 5. Ainda em 85, época em que o Brasileiro ocorria antes do Carioca no calendário anual, Bangu esteve em outra final. Dessa vez, no Carioca, enfrentou o Fluminense numa final marcada pelo erro de arbitragem de José Roberto Wright. Tempos após a polêmica final, Wright veio a público falar sobre o ocorrido e ainda assumia abertamente na mesma entrevista o fato de ser tricolor, para o ódio dos torcedores do clube de Castor.

Mas curiosamente foi no futebol feminino que Castor teve sua participação mais marcante. Em 83, após a revogação de uma ridícula lei desportiva que proibia a prática de esportes que, segundo a lei, contrariassem a natureza feminina, foi organizado o primeiro campeonato carioca de futebol feminino. A esposa do bicheiro cuidava da divisão feminina do Bangu. Logo na primeira edição, Bangu chega a final contra o Radar. Decidida em três partidas, tendo uma vitória para cada lado, a final foi realizada na casa do Bangu, o estádio Moça Bonita. Aos 35 minutos do primeiro tempo, com um placar de 1 a 0 para o visitante, uma jogadora do Radar corta uma bola levantada na área de defesa deles com a mão. Um pênalti claro que foi ignorado pelo juiz da partida e iniciou uma guerra campal entre as jogadoras dos dois times e o trio de arbitragem. Castor invadiu o campo correndo atrás do juiz com alguns de seus seguranças. O trio de arbitragem, escondido no vestiário após a confusão, só pode sair quase duas horas após o término da partida, escoltados pela polícia. O ônibus que trazia a equipe do Radar foi apedrejado e destruído no processo. Castor sofreu um processo por conta do episódio, do qual teve pena branda revertida em multa.

Os bicheiros e o samba.

Junto com o futebol, o carnaval dividia o coração de Andrade. Como patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel, ganhou cinco títulos. Um deles inclusive enquanto esteve cumprindo pena. Assim como fazia com o Bangu, Castor injetava dinheiro do próprio bolso na agremiação. E ele não tinha ressalvas com esses investimentos. Ele usava do carnaval para projetar sua imagem de mecenas boa praça e amante do carnaval. Desfilava com a escola no trajeto da Marquês de Sapucaí, dava entrevistas, fazia discursos motivacionais e até usava do microfone dos puxadores para se defender do que ele considerava perseguição por parte de seus inimigos dentro do poder público.

O maior patrono da história da Mocidade.

As escolas de samba do Rio, que deveriam figurar apenas nas colunas culturais e sociais dos jornais, tem suas histórias cruzadas inúmeras vezes por páginas policiais. A própria criação da Liga das Escolas de Samba (LIESA) é apontada como uma manobra dos bicheiros da época para conseguir prestígio e benefícios no processo de lavagem do dinheiro que vinha do jogo. E prestígio vinha aos montes. Circulando em meio aos poderosos e com os holofotes neles, os criadores da LIESA nem pareciam ter envolvimento com atividades ilícitas. Um desinformado que ligasse a TV e visse uma mesa redonda deles na Globo em horário nobre, sendo entrevistados pela Fátima Bernardes, jamais diria que se tratava de um grupo suspeito por inúmeros crimes, dos mais variados tipos.

No documentário praticamente não vemos depoimentos de pessoas ligadas a Mocidade. Talvez pelo fato de que a família Andrade continua no controle da escola. Por um período eles estiveram longe, mas retornaram e se mantém firmes contando com a nostalgia dos títulos de período dourado para a agremiação. Pelo menos na Sapucaí…

O Reino dos bichos e seu Rei.

Sim, tivemos vários bicheiros no Rio e temos muitos deles até hoje, não com a mesma falsa glória e glamour de outrora, mas temos. Porém nenhum deles se destacou tanto quanto Castor. E ele deve tudo que construiu a esse jogo despretensioso que surgiu numa tentativa de aumentar a visitação ao zoológico. Em 1892 o Brasil vivia um período de intensa especulação financeira e jogatina na Bolsa de Valores, o que causou um grande baque no comércio nos primeiros anos da República. Com isso muitos comerciantes passaram a utilizar de sorteios e brindes para atrair clientes e aquecer vendas. Mirando essa prática, o Barão de Drummond decidiu instituir um sorteio para os frequentadores de seu Jardim Zoológico. A mecânica consistia em 25 bilhetes diferentes, cada um com um animal do Zoo. Todos os dias, um desses era escolhido por sorteio e mantido em segredo sob um pano que só era retirado ao final do dia. Aqueles que portavam os bilhetes do dia com o animal escolhido ganhavam um valor em dinheiro. Tempos depois, com a associação dos animais a números da Loteria (de 0 a 99), o jogo passou a ser difundido fora da temática de visitantes do Zoo e se espalhou pela cidade.

Logo o jogo tomou conta da cidade e do país. Com seu funcionamento simples e sua organização em torno de cartéis, passou do simples sorteio do zoológico para o maior jogo de azar do Brasil. Não demorou para que se criassem grandes jogadores nesses cartéis e isso transformasse os bicheiros nos maiores contraventores da época. Famílias inteiras se envolviam no jogo no maior estilo mafioso italiano que estamos acostumados a ver em filmes e séries. Um desses nomes importantes no cenário era a Dona Eurídice que constituiu uma das maiores bancas de bicho de sua região, passando o negócio para seu filho e a paixão pelo jogo para seu neto Castor. Outros nomes importantes se destacaram no decorrer dos anos. Capitão Guimarães, Turcão, Anísio Abrãao David entre outros. Todos chefiavam grandes bairros e até municípios inteiros até que, após muita guerra e sangue, setorizaram todo o estado em uma grande Sociedade do Crime. Sem dúvida alguma a maneira mais fácil de visualizar essa confraria era através da formação da LIESA, onde cada um dos 13 grandes bicheiros do RJ era patrono de uma das escolas.

Castor no Programa do Jô

Com seu carisma e lábia, associados a visibilidade que o futebol e o carnaval geravam, Castor se tornou o mais emblemático dos bicheiros. Sua posição de liderança e conciliação entre os grandes jogadores da máfia, lhe rendeu a alcunha de Capo di tutti capi, em referência ao título dado ao chefe dos chefes da máfia italiana. Andrade andava em todos os ciclos sociais e durante as investigações de 1993 que levariam os grandes bicheiros ao cárcere, inúmeros documentos e anotações do mesmo continham nomes que iriam desde policiais de bairro até grandes nomes dos corredores do Planalto. A lista de pagamento do bicheiro era extensa e traduzia o alcance do poder dele. Mas como qualquer contraventor, seu poder chegou ao fim em 1993, após julgamento pelas mãos da juíza Denise Frossard, que além dele condenou outros 13 por formação de quadrilha. Todos os grandes bicheiros do RJ foram detidos numa única operação que escancarou o tamanho da rede de crimes do império do bicho. Com a jogada de indiciar os bicheiros por formação de quadrilha, ela conseguiu ligar o grupo formalmente a 53 mortes. Meses antes da condenação, Castor fez seu icônico discurso acusando o Estado de perseguição injusta e ataque a sua honra, em plena Sapucaí.

Castor e seu “ótimo” disfarce durante sua prisão no Salão do Automóvel.

Doutor Castor nos traz um retrato do RJ dos anos 60 a 90, pela ótica de um personagem rico, uma época romantizada por muitos, mas que escondeu a podridão do nascimento das milícias e do crime organizado, que através dos bicheiros tinha o aspecto de fezes perfumadas, com aquele perfume bem barato, que mascara qualquer coisa na primeira hora de uso. Vale a pena chafurdar nessa história e ver como era a sociedade da época e avaliar se melhoramos ou apenas mudamos nossa forma de sermos coniventes com alguns problemas.

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Pedro Rodrigues
Perdido na vida há trinta anos, sem vocação pra ser "cult" e fã dos escritores britânicos. Estuda tarô, cabala, hermetismo, magia do caos e teoria da Mãe Piruleta que traz seu amor em três dias em território nacional. Em meio a tudo isso descobriu seu animal de poder, uma lontra albina. Lendo de bula de remédio a Liber Null e Necronomicon, seu propósito com a escrita é esvaziar a mente e evitar com isso a perda do seu réu primário.

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