Genealogia Lovecraftiana #004: ALÉM DA IMAGINAÇÃO E DO TEMPO, de Clark Ashton Smith

“Em termos de esquisitices demoníacas e abundância de ideias talvez nenhum outro escritor vivo ou morto supere Clark Ashton Smith.”

H.P. Lovecraft

Clark Ashton Smith (1893-1961) foi um autor (e escultor, e poeta, e pintor….) de fantasia e ficção científica pertencente ao círculo de autores amigos de H. P. Lovecraft, daqueles que só ouvimos falar por alto em site especializados em literatura pulp e horror cósmico ou em documentários sobre a vida e obra de Lovecraft, e mesmo assim só tínhamos essas informações básicas disponíveis, e nada além disso. Até que as estrelas certas se alinharam novamente e a Editora Clock Tower decidiu dar mais um passo histórico por aqui e publicar o PRIMEIRO livro de contos desse autor. O corre aconteceu na plataforma Catarse, e posso dizer, como um dos orgulhosos participantes, que o projeto mereceu muito ser bem sucedido!

Arte de Leander Moura

Smith vivia na Califórnia, foi uma criança autodidata e, semelhante a Lovecraft, um recluso que, devido a seus problemas de fobia e mais tarde, por causa da atenção que dispensava a seus pais, ajudando em seu sustento, casou-se tardiamente. Costumava esculpir suas criaturas, o que ajudava, e muito na descrição delas em prosa, e através de correspondências com outros autores, acabou por integrar esse distinto círculo dos escritores de weird fiction em sua época e posteridade afora.

Como um dos idealizadores do que foi consolidado como os Mythos de Cthulhu, Clark compartilha seu universo com outros autores assim como bebe da fonte deles, seja no uso da pré histórica Hiperbórea para ambientação de alguns contos, seja utilizando o Necronomicon, livro maldito criado por Lovecraft, ou por integrar em seus contos entidades já conhecidas da obra de Lovecraft como o deus sapo/morcego Tasthoggua, os carniçais (ou ghouls, dependendo do tradutor) e Atlach-Nacha, o deus aranha que vive entre aqui e a Terra dos Sonhos Lovecraftiana.

“As areias do deserto de Yondo não são como as de outros desertos, porque Yondo fica mais perto que todos da borda do mundo e estranhos ventos, que sopram de um abismo que nenhum astrônomo esperaria conhecer, semearam seus campos arruinados com a poeira de planetas corroídos e as cinzas negras de sóis extintos. As montanhas negras e arredondadas que se erguem de sua planície esburacada e rugosa não lhe pertencem todas, algumas são asteroides caídos, meio sepultados no areal profundo. Coisas rastejaram do espaço inferior, coisas cuja incursão é impedida pelos deuses vigilantes de qualquer terra sadia e bem organizada; mas não há desses deuses em Yondo, onde vivem os gênios encanecidos de astros abolidos e os decrépitos demônios desabrigados pela destruição de seus infernos ancestrais.”

As Abominações de Yondo, 1926

Quem já chafurda nos nichos do Horror Cósmico ou Fantasia ou Espada e Feitiçaria vai se sentir beeeeeeeem à vontade com a prosa de Smith. O autor tem ciclos de histórias muito bem estruturados e independentes, que se passam em épocas muito distantes entre si na história de nosso mundo. Com um leque de histórias que se passam na época contemporânea, transitando pelo passado imemorial da Hiperbórea – que Smith compartilha com Robert E. Howard em Conan, o Bárbaro – ou o futuro distante do continente de Zothique, onde predomina a magia e fantasia, passando pela assombrada e medieval Averoigne, Clark nos oferece mundos díspares de formas fudidamente extremamente imaginativas e a organização dos contos na coletânea ajudam a ambientar gostosamente o leitor, que a cada conto vai conhecendo melhor esse ou aquele mundo à medida que vai avançando por essa seleção de contos, com curadoria de Igor Moraes, Denilson Carateto e tradução por José Geraldo Gouvêa, mesmo responsável pela tradução do também incrível A Terra da Noite, que resenhamos AQUI.

Mapa de Averoigne, um dos cenários onde Smith ambienta seus contos.

Além dos contos, temos os atraentes apêndices elaborados pela editora: Prefácio, introdução por especialistas em literatura pulp, uma breve biografia de Smith, um glossário de termos e a relação completa de contos produzidos pelo autor! Tá achando pouco? A Clock Tower também incluiu um poema do autor e duas peças históricas: Uma carta onde Lovecraft se corresponde com Smith pela primeira vez, e outra carta onde Robert E. Howard troca algumas figurinhas com Smith a respeito do ofício de escritor, inclusive lhe contando o segredo para a elaboração de seu personagem mais famoso: Conan, o Bárbaro! Demorou pacas até alguém decidir olhar pra esse autor tão importante para o gênero mas o resultado final ficou caprichado e à altura!

“Ali, no princípio cinzento da Terra, a massa sem forma que era Ubbo-Sathla repousava entre os limos e os vapores. Sem cabeça, órgãos ou membros, vazavam de seus lados lodosos em lenta e incessante onda as formas amebianas que foram os arquétipos da vida terrestre. Seria horrível, se houvesse alguém para compreender o horror; e nojento, se houvesse quem pudesse sentir nojo. Perto dele, inclinadas ou tortas naquele brejo, estavam as poderosas tabuletas de pedra minerada nas estrelas gravadas com a inconcebível sabedoria dos deus pré-mundanos.”

Ubbo-Sathla, 1933
O tom às vezes é de aventura, mas beeeem sombrio…

A coletânea tem 15 contos + 1 poema magníficos que vão da fantasia mais inventiva e desvairada que você já leu (pelo menos aconteceu comigo rs) ao horror com ecos de Poe e Lovecraft. São eles:

A Prole Inominável (The Nameless Offspring, 1932) – Nosso protagonista, em viagem pelo interior da Inglaterra, se depara com um nobre, dono de uma mansão decadente e seu segredo grotesco envolvendo sua falecida esposa, criaturas que vivem em catacumbas e um quarto misterioso, sempre trancado, de onde saem sons de pancadas e urros bestiais. A coisa já começa quente com esse conto de mistério que evolui rapidamente pro horror e ao final, se você não estiver suando frio nas palmas das mãos, já pode passar para o conto seguinte…

Os Caçadores do Além (Hunters from Beyond, 1932) – Um escultor consegue moldar as criaturas mais abomináveis já concebidas, e não tira nenhum dos detalhes da própria imaginação. Digamos que esse conto é o irmão espiritual da história O Modelo de Pickman, de autoria de um tal de Lovecraft heheheh…

O Retorno do Feiticeiro (The Return of the Sorcerer, 1931) – Um dos contos mais Lovecraftianos do livro. Um homem é contratado para ser assistente de um estudioso de livros profanos de ocultismo, e o auxilia na tradução de trechos do Necronomicon. A partir dali, a sucessão de eventos se desenrola para um clímax que é bastante semelhante ao conto Herbert West: Re-animador, tanto em seu teor grotesco quanto de construção de um clima de horror crescente.

Ubbo-Sathla (Ubbo-Sathla, 1933) – Paul Tregardis encontra um estranho e antiquíssimo fragmento de cristal, e após pesquisas e estudos utilizando o pavoroso Livro de Eibon, descobre que a peça pertenceu a um poderoso feiticeiro. Dentro do cristal, Paul observa eventos ocorridos em um passado distante da Terra, e acaba conhecendo a terrível entidade Ubbo-Sathla, um deus primordial grotesco.

Ubbo-Sathla

As Sete Maldições (The Seven Geases, 1934) – Na minha opinião, o conto mais espirituoso dessa seleção! Um guerreiro Hiperboreano se embrenha em montanhas imemoriais e acaba se perdendo de seu grupo de caçadas. Encontra um velho feiticeiro que, contrariado com sua interrupção em um ritual o submete por meio de magia a cumprir uma obrigação: Se entregar como oferenda a Tsathoggua, um dos Grandes Antigos. A sequência de eventos que o leva a se complicar ainda mais com criaturas cada vez mais terríveis lembra uma fábula, mas em tons um pouco mais soturnos. Divertido até o final.

A Porta Para Saturno (The Door to Saturn, 1932) – Um conto protagonizado pelo mago Eibon, autor do famigerado Livro de Eibon, o equivalente ao Necronomicon na obra de Ashton Smith! Aqui vemos o famigerado mago fugindo de perseguidores, por conta dos deuses estranhos que ele venera. Tasthoggua, a entidade em questão, possibilita sua fuga através de um portal para o planeta Saturno! A partir daí, Smith pisa com força no pedal do weird, nos entregando toda uma fauna, flora e civilização bizarríssimas em mais um conto que pende claramente para o humor.

Tsathoggua

A Vinda do Verme Branco (The Coming of the White Worm, 1941) – Um conto de fantasia com a pegada weird típica do Smith, que a essa altura do livro o leitor já assimilou. Um mago sucumbe frente a uma entidade ancestral que traz consigo o congelamento absoluto por onde passa com seu castelo móvel, submetendo tudo e todos ao congelamento e poupando alguns poucos, para uma finalidade misteriosa. Não me lembro de ter visto algo tão estranho quanto Rlim Saikorth, a criatura concebida por Smith nesse conto.

Rlim Saikorth, uma das coisas mais estranhas já imaginadas por um escritor de fantasia…

A Santidade de Azédarac (The Holiness of Azédarac, 1933) – O bispo Azédarac, investigado por suspeita de feitiçaria, apela para o oculto para se livrar do irmão Ambrose, o emissário enviado pelo arcebispo de Averoigne para desmascará-lo. Claro que as coisas não saem como o esperado. Mais um conto com um final imprevisível e que arranca um sorrisinho do leitor quando descobrimos ao final do conto a trapaça de um dos personagens para conseguir o que queria, e dane-se Azédarac e Ambrose rs.

A Besta de Averoigne (The Beast of Averoigne, 1933) – O conto narra os horrores que um demônio vindo de outro planeta causa, assolando Averoigne e redondezas, e sua subsequente caçada.

O Colosso de Ylourgne (The Colossus of Ylourgne, 1934) – Um velho feiticeiro moribundo desenvolve uma terrível obra de magia negra para se vingar do povo que sempre o desprezou. Seu plano é imoral e profano e só seu ex aluno, Gaspar Du Nord pode impedi-lo. Ou não??? O conto foi homenageado por Mike Mignola, o criador de Hellboy, na HQ O Colosso Infernal, publicada em Hellboy Edição Histórica Volume 3 (Editora Mythos, 2014).

Capa de Almost Colossus, história do Hellboy que homenageia Clark Ashton Smith

Uma Noite em Malnéant (A Night in Malnéant, 1931) – Um viajante decide passar a noite no soturno povoado de Malnéant, um local no qual ele nunca estivera e nunca ouvira falar, porém mesmo assim lá ele presencia o funeral de alguém que não lhe era desconhecido. O que seria Malnéant? Um conto daqueles onde dá pra sentir a tristeza que Smith deitou no papel. Uma história sobre perda e saudade.

O Ídolo Escuro (The Dark Eidolon, 1934) – Um poderoso feiticeiro contraria a divindade demoníaca a quem ele serve em nome de uma antiga vingança. O resultado é funesto…

Necromancia em Naat (Necromancy in Naat, 1936) – Um dos melhores contos do livro! Uma amostra intensa de como Smith é exímio em construir mundos e criaturas absurdas e ainda assim, de facílima imersão! Ambientado no ciclo de histórias de Zothique, acompanhamos um jovem príncipe nômade em busca de sua noiva, sequestrada por piratas. Seguindo a pista de para quem a moça seria vendida, ele acaba à deriva na ilha de Naat, uma terra funesta, habitada por necromantes, que usam de magia para reanimar os mortos. A ambientação deste conto, especialmente quando se chega em Naat, é incrível, com descrições extremamente vivazes de famílias de necromantes que conspiram uns contra os outros, palácios bizarros e suntuosos, estranhos demônios familiares e muitos, mas muitos cadáveres revividos, tudo nos mais grotescos detalhes. Além da construção de mundo, Smith faz o conto ser atraente por conta de seu final, que foge do previsível, mesmo que a uma certa altura dos acontecimentos, a ficha já tenha caído que não tem como ter final feliz…

Morthylla (Morthylla, 1954) – Um jovem artista, enfadado com os prazeres da vida, se apaixona por Morthylla, uma nobre que morreu séculos antes dele nascer. O artista passa a frequentar o cemitério para cortejar a defunta. Um conto onde dá pra gente sentir a amargura do próprio Smith, envelhecido, pobre, esquecido e sem amor.

As Abominações de Yondo (The Abominations of Yondo, 1926) – Um prisioneiro é solto por seus torturadores e levado a vagar pelo terrível deserto de Yondo, local onde asteróides caem e estranhas criaturas se instalam na terra. O protagonista narra os horrores que viu por onde passou.

“De fato, seria bom se ninguém cresse neste relato, porque fino é o véu entre o homem e os abismos sem Deus. Os céus são habitados por aquilo que seria loucura conhecer e estranhas abominações têm lugar eternamente entre a terra e a lua e através das galáxias. Coisas inomináveis nos visitaram, provenientes desses horrores alienígenas, e ainda nos visitarão. Eis que o mal dos astros não é como o mal da terra.”

A Besta de Averoigne, 1933
Atlach Nacha

O que eu achei? Bom, eu nunca fui muito fã de fantasia, espada e feitiçaria e etc – tanto que só consegui me conectar de verdade com a obra de Robert E. Howard agora recentemente, em 2020 – coisas que só a pandemia faz rs -, mas é evidente até pra um neófito no gênero como eu que Smith é algo mais: Suas histórias têm um escopo imaginativo bastante ambicioso e nos comunicam temores, sentimentos e reflexões de uma maneira bem diferente do comum dentro do gênero. Ao mesmo tempo que conseguem ser violentas, ter uma certa dose de sexo saudável (eu já tava ficando cansado de quase não ver interações com personagens femininas nas histórias do Lovecraft! rs), sarcasmo, ironia, muito humor, e acima disso tudo, apesar de alguns momentos de melancolia aqui e ali, o que predomina sobre a prosa de Smith é a L E V E Z A. É estranho falar isso de alguém associado a Lovecraft, Howard e todo o resto do clubinho do cosmicismo pesado, mas só lendo pra entender o que quero dizer. É estupendo o fato de Smith fazer sátira usando o horror. Um autor que absolutamente não se levava a sério, principalmente na fase posterior a 1937, quando já não publicava mais.

Além disso, Smith entrega finais altamente imprevisíveis ao leitor, bem como interações ou construções de personagens que fogem totalmente de qualquer clichê, além de – PASMEM – terminar contos com um final feliz aqui e ali. Mas sempre de forma meio ‘torta’ e imprevisível, como o final de fábula meio estranho de As sete Maldições, ou o desfecho absolutamente trágico de Necromancia em Naat, o que deve explicar a rapidez com que li essa coletânea, a aleatoriedade dos encerramentos em seus contos…

Mais uma publicação de peso histórico que finalmente chega aos leitores brasileiros. Seria exagero afirmar que essa coletânea é um marco na bibliografia Lovecraftiana publicada por aqui? É a primeira vez que Clark Ashton Smith é publicado no Brasil e pra quem é investigador dos Mitos de Cthulhu, esse deve ser um belo dia, não é, cultistas? Repitam comigo: Tsathoggua seja louvado! Ïa! Ïa!

Editora Clock Tower.
Capa cartão (com orelhas).
283 páginas.

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Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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