GILLES HAMESH, DETETIVE (TOTALMENTE) PARTICULAR, de Alejandro Jodorowsky e Durandur. (+18!!!)

“Todos os conceitos nascem ao mesmo tempo que sua sombra. Se penso “Vida”, penso igualmente “Morte”. Não posso imaginar a claridade sem a obscuridade.”

Alejandro Jodorowsky

O conceito de Sombra na psicologia Junguiana define um arquétipo que faz oposição ao nosso eu consciente. Já na corrente freudiana a Sombra corresponde ao Id. Ambos os conceitos remetem a um aspecto da psique humana mais, digamos, selvagem, indomado. Todos os impulsos e desejos considerados imorais e/ou violentos que são censurados pela sociedade e contidos pelo eu consciente são oriundos de nossa Sombra/Id. Por vezes, padecemos a alguns destes impulsos, e não raro usamos como desculpa que “estava além do meu controle”. A Sombra/Id não faz planos, não pondera, e visa apenas satisfazer as vontades imediatas de forma egoísta, passando por cima de detalhes insignificantes como ética, lógica, moral e juízo, buscando uma solução imediata para as tensões; ela não aceita frustrações e não conhece inibição. Busca sempre o prazer e evita a dor a qualquer custo. Em resumo, a Sombra é escrota pra cacete. Mas é parte indivisível da natureza humana e há que se administrá-la para que ela cause sempre o mínimo de danos.

Foi mal, tava doidão…“, disse a sombra….

E em certos momentos essa parte mais primitiva da psique humana entra em ação e nos sobrepõe. O lado positivo é que esta mesma Sombra é responsável pelo caráter espontâneo, criativo e emocional humano e quem sabe utilizá-la, se integrar à ela (sob condições controladas, é claro) pode se beneficiar, desenvolvendo-se em diversos aspectos da vida. Tio Jodorowsky sabe disso – como esse véio incrível sabe de muitas coisas – e, dando um break em suas histórias de teor místico-enlevante-good vibes como A Louca do Sagrado Coração, Juan Solo, Cara de Lua, Metabarões e da série O Incal para, como ele próprio explica na introdução dessa HQ, soltar um pouco sua própria Sombra sobre o teclado, derramando-a sobre um roteiro. O resultado é esta HQ e seu protagonista homônimo: Gilles Hamesh.

Um gibi escroto

E como a palavra aqui é “escrotidão“, Gilles Hamesh é um perfeito avatar do conceito de escrotice. Esqueça toda a aparência e atmosfera detetivesca que a HQ pode supostamente transmitir sem no mínimo dar uma folheada atenta ou julgando-a apenas pela sua capa. Muito além do Mike Hammer do noir clássico de Mickey Spillane e até mesmo o Marv da HQ Neo Noir Sin City de Frank Miller, Gilles Hamesh encontra-se em outra categoria: seu protagonista, um detetive particular vagabundo e amoral, puro suco de Id, Hamesh sempre tropeça e cai de cabeça em crimes bizarros e de uma maneira ou de outra os soluciona, não por senso de justiça ou altruísmo, mas porque de alguma forma as ocorrências cruzam com seus desejos e anseios, e aí já viu, né? Hamesh é um péssimo ser humano e o “detetive totalmente particular” na capa é alusão ao extremo egoísmo do personagem, focado apenas em satisfazer os próprios desejos.

Para além dos clichês do noir, o personagem é um imã da escrotidão humana, e os casos de Hamesh sempre envolvem situações singelas como canibalismo, prostituição, assassinato, coprofilia, golems assassinos feitos de porra descartada em cabines de filmes pornográficos (alerta WTF), camisas com furos de bala possuídas por seus donos em busca de vingança, uma estátua de Cristo usada como marionete para cometer assassinatos homofóbicos (alerta WTF 2), profanação de anjos à base de balas e mijo… Jodo deu vazão à sua sombra sem reservas e nos leva a um passeio pelo esgoto do inconsciente coletivo da civilização, algo mais ou menos parecido com o que Grant Morrison fez em sua HQ The Filth, que resenhamos aqui, ainda (inexplicavelmente!) inédita no Brasil, com a diferença de que Gilles Hamesh é bem mais primal, tosca e direta em sua proposta de purgar estas pulsões animalescas do ser humano em suporte artístico, bem mais brutal, crua e deletéria.

Uma HQ ofensiva, asquerosa e brutal da primeira à última página, que à época de seu lançamento despertou receio por parte da editora em publicar um material com temas tão delicados, mas que felizmente teve recepção positiva de quem compreendeu a proposta e a elevou ao status de cult, Gilles Hamesh não é pra qualquer leitor – na verdade, é pra bem poucos, e falo isso sem um pingo de esnobismo! Nem todo mundo é obrigado a ter o estômago necessário para realizar tal leitura e tá tudo bem e é sobre isso – mas quem compreende a importância de se realizar a sessão de descarrego que é ler esta HQ perturbadora sairá gratificado da experiência. Usar sua Sombra a seu favor é uma das tarefas mais difíceis da vida, já que geralmente acabamos mesmo é deixando ela nos usar pra ficar fazendo projeções e arrumando treta com os amiguinhos vida afora. Mas se você quer ver como se doma a Sombra e se faz ARTE com ela, Gilles Hamesh é um exemplo magistral de uma façanha desse porte.

  • Editora: ‎Veneta (novembro 2022)
  • Idioma: ‎Português
  • Capa cartão com orelhas ‎
  • 96 páginas

Eduardo Cruz (@eduardo_cruz_80)

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Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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