GOMÒRIA, de Carlo H. De’Medici

Gaetano Trevi é um jovem herdeiro que, após a morte dos pais, passa a viver a vida em excessos e esbórnia, dilapidando sua herança até sofrer uma crise nervosa acarretada por essa busca desenfreada por prazer. Trevi acaba empacado no extremo oposto da roda do hedonismo, agora carente de sensações que não pode mais experimentar devido à sua saúde debilitada por excessos, o que o faz inicialmente, cultivar pequenos vícios e passatempos frívolos como apostas em corridas de cavalos e de carros, decoração doméstica cara e ostensiva, chegando a ‘evoluir’ para jogos mais perversamente ‘sofisticados’, como corromper pessoas, até que por fim, falido, acaba obrigado a viver uma vida reclusa na única propriedade de sua família que lhe restou: Malanotte, uma velha fortaleza medieval caindo aos pedaços.

Levado pelo desespero e privação, Trevi toma uma atitude drástica: invocar um demônio para realizar um pacto em troca de sorte no jogo e fortuna, sem se importar com o custo. Trevi irresponsavelmente barganha com Gomòria, um demônio com aparência de mulher, em um ritual arcano tirado das páginas do Pseudobiblion – livro fictício similar ao Necronomicon de H. P. Lovecraft -, um grimório encadernado com a pele de uma criança que morreu sem batismo. Tentando tirar vantagem desse conhecimento maldito, será que dessa vez ele, que sempre usou tudo e todos conforme sua conveniência, conseguirá tirar proveito dessas forças ocultas?

Essa é a trama de Gomòria, livro do escritor Carlo H. De’Medici escrito em 1921 e publicado aqui pela editora Legatus, editora que teve um catálogo pequeno (apenas 5 livros) e um curtíssimo período de funcionamento, mas que mostrou uma curadoria promissora com algumas pérolas da literatura gótica/decadentista como A Freira no Subterrâneo, de Camilo Castelo Branco, Esfinge, de Coelho Neto, No Hospício, de Rocha Pombo, O Testamento de Magdalen Blair, de Aleister Crowley (ELE MESMO!) e claro, Gomòria. E foi só isso, infelizmente. A editora (parece) ter encerrado suas atividades, porém não há nada oficializando tal encerramento em suas mídias sociais. Uma pena, e o mais trágico: encerrou antes de poder publicar outro livro incrível de De’Medici, o também raríssimo I Topi Del Cimitero. Como eu queria ler o que dizem ser um livro de contos com um protagonista mais perverso que o outro 😱😱😱…

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Gaetano Trevi, nosso protagonista, é bem desenvolvido em sua personalidade abjeta e pode ser resumido como um playboy megalomaníaco depravado, mimado e blasé que beira a sociopatia, tamanho é o descaso para com os que o cercam, como vemos na passagem onde ele resgata das ruas uma moça de 15 anos abandonada pelos pais. Ele a leva para casa, onde cuida, veste e a alimenta, apenas com o objetivo de soltá-la no mundão novamente, prevendo sua decadência com detalhes sórdidos, afundada na prostituição, no vício e em outros infortúnios bem desagradáveis. Alerta de gatilho para algumas passagens. Essa obra tem pouco mais de um século de idade, mas não esperem suavidade aqui. De’Medici descreve com riqueza de detalhes a vida insossa e ao mesmo tempo perversa de Trevi, que parece ter “pifado’ seus receptores de prazer, bem como levado sua fisiologia à exaustão com tantos abusos e excesso de estímulos. Um personagem Wyldiano que não deve nada ao próprio Dorian Grey.

Destaque também para a personagem Zimzerla, uma jovem que faz contraponto a Gaetano e age como um catalisador para as ações que podem levar à derrocada final de Trevi, porém o mais interessante é como o protagonista vai tratando Zimzerla no decorrer da história, com uma verve cada vez mais misógina que evidencia justamente essa atitude masculina agressiva frente a uma figura feminina que desperta fascínio e temor. De’Medici instila a paranoia de Trevi no leitor, que sente que de alguma forma Zimzerla está escondendo o jogo, com uma sabedoria insidiosa e uma força que abala Trevi de formas que ele mal consegue compreender. Seus caminhos seguem entrelaçados até o inevitável final amargo.

Desenho de Carlo H. De’Medici

A obra, segundo o posfácio de Guido Andrea Pautasso, possui ecos que associam o protagonista Gaetano ao autor De’Medici, com um certo tom autobiográfico e o que a torna uma pérola do gótico/decadentismo é essa soma de um protagonista pérfido e dionisiacamente perverso ao teor de ocultismo que encharca a obra, notável a ponto de intrigar especialistas e estudiosos do oculto, ávidos por essas referências ocultistas espalhadas na obra do autor.

Carlo H. De Medici - Escritor
Carlo H. De Medici

A história tem uma prosa bem fluida e as 210 páginas do romance são uma leitura rápida e agradável – exceto pelos indigestos feitos de Trevi e sua rotina afetadíssima de dândi mimado. A capa, bem como as ilustrações internas, são de autoria do próprio De’Medici, no melhor estilo de Kurt Vonnegut de escrever e ilustrar as próprias obras, numa polivalência que, pelo menos na minha experiência, só aumenta o prazer da leitura da história. O livro tem notas explicativas no rodapé das páginas onde se fazem necessárias pelo tradutor Giancarlo DAnello e de paratextos, possui apenas um pequeno posfácio bastante informativo, de autoria de Guido Andrea Pautasso, que esmiuça um pouco da vida e obra do autor, que possui vários livros “perdidos” e nunca publicados mesmo em seu país natal, a Itália.

A leitura de Gomòria é um daqueles mergulhos na alma humana do qual o leitor pode sair totalmente enlamaçado, fica a advertência. Mas isso não torna o livro uma leitura desprazerosa. Muito pelo contrário.

• Autor: Carlo H. De’Medici
• Edição e Tradução: Giancarlo D’Anello
• 224 Páginas
• Formato:15,6 x 23,4 cm
• Capa Dura

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Eduardo Cruz (@eduardo_cruz_80)

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Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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