JORNADA NAS ESTRELAS – CIDADE À BEIRA DA ETERNIDADE, o roteiro original de Harlan Ellison


“Quando deixamos a Terra, cada um dos 450 tripulantes da Enterprise foi considerado estável. Mas já se passaram dois anos… dois anos de forte pressão. Realizamos sondagens mentais com frequência, mas sabemos que alguns estão mudados. Inclusive alguns podem ter se estragado: só descobriremos quando a rachadura ficar aparente.”

Diário de bordo do Capitão James T. Kirk

Considerado um dos melhores episódios da série clássica de Star Trek, o roteiro de “Cidade à beira da eternidade”, penúltimo episódio da primeira temporada, gerou bastante controvérsia entre os envolvidos na criação da série na época. O roteirista Harlan Ellison foi alertado pelo criador da série Gene Roddenberry de que o roteiro necessitava de mudanças devido a restrições orçamentárias. Ellison não concordou e se afastou da série após Roddenberry e os outros roteiristas decidirem fazer as adaptações e gravar o episódio. Com o roteiro original em mãos, Ellison o inscreveu em diversos concursos e ganhou alguns prêmios.  A popularização massiva da série anos depois, somado a fama que o roteiro original alcançou, sempre gerou muitas especulações entre os fãs sobre qual versão seria superior.

Décadas depois, a editora IDW adquiriu os direitos de publicação de quadrinhos da franquia e negociou com Ellison a adaptação de seu roteiro, que ficou a cargo de Scott Tipton e David Tipton com arte de JK Woodward sendo publicada em 2014 em cinco partes. A versão nacional ficou por conta da editora Mythos, uma edição em capa dura com o belo acabamento gráfico que esse grande clássico da ficção científica merece.

Ellison e os colaboradores responsáveis pelo projeto. Da esquerda para direita: Scott Tipton, David Tipton, o editor Chris Ryall e JK Woodward.

Na trama, após perseguirem um oficial que trafica drogas dentro da Enterprise até um misterioso planeta, Capitão Kirk e seu grupo descobrem uma estranha cidade, e lá conhecem os guardiões do tempo que dizem que o planeta está no centro do fluxo temporal do universo. Através de um vórtice, qualquer período do tempo poderia ser alcançado e aproveitando ter sido momentaneamente esquecido, o fugitivo se lança no vórtice para escapar, sendo responsável por alterar toda a linha temporal em que Kirk e companhia estavam. Orientados pelos passivos guardiões, Kirk e Spock decidem viajar no tempo para seguir o rastro do criminoso, chegar antes dele no destino final e impedir a mudança. A dupla reaparece em Nova York nos anos 30 em meio a Grande Depressão e lá descobrem que a restituição de sua linha temporal dependerá de que uma enorme tragédia se cumpra.

The Nuncia: Piloto chapado conduzindo a Enterprise, indo lisergicamente onde nenhum homem jamais esteve!
Viagem no tempo? E o alerta de vai dar merda já ta ligado no máximo.

Sobre algumas diferenças entre os roteiros: No episódio, após um acidente na Enterprise enquanto investigavam o planeta dos guardiões, Dr McCoy é exposto a superdosagem de um medicamento antiarrítmico. Paranóico e agressivo, o doutor consegue escapar para o planeta abaixo utilizando a sala de teleporte e logo em seguida o vórtice, ocasionando a ruptura da linha temporal em que estavam. Kirk e Spock imediatamente vão atrás de seu companheiro para impedI-lo de causar o dano temporal. Com a adaptação, a perseguição a um oficial criminoso e traidor se transforma no resgate do companheiro momentaneamente insano. Ficou claro que inserir elementos que sugeriam o consumo de drogas dentro da Enterprise não agradou Roddenberry nem um pouco. Os homens e mulheres de sua utopia militar-socialista não poderiam sucumbir a problemas tão mundanos como dependência química e tentativas desesperadas de escapismo de um ambiente confinado e instável.  As motivações tanto para Beckwith quanto para o Dr McCoy de interferir no fluxo temporal mesmo sem saber ao certo o que faziam são bem amarradas nas suas respectivas tramas, com destaque para o roteiro original em que o vilão da história em meio a tantas atitudes ruins, ainda é capaz de um ato de compaixão e empatia em vida.

As vezes o indivíduo está louco na droga.”
Oficial Beckwith metendo o loco dentro da Enterprise.

Os diálogos entre Kirk e Spock no roteiro de Ellison parecem carecer da tão conhecida dinâmica entre ambos, mostrando por vezes demais um Spock muito passional e um tanto intolerante, enquanto no episódio isso não é um problema. Por outro lado, no roteiro original dá-se um merecido destaque a Ordenança Janice Rand, personagem muito pouco aproveitada na série. Ela tem um papel fundamental para que Kirk e Spock consigam cumprir sua missão, algo que nunca chegou perto de acontecer no episódio, no qual ela nem participa.

Que mulherão da porra!


Sobre a arte, JK Woodward fez um ótimo trabalho na adaptação do roteiro e criação de cenários, capturou bem a essência e a sensação é de estar mesmo assistindo a um episódio da série clássica. No entanto, peca em algumas cenas que sugerem muito movimento e os personagens se mostram estáticos ou engessados demais. Já as capas de Juan Ortiz são um espetáculo a parte, realmente impressionantes.

Harlan Ellison foi um escritor premiado que publicou inúmeros contos, novelas, roteiros para quadrinhos, cinema, televisão, ensaios, peças de tv e críticas. Nos deixou em junho desse ano, aos 84 anos e sua morte aconteceu durante o sono por causas naturais. No prefácio e posfácio escritos por ele na edição encadernada de “Cidade à beira da eternidade”, mostra-se extremamente feliz e satisfeito de finalmente ver seu roteiro sair do papel e transposto para os quadrinhos, com direito a uma participação especial a la Hitchcock como um importante personagem no último capítulo. Harlan Ellison continuará vivendo através de suas obras e além disso tem a eterna gratidão de todo Trekker que já nasceu ou ainda nascerá.

Leonard Nimoy, Harlan Ellison e William Shatner no set de Star Trek em 1966.


Reinaldo Almeida Jr
Reinaldo Almeida Jr, também conhecido como Ray Junior, é narrador de RPG, leitor inveterado e um apaixonado por quadrinhos que anseia fundar seu próprio clube da luta de cultistas a deuses lovecraftianos, viajar pelo multiverso em busca de suas outras versões de terras paralelas para lhes contar que nada é verdadeiro e tudo é permitido, dando início a revolução invisível que nos elevará a quarta dimensão.

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