Leitura da Quarentena #36: A NOITE DOS MORTOS VIVOS

Seres pútridos em decomposição que a cada dia mais ganham os corações das pessoas, os zumbis estão inseridos na cultura pop desde mais ou menos a metade do século passado e mesmo sofrendo várias mudanças com o passar dos anos, continuam firmes e fortes no imaginário da população mundial. Quem gosta do gênero certamente já ouviu falar do famoso A Noite dos Mortos Vivos, filme de 1968 do grande George A. Romero, que apesar de não ter sido o primeiro filme do gênero, certamente foi a maior influência quando se trata de canibais desmortos para as gerações futuras. Tanto por sua genialidade narrativa, quanto pela ausência de um pequeno simbolo (©), o filme foi amplamente difundido e aclamado, gerando assim uma verdadeira epidemia de zumbis, que dura até os dias atuais, para nossa sorte.

A Noite dos Mortos-Vivos (1968) | Libreflix

Sempre fui muito fã de zumbis nos filmes, quadrinhos, jogos e todas as mídias possíveis. Comecei a curtir o estilo quando ainda era moleque e via alguns filmes oitentistas que passavam na TV aberta. Filmes esses onde as criaturas desmortas podiam falar mesmo com suas cabeças decepadas, mas que infelizmente usavam tal habilidade apenas para se queixar de fome ou de coisas superficiais e bobas, desperdiçando a oportunidade de falar um pouco mais desse pós-vida atípico.
Tal influência logo na infância pode explicar um pouco do meu senso de humor esquisito e por vezes meio mórbido. Em 2015, durante minha faculdade escrevi e dirigi um trabalho para uma disciplina de audiovisual que era um comercial para a Ifood, onde um zumbi pedia comida pelo aplicativo para não ter mais que correr atrás de sua comida no maior estilo trasheira oitentista.
Enfim, só queria deixar claro que amo zumbis e que espero de coração que o George A. Romero ainda levante de sua tumba e venha beliscar nossa bunda e venha fazer mais alguns filmes, pois vou te contar que o véio tá fazendo muita falta aqui.

George A Romero, um dos maiores nomes do universo dos zumbis, falecido em 16 de julho de 2017 com 77 anos.

Em setembro de 2020, a Mythos editora lança uma incrível releitura desse clássico dos clássicos homônimo numa edição bem bacana e com precinho camarada.
Mas aqui vai um aviso: Se você é um fã do antigo filme e acha que um remake ou uma modificação no roteiro são inadmissíveis, passe longe desse quadrinho. Aqui as modificações e adaptações são bem radicais e evidentes. Mas se você, assim como eu, acha que uma boa mudança tem lá seu valor e pode muito bem ser revigorante para uma obra já consagrada, vem comigo, pois te garanto que a viagem aqui vale a pena. Claro, é uma viagem insólita, que passa por lugares tristes e sombrios, mas ainda assim vale a pena.

Zumbebê!?

Mesmo que pareça que os autores estejam ressuscitando (Desculpe o trocadilho) idéias, o projeto consegue ser criativo, coeso e se basta por si só, não deixando a desejar em relação a sua inspiração cinematográfica. A HQ é interessante por, além de dar uma nova roupagem ao clássico de George A. Romero, trazer reflexões sobre vida e morte, lei do mais forte, etc… A arte é esplendorosa e o roteiro tem toda aquela pompa de blockbuster épico que adorávamos (Pré-pandemia, né?) encarar uma fila gigantesca só para ver na tela do cinema. Nas primeiras páginas tive um pouco de dificuldade em me adaptar ao ritmo da leitura, pois apesar de parecer igual às demais, podemos ver que se trata de uma obra singular, com ritmo e estilo próprios. Após pegar o ritmo, tudo flui maravilhosamente bem e podemos babar diante da história que temos pela frente.

Vários núcleos são introduzidos de forma independente e sem ligação aparente entre si durante as páginas e conforme esses núcleos começam a convergir, com cada vez menos personagens vivos, com um desprendimento e uma coragem narrativa impressionante. Então se eu contar muito da história, vou inevitavelmente dar spoiler e como essa não é minha intenção, vou tentar contar só por alto, mesmo que eu esteja empolgado e louco pra conversar com alguém sobre.

Pra começar somos jogados num laboratório científico que faz experiências com macacos. Mas fiquem tranquilos, os símios involuntários desses experimentos estão mortos, e são trazidos a vida pelos generosos cientistas. Infelizmente tal avanço científico se mostra instável ao passo que os primatas trazidos de volta da bananalândia se mostram extremamente violentos e descontrolados. Sendo então novamente mortos e descartados em seguida. Tais acontecimentos já conseguem por si só ter força de nos levar adiante na trama, mas mesmo assim somos apresentados a vários personagens de vários núcleos diferentes, todos buscando meios de sobreviver nessa terra desolada e cada qual com seu momentinho especial reservado com afinco, para que cada um possa ser apresentado da melhor forma possível. O que é bom e ruim. Bom que não há um personagem mal trabalhado ou à toa aqui. O ruim disso é que cada morte pesa com força, fazendo-nos lamentar quase que a perda de uma pessoa real. Somos então conduzidos até o ponto onde todas as histórias e personagens se convergem de forma majestosa, fazendo com que toda a loucura e mistério do início façam, enfim, algum sentido.

Momentos insólitos, perturbadores e belos disputam lugar nessa edição a tapas e mordidas. Verdadeiramente uma HQ que poderia facilmente ser considerada uma obra de prima dos quadrinhos de zumbi com um início, um meio e um fim muito condizente com o resto da publicação.

Com roteiros do francês Jean-Luc Istin e arte inspiradíssima do Italiano Elia Bonetti, este encadernado se mostra como uma obra prima das HQs européias, com momentos angustiantes e inspirados, que podem facilmente agradar até os fãs mais apaixonados por zumbis. Porém nem tudo são louros e até um quadrinho tão inspirado também tem sua cota de defeito. Em alguns momentos, por exemplo, a arte se mostra meio plástica e sem vida, e os personagens, mesmo sob fortes emoções parecem que colocaram botox no rosto de tão sem expressões, além de ser meio confusa nas cenas de ação mais importantes. O roteiro também dá lá suas rateadas e em alguns momentos tem algumas falas expositivas demais, cenas que muito falam e pouco mostram, mas vou ter que dar aquela passada de pano básica e dizer que mesmo isso não sendo tão legal, não consegue atrapalhar a leitura e nem a diversão. E digo mais: com um bom tratamento no roteiro, com um bom diretor e uma boa dose de grana, essa releitura poderia ser facilmente adaptada para os cinemas. Se transformando numa adaptação de um quadrinho que faz uma releitura de um clássico do cinema. Kkk Louco, não? Noite dos Mortos-vivos é sem dúvidas um puta quadrinho foda e merece uma chance de habitar eternamente sua linda estante de quadrinhos.

Texto por João Garaza (instagram: @joaogaraza)
Editora Mythos. 
164 páginas. 
Capa cartonada, Lombada quadrada
R$54,90

João Garaza
Bacharel em publicidade, ator, diretor e escritor que não se destaca em nenhuma dessas áreas.
Garaza tem um senso de humor exótico. (Algo entre tio sukita e pessoa que devia estar internada) Começou a ler HQs em 2006 e desde então acumula pilhas e mais pilhas de celulose superfaturada.
Fã do Capitão América, Deadpool, Batman e Lobo. Apreciador de autores e histórias despretensiosos.
Gosta também de passeios ao pôr do sol, andar de mãos dadas e está a procura de um novo amor. Joga a foto pra direita pra gente dar match!
;)

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