Depois, há uma sala e a cama
IAIN SINCLAIR, de “Pintando Com Uma Faca“
A dissecção do tempo
Cenário de carne, exorcismo em sangue
O entalhe de palavras proibidas
Sobre páginas de pele limpa
Antes de começarmos, precisamos conversar sobre o Sublime. Esse termo vem do latim sublimis, aquilo “que se eleva” ou “que se sustenta no ar“, e foi cunhado no século XVIII, para se preencher a necessidade de se categorizar esteticamente algo que não necessariamente fosse belo. Algo que transcendesse o que era tido como belo e que pudesse provocar algum tipo de reação estética que expresse o caráter grandioso e/ou extraordinário do que se observa, a amplitude e força do objeto das observações desenvolvendo em quem passa pela experiência um senso de pequenez, ou solidão, insignificância, auto consciência…. O sublime é ligado ao sentimento de inacessibilidade diante do incomensurável. Como tal, o sublime provoca espanto, inspirado pelo medo ou respeito. Enfim, o sublime é a emoção mais intensa que a mente humana é capaz de suportar.
Nem toda poesia é bela, suave e bonita. Vez por outra ela é mostrada em tons sombrios e assustadores, fruto das áreas obscuras que a mente humana abriga. E essa história de Alan Moore é uma poesia tão profana e funesta que chega a flertar com a beleza. Mas apenas flerta mesmo, pois é uma leitura pesada e tenebrosa sobre um fato histórico coberto com retoques de ficção para tapar as lacunas que o tempo deixou com a devida dose de poesia, algo feito com tanto empenho e cuidado que o resultado é completamente… SUBLIME.
Originalmente publicada de forma serializada entre 1989 a 1996 na revista Taboo, publicação do artista Stephen Bissette, com quem Moore trabalhou na revolucionária HQ do Monstro do Pântano nos anos 80, e depois, finalmente compilada lá fora em 1999, Do Inferno marca a parceria entre Alan Moore nos roteiros e Eddie Campbell na arte, e é um tratado, tanto histórico quanto especulativo e artístico a respeito dos crimes cometidos pelo lendariamente infame Jack, O Estripador.
Na Londres do ano de 1888, ocorreram no mínimo cinco assassinatos que podem ser vinculados ao misterioso assassino, dado o modus operandi: Especialistas indicam que a ‘assinatura’ de Jack era composta por cortes profundos na garganta, abdômen e áreas genitais, e a remoção dos órgãos internos e mutilações faciais progressivas. Isso e mais uma carta contendo metade de um rim humano e com endereço de remetente “Do Inferno“, geraram muitas especulações na época – existem cerca de CEM suspeitos a quem os crimes foram atribuídos -, que pairam até os dias atuais. Como nunca chegou a ser solucionado, o caso dos assassinatos de Whitechapel logicamente gerou lacunas imensas no imaginário popular, preenchidas por lendas, folclore, e é claro, pela arte, como Moore condensou tão bem em Do Inferno.
Como a identidade de Jack nunca chegou a ser descoberta e a história oficial sustenta esse aspecto do caso como não solucionado, Moore aproveitou para fazer as suas especulações.acerca do caso. Apesar da pesquisa obsessiva de Moore, que o levou a fazer várias viagens a Londres para consultar dezenas de livros sobre o assunto, a base fundamental de Do Inferno é o livro Jack the Ripper: The Final Solution, do jornalista Stephen Knight. O livro de Knight aborda uma teoria conspiratória envolvendo a Maçonaria, a Família Real Britânica e o pintor Walter Sickert. Knight sustenta que as vítimas foram assassinadas para encobrir um casamento entre o Príncipe Albert Victor, segundo na linha de sucessão ao trono, e Annie Elizabeth Crook, uma operária, plebéia. Apesar de peritos já terem posto a teoria de Knight por terra, o livro foi popular por bastante tempo, a tanto a graphic novel de Moore e Campbell quanto sua adaptação cinematográfica só fazem preservar a aura de lenda em torno de Jack, O Estripador.
Do Inferno foi publicado aqui no Brasil pela primeira vez no início dos anos 2000 pela editora Via Lettera, em quatro encadernados de capa cartão (o meu sonho de consumo supremo em 2002/2003, nunca realizado), e mais recentemente, no ano de 2014 em um volume único de capa dura e formato oversize, em uma edição linda de morrer, com quase 600 páginas pela editora Veneta. Esta obra se mostra grandiosa já em sua ‘embalagem’, tanto no sentido literal, quanto no sentido do brilhantismo de seu conteúdo. Claro que elogiar o mago dos quadrinhos é quase como chover no molhado, mas eu sinceramente fiquei completamente tocado ao terminar esse quadrinho. E não digo tocado de sentimentos bons apenas, pois apesar de ser magistralmente escrito, a história possui um peso como leitura de mistério, suspense e até terror que muitos filmes grandes não conseguem imprimir. Os personagens (todos eles!) são construídos de forma tão verossímil que me senti próximo a todos eles em seus momentos na história, lamentando suas mortes, comemorando seus sucessos e torcendo para todos em igual escala, mesmo quando seus objetivos eram opostos. Em certos momentos torci tanto para que Jack, O Estripador matasse sua vítima quanto para que a vítima escapasse de seu ataque insano, mesmo sabendo de seu inevitável destino real.
A HQ conta com um começo enigmático e aparentemente tímido, que nos convida a continuar a leitura, mas não necessariamente nos obriga a fazê-lo. Eu confesso que me agradei logo no primeiro capítulo, mas que só fui para o segundo depois de cerca de um mês. Preguiça, paternidade, pandemia? Não sei, mas foi o que me aconteceu. E mesmo que eu não estivesse com uma pressa voraz, uma pulguinha atrás da minha orelha foi, ao longo desse ‘cerca de um mês’ que se passou, sendo nutrida pela minha memória e pela curiosidade que aos poucos foi tomando conta de mim. Lembro de me perguntar “O que aquele começo tem a ver com o Jack, O Estripador, cacete!?“. Então retomei a leitura. E noite após noite eu ia lendo capítulo atrás de capítulo. Raramente conseguia ler mais de dois numa mesma noite por quatro motivos:
1º – É uma leitura bem pesada, portanto é preciso ler devagar para evitar uma congestão literária.
2º – A curiosidade toma conta, pois fatos reais são mesclados com ficção e era difícil não recorrer ao Google para confirmar alguns fatos históricos, fotos reais, artigos de jornal, etc… Sempre tomando cuidado para não pesquisar demais a ponto de pegar spoiler. (Spoiler de um fato histórico do século 19, mas beleza.)
3º – Apêndices imensos, que fazem a imersão ser mais profunda e a compreensão mais ampla, a ponto de termos todo o panorama da Londres Vitoriana da época descortinado com clareza. Não é uma leitura rápida, repetimos. Enquanto em algumas obras os apêndices são um mero penduricalho de leitura opcional, em Do Inferno eles são FUNDAMENTAIS.
4º – É uma leitura LITERALMENTE bem pesada, sério! O encadernado pesa 1,6Kg. (Sim, nós pesamos!) Mas com o passar das horas e com o avançar da história, esse peso só vai aumentando, até que os pensamentos devaneantes começaram a colidir com a dor na coluna que segurar esse peso todo gera.
A leitura de Do Inferno cobra uma preço tanto da mente quanto do corpo, e sugerimos uma jarra de whey protein como bebida pra acompanhar a leitura e manuseio desse calhamaço de 592 páginas, porque apesar de Moore enfeitar e fantasiar muito dos fatos, o levantamento de peso é real!
Fazendo a Cesariana do Século XX…
A história do assassino mais famoso da Inglaterra foi mesclada com fantasia e loucura, mas cada palavra e quadro lidos parecem plausíveis e reais. A arte simples pareceu um problema nos momentos iniciais de leitura, mas quando se consegue entrar no ritmo da história não a simplicidade desses traços negros, sujos, rudes são perbebidos como complementares à complexidade do roteiro. A propósito, desse roteiro que traz momentos incríveis de delírio, aproveitamos para elencar um Top 5 de momentos que fazem de Do Inferno uma das graphic novels mais incríveis já produzidas:
5 – O Homem Elefante
Na mescla de ficção e fatos históricos, uma das aparições ilustres foi a de Joseph Merrick, um cidadão inglês que, por conta de uma doença congênita que lhe deformou severamente era explorado como atração de circo, e foi popularmente conhecido como O Homem Elefante. A doença de Merrick foi posteriormente diagnosticada como Síndrome de Proteus, e pra quem quiser saber mais um pouco sobre a sofrida vida do pobre rapaz, que morreu antes de completar 30 anos de idade devido às complicações médicas que sua condição acarretava – Merrick não podia dormir deitado devido ao formato de sua cabeça! -, recomendamos o filme The Elephant Man (1980), dirigido por ninguém menos que David Lynch (Twin Peaks), e com um elenco magnífico (John Hurt, Anthony Hopkins, Anne Bancroft). Uma dica: Mantenha os lenços de papel à mão, você vai chorar!
4 – A Besta Passa Pra Dar Um Oi…
Em uma cena, vemos a população curiosa observando o local onde mais uma das vítimas de Jack havia sido encontrada enquanto a polícia tenta controlar a bagunça e dar prosseguimento às investigações. Do nada, um moleque gorducho e abelhudo aparece e troca algumas palavras com o guarda de serviço, mostrando todo o atrevimento daquele que viria a ser conhecido como A Besta. Aleister Crowley foi uma figura à frente de seu tempo e seu legado e obra influenciaram desde Alan Moore a Raul Seixas, como podemos ver AQUI.
3 – O Assassinato de Mary Kelly
Destacar um único assassinato no meio de de uma história de serial killer (o mais famoso de todos) é difícil, mas essa morte é envolvida em mais questões e provoca mais reações emocionais do que as outras. Primeiro porque é um capítulo inteiro com praticamente apenas a morte de Mary Jane Kelly nos mínimos detalhes; cada corte, cada respingo de sangue. Por várias páginas consecutivas. Até pra quem tem estômago forte, é um capítulo pesado de se ler. Ambos, autor e ilustrador, souberam muito bem como reproduzir a cena de forma a nos hipnotizar, continuar a leitura apesar da violência extrema.
É nesse capítulo também que o nosso personagem from hell tem a sua viagem dentro da quarta dimensão (da qual vamos falar mais à frente) e tem um vislumbre do futuro. Tudo enquanto fatiava sua pobre vítima…
2 – Psicogeografia Londrina
O quarto capítulo da HQ é uma sequência de explodir a cabeça em que Sir William Gull, médico da rainha, passeia por vários monumentos de Londres, expondo uma conspiração secular envolvendo um intento mágico escuso onde, através de símbolos espalhados por diversas construções ao longo dos séculos, caminhos de energia sutil são subvertidos e o matriarcado é submetido ao patriarcado, numa espécie de conspiração onde se deu a ruptura e a troca de poder de um grupo dominante para outro. Uma aula de psicogeografia da cidade que ao final do tour capítulo deixa o leitor absolutamente convencido de que é tudo verdade! Chega a ser desorientador o fluxo de informações que Moore desfia ao longo deste capítulo!
1 – O Parteiro do Século XX
O insight que Moore joga na nossa fuça a respeito da metodologia da violência de Jack ser, simbolicamente, o que culminou no ‘nascimento’ do século XX como o conhecemos, é a viagem máxima da HQ! O tom de mistério e misticismo que encharcam Do Inferno sugerem que os atos de Jack foram cruciais para o rumo que a contemporaneidade tomou, como se os assassinatos fossem o que ditou o tom do futuro a partir dali: 1º e 2º Guerra Mundiais, conflitos em grande e pequena escala, surtos coletivos, colapso ambiental, atrocidades sem sentido, a revolução industrial “evoluindo” para a forma atual de capEtalismo predatório e muitos, mas muitos assassinos em série. O misterioso Jack talhou um corte na realidade com seu bisturi e parece que a sangria decorrente disso só tem aumentado…
Quarta Dimensão
Conceitos fora do convencional como ocultismo e quarta dimensão não parecem próximos, mas novamente o autor casou ambos de forma impecável, não os misturando de qualquer jeito, mas deixando-os reais ao mesmo tempo no universo bidimensional dessas páginas de papel. A quarta dimensão aqui mostrada parece ter servido como fonte de inspiração para autores de outras obras posteriores, como é o caso de Mike Flanagan com suas séries de fantasma A maldição da residência Hill e A maldição da Mansão Bly, onde o autor usa e abusa do recurso de colocar suas assombrações indo e vindo no tempo, após se livrarem de suas algemas de carne e osso, ganhando assim mais suspense e possibilidades para suas séries.
E nos quadrinhos? Isso deu certo, ou Moore conseguiu apenas introduzir um conceito bacana no meio da sua história que até soma com sua trama, mas que infelizmente não causa suspense? Logicamente isso é uma questão mais pessoal e talvez nem todos tenham a mesma impressão nós aqui, que esse recurso de colocar os personagens em bumerangues temporais conseguiu causar extrema aflição e suspense. Cada nova página se fazia ser consumida com uma avidez e curiosidade macabras. E mesmo com seu ritmo de leitura um pouco mais lento, a história consegue prender por muito tempo. Metade do tempo gasto em leitura e o restante em absorção do que havia acabado de ler e, é claro, lendo os apêndices e em pesquisas na internet para saber o quanto desse conteúdo louco é real.
A Saideira Do Inferno…
Na antologia A Vida Secreta de Londres, também publicada pela Veneta, Moore entrega uma história de, digamos assim, bastidores de Do Inferno. A curta HQ autobiográfica Eu Continuo Voltando, com arte de Oscar Zarate (Um Pequeno Assassinato) recorda uma sequência de acontecimentos corriqueiros, mais especificamente o dia em que ele participou das filmagens de um documentário da BBC a respeito dos crimes em Whitechapel, e o happy hour subsequente, onde ele se embrenha em um inferninho e vê uma stripper performar seu show sensual. Embriagado mais pela atmosfera do local e pelo peso histórico do lugar do que pelos pints de cerveja consumidos, acompanhamos essa jornada subjetiva de Moore onde, ao que parece, o autor foi influenciado pela psicogeografia, fazendo uma intensa leitura tantos das pessoas quanto do local.
Vocês podem até não gostar do tema, afinal, acompanhar a trajetória de um misterioso serial killer que agiu há mais de um século atrás não é um tópico que desperta interesse unânime, mas não dá pra negar que como um dos trabalhos fundamentais da nona arte, Do Inferno é S U B L I M E. Uma investigação histórica desatrelada do compromisso de ser 100% fidedigna, dando espaço para a imaginação brincar nas lacunas, nos mistérios que nunca vieram à tona envolvendo o caso. Moore matou a charada? Provavelmente não. Mas experimentem ler Do Inferno e me digam se não é extremamente satisfatório mesmo assim…
Por João Garaza (@joaogaraza) e Eduardo Cruz (@eduardo_cruz_80)