“Ninguém está verdadeiramente isento de tendências políticas. A opinião de que arte não deveria ter a ver com política é em si mesma uma atitude política.” Disse George Orwell no ensaio “Por que escrevo?”
Essa introdução serviria perfeitamente para discordar de movimentos como o barulhento “quadrinhos sem política” que apareceu a partir de grupos que defendem a remoção de temas políticos das histórias em quadrinhos. Porém a temática desse vídeo não é reafirmar esse óbvio, mas outro. O nome do ensaio de Orwell talvez resuma bem o vídeo “por que escrevo?”, qual o motivo de continuar reafirmando aspectos já escritos por alguns pensadores, e até mesmo axiomas, como por exemplo a inerência da política na vida humana em todos os seus ângulos.
Aqui na Zona e em outros sites, diversos textos são escritos comparando ideias apresentadas em gibis de super-heróis com conceitos filosóficos, políticos e religiosos por exemplo. Mas, de onde nasce esse ímpeto de tentar destrinchar cenas, histórias ficcionais e personagens com o estudo de pensadores no campo político, filosófico e religioso? Para alguns pode parecer uma curiosa descoberta na verdade, pois o que parece muitas vezes um escapismo inocente está completamente associado a temáticas do cotidiano e temáticas mais universais da política e outros assuntos que tangem a existência humana.
Mas esse ímpeto nasce por conta da necessidade de significar os símbolos e os movimentos do nosso tempo, para o nosso tempo, contexto e sociedade. Mesmo que autores já tenham dito o mesmo argumento sobre questões como o autoritarismo e linguagem, nosso tempo exige uma interpretação e demonstração para a sociedade pela via dos nossos símbolos. E justamente por precisarmos de nossos símbolos é que as narrativas fantasiosas se provam tão eficazes.
Neil Gaiman diz que o segredo do ofício de escrever ficção é fazer com que ela diga mais do que diz literalmente, ou seja, o segredo é falar algo interessante sobre o mundo, as pessoas ou que quer que seja por meio da ficção, no fim aqueles personagens são como bonecos e alegorias para tocar no seu íntimo de pensamento de alguma forma.
Miracleman, escrito por Alan Moore, autor que inclusive já disse “me movo pela ficção e não pela mentira”. não resistiu ao teste do tempo unicamente pela violência exacerbada e as cenas mais “realistas” que o autor colocou em uma história de super-heróis. Esse quadrinho sobrevive, pois levanta discussões e pensamentos que verdadeiramente podem abalar a realidade do leitor e apresentam discussões completamente contemporâneas como a “dominação mental” pela via que for. A descoberta de um mundo mais complexo, de uma realidade teoricamente simulada é parte do que gera grande identificação com os leitores.
E precisamos continuar escrevendo justamente para interpretar o nosso tempo, seja através da ficção ou de textos que se dedicam a uma leitura explícita do que aquela ficção pode significar. E precisamos continuar falando de nossa contemporaneidade e nada melhor que nossos símbolos. Talvez por isso uma miscelânea entre textos acadêmicos e teóricos precisam estar em conjunta análise com cultura pop em geral.
Os filósofos gregos, por exemplo, utilizavam seus deuses para explanar questões que tangiam a filosofia e política, enquanto no debate coletivo dentro da sociedade contemporânea estes já não são mais símbolos tão em evidência.
Ao invés de falar de Hermes como essa comunicação entre humano e divino, Hermes como esse deus da linguagem, deus da ligação das ideias com a manifestação material, podemos falar do Flash.
O personagem que possui muitas características em comum com o Deus Grego, inclusive parecendo ser uma espécie de reencarnação da mesma ideia, pois o Flash é quem liga os mundos e universos da DC Comics.
E nessa brincadeira de ser um “deus” que brinca nesse meandro de linguagem e consciência, poderia ser muito interessante observar algum autor abordar nesse momento a questão das fake news com esse personagem. Poderíamos imaginar por exemplo, uma história em que o Flash perde a capacidade de identificar o mundo “real”, as realidades paralelas e terras se tornam cada vez mais particulares e começam a se tornar difusas quanto ao mundo do qual o Flash nasceu. Tudo isso por uma dificuldade do personagem em conseguir interpretar o que é fato e o que é realidade paralela advinda de algum vilão.
Ou seja, as terras paralelas seriam uma alegoria para as narrativas , ou mundos criados por políticos que, por exemplo, negam pandemias. Essa pessoa com sua comunicação (no lugar que o Hermes ou Flash atuam), cria uma realidade para seus seguidores que não corresponde com o mundo real, é uma terra paralela onde tudo é possível, inclusive a extinção da gravidade e outras aberrações que surgem a partir de crenças que são induzidas através da comunicação.
E esse possível comentário na história do Flash não seria uma história “nova” para falar sobre a linguagem e a criação de “realidades paralelas”. 1984 e várias outras obras já estenderam-se em milhares de páginas para tratar sobre o tema, mas não fizeram isso com o síimbolo do Flash, que para uma geração que está assistindo esse personagem em séries de TV e filmes, é absolutamente interessante.
Portanto, é por isso que precisamos continuar escrevendo e produzindo, nosso tempo exige que nossos símbolos nos contem o que é política, sociedade e o que almejamos como humanidade de forma individual e coletiva. Não dá pra parar de escrever, não da pra parar de significar e discutir. Principalmente em um mundo onde uma espécie de realidade coletiva perdeu o valor e nem a morte diária de pessoas na casa dos quatro dígitos é capaz de despertar parte da sociedade para a fantasia em que está imersa.
Os valores humanos que já foram discutidos por milhares de pessoas e grandes mentes ao redor da história precisam o tempo todo continuar acesos, para que consigamos pensar o que nos acontece agora e não tenhamos apenas a análise histórica da desgraça. Portanto, espero que todos escrevam e escrevam pra que a informação e a vida nesse momento possam continuar e ser despertada por nossos símbolos e nossos pensadores.
Personagens não significam necessariamente ideias novas, mas são as ideias do seu tempo, embaladas por guerras, transformações econômicas e revoluções que aconteceram na história humana e culminaram nesse momento, momento que é nosso e cabe a nós interpretar e discutir.
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