E é com muito prazer que anuncio que queimei a minha língua! A Panini concluiu a publicação de Providence, e só seis meses depois do lançamento da edição anterior! O Watchmen dos Mythos de Cthulhu foi finalmente publicado na íntegra no Brasil, e para fecharmos esse ciclo temos aqui a terceira e última parte destrinchando as referências da obra de H. P. Lovecraft ao longo das páginas destas últimas 4 edições contidas nesse terceiro encadernado. Meu TOC me obriga a terminar a trilogia (os volumes anteriores estão nesse post AQUI e AQUI heheheheh). Além disso, não iria deixar vocês na mão, não depois de percorrermos juntos tanto dessa jornada por cima dos ombros de Robert Black…
Mas Providence não vive só de piscadelas para o leitor de Lovecraft: Fora as referências, centenas de detalhes que Moore acrescentou para os fãs cata-piolho de Lovecraft irem ao delírio ao longo das doze edições, a história em si é fantástica! Para quem escreveu Neonomicon só pra saldar uma dívida com o Leão, Moore conseguiu remendar muito bem aquela história mais rasa e apelativa, amarrando-a a algo muito mais grandioso e criando toda a profundidade necessária no épico (já pode chamar assim, né não?) Providence! Todas as referências utilizadas, para além de um exercício de virtuose, realmente formam uma macabra colcha de retalhos que mostra que Moore ainda sabe das coisas. E o final??? Não é (foi/será) nada menos que apoteoticamente apocalíptico! (ou apocalipticamente apoteótico? 🤔), deixando a criatura mais famosa do Lovecas como a cereja do bolo, com um lugar de destaque e peça central de toda a história! Vocês sabem a quem me refiro, afinal, foi só eu ou vocês também sentiram falta de tentáculos nos volumes anteriores? No saldo final, em minha opinião, Providence salvou bonito os fracos prelúdios O Pátio e Neonomicon, encerrando fabulosamente uma história tão grandiosa quanto as entidades homenageadas nela. Depois de tantas HQs que geraram expectativas altas e que não cumpriram essas expectativas ultimamente, estou até desacostumado à sensação de ler uma história que as cumpre e supera! Sim, foi uma longa viagem, mas foi bem legal trilhar até o final…
Outra observação/retratação que tenho a fazer é sobre os anexos ao final de cada edição que eu critiquei com tanto empenho nos dois posts anteriores. Parece que ou Moore só acertou a mão neles nessa reta final, ou era eu quem estava lendo eles errado (o que é mais provável ☺️). O diário de Robert Black, que a princípio taxei como meras repetições em prosa do que era visto desenhado na HQ pode ser interpretado como uma perspectiva diferente do mesmo acontecimento retratado na páginas da HQ. O diário oferece um novo ângulo dos acontecimentos, uma visão bem mais subjetiva dos acontecimentos, a perspectiva pura de Black em espiral ao inferno. Além disso, algumas pistas e referências não contidas na história que lemos na HQ podem estar estão ocultas ali. Viram só? As pessoas podem aprender e evoluir. Ah, mas vocês já tinham interpretado desse jeito? Parabéns, vocês são mais inteligentes que eu (mas nunca duvidei disso rs)!
Então depois de pedir desculpas pelo vacilo, chega de arrodeios! Tracem o círculo de proteção, desenhem o Elder Sign, acendam o incenso e vambora! Ah, e AQUI tem um link com os contos originais, a referência suprema para se apreciar Providence da melhor forma possível, mas não a única forma de se fazer isso…
PROVIDENCE #9
Seguindo a pista fornecida por Randall Carver, já na cidade de Providence, Black encontra Henry Annesley, um personagem análogo a Crawford Tillinghast, protagonista do conto Do Além.
Este conto é a história de um cientista que cria um dispositivo eletrônico responsável por emitir uma onda de ressonância que estimula a glândula pineal, o que permite a percepção de planos de existência fora do espectro visível. Hordas de criaturas pavorosas tornam-se visíveis, e é claro que isso dá merda. O conto originalmente foi publicado em junho de 1934 na revista The Fantasy Fan. Do Além também conta com uma ótima adaptação cinematográfica do diretor Stuart Gordon, diretor do também excelente Re-Animator (1985), Dagon (2001) e Sonhos na Casa da Bruxa (2005), todos adaptações de histórias de Lovecraft.
Aqui temos uma bela representação do ponto de ruptura da obra de Lovecraft: Suas primeiras histórias tinham uma tônica mais voltada para o oculto e a Fantasia, mas à medida que o tempo passou, a Ficção Científica passou a ter maior foco em suas histórias, o que fica evidente nas diferenças entre A Busca Onírica por Kadath e Nas Montanhas da Loucura, por exemplo. Moore usou Annesley para marcar essa transição na bibliografia de Lovecraft neste nível alegórico. Isso se torna perceptível quando Black o questiona sobre o porquê de um membro de uma ordem mística possuir tantos instrumentos eletrônicos.
Em seguida, ainda na oficina de Annesley, Black é apresentado a Howard Charles, um jovem que está em busca de histórias de seus antepassados, sendo o mais notório deles Japhet Colwen, um dos membros fundadores da Stella Sapiente. E sim, quem achou esse nome familiar ganhou um beijo do Brown Jenkin! Esse é o análogo de Joseph Curwen, de O Caso de Charles Dexter Ward, escrito em 1927 e publicado em 1941, após a morte de Lovecraft. Nessa história, o personagem título (também) empreende uma pesquisa acerca da história de seu tataravô, Joseph Curwen, que era conhecido por relatos de suas experiências alquímicas e por não envelhecer. Ward, que é fisicamente semelhante a Curwen, tenta repetir os experimentos do avô e…. bem, é uma história de Lovecraft. Calcule o que acontece. Ou melhor, leia!
Algumas páginas depois, vemos Black e Howard investigando uma igreja católica, a Igreja de São João, aparentemente abandonada, porém cheia de livros e instrumentos de magia ritualística em seu interior. Além desses objetos, descobrimos o que foi subtraído do tal meteoro citado no encadernado anterior, lembram??? A Igreja e a estranha rocha meteórica são menção ao conto O Assombro das Trevas. Esse conto, escrito em 1935 e publicado em 1936 na revista Weird Tales mostra as desventuras de Robert Blake (em homenagem ao escritor Robert Block, amigo de Lovecraft. Blake, Black, Block…. confusos já?), um jovem escritor com interesse no oculto, fascinado com uma igreja abandonada, a qual ele descobre ter uma história envolvendo um culto conhecido como A Igreja da Sabedoria das Estrelas, e uma entidade que assombra o local e assusta a a população do entorno. Logicamente Blake acha mais do que devia e as consequências são trágicas. Em Providence Moore faz a ponte entre A Cor que Caiu do Espaço e O Assombro das Trevas, transformando o meteoro do primeiro conto na rocha que aparece no segundo, consolidando ainda mais a mitologia dentro da HQ.
PROVIDENCE #10
Logo na primeira página temos uma aparição da mãe de Johnny Carcosa junto de outras mulheres, no que parece ser uma cerimônia de membros da Stella Sapiente nas escadas da Igreja de São João, com o intuito de saudar o aguardado encontro do Arauto (Robert Black) com o Redentor (H. P. Lovecraft).
Mais à frente, uma aparição do jovem Howard Charles, já completamente modificado (E aí, leu O Caso de Charles Dexter Ward? Então já sabe o que aconteceu com o rapaz…).
Sem mais referências literárias nesta edição. Basicamente, é apenas Black conversando com Lovecraft. Aqui Moore parece conduzir uma espécie de entrevista fictícia, transformando a figura histórica Lovecraft em um personagem que fala um pouco de tudo: Sua infância e juventude, seu pai, seu avô, suas influências literárias… Para não dizer que eu não recomendei nenhum livro ou texto nesse décimo capítulo, vale muito a pena dar um confere na biografia A Vida de H. P. Lovecraft, da Editora Hedra. O livro é de autoria de S. T. Joshi, um dos maiores especialistas em Lovecraft da atualidade. E não se esqueçam desse cara, porque mais tarde reencontraremos o senhor Joshi, lá na edição final…
Além disso, vemos o Retorno de Johnny Carcosa, o misterioso personagem da mini série O Pátio, onde toda essa bagaça começou, e descobrimos o que ele realmente é e a recompensa que ele dá a Black por ter (inadvertidamente) desempenhado o papel de Arauto…
PROVIDENCE #11
Preparem-se. A partir daqui o ritmo muda, intensificando a passagem do tempo na história, com o apocalipse ocorrendo em dois níveis: O apocalipse pessoal de Black, alquebrado por suas descobertas, e o que vai aos poucos se abatendo pelo mundo, com a influência dos Grandes Antigos se estendendo ao longo das décadas, avançando até o ponto onde Neonomicon parou. Tudo isso ao som de “You Made Me Love You,” de Al Jolson. Som na caixa , DJ!
Após Black retornar à Nova York, cada vez mais catatônico com o peso das revelações que Johnny Carcosa – que agora descobrimos ser o avatar de Nyarlathotep – lhe despejou sem piedade de uma vez só, ele opta por dar um rumo extremo à sua vida: despacha seu diário para Tom Malone (O Horror em Red Hook) e vai a uma das câmaras de suicídio Jardins de Fuga disponíveis pela cidade (Aliás, isso é uma referência ao Rei de Amarelo, de Chambers). Paralelamente ao suicídio assistido do Arauto, o envio de seu diário a outras mãos (Alôu Watchmen!!!) dá início a uma frenética cadeia de eventos que mistura ficção e História real e que culmina nas conclusões de todas as histórias que Block testemunhou…
Quadro 1: Tom Malone recebendo o diário de Robert Black, com tudo se encaminhando para o final de O Horror em Red Hook.
Quadro 2: Uma referência histórica à morte de Sarah Susan Phillips Lovecraft, que faleceu em 24 de maio de 1921. Lovecraft é notificado e consolado possivelmente por uma de suas tias.
Quadro 3: A cabeça pertence ao Dr. Hector North, falando com seu companheiro James Montague. Parece ser a cena final do conto Herbert West: Re-Animador em seus momentos finais, mas com algumas diferenças em relação ao conto original.
Quadro 4: Tom Malone apertando o cerco em cima de Robert Suydam. O Horror em Red Hook se aproxima de sua conclusão…
Quadro 1: Clark Ashton Smith, um dos escritores da rede de chégas do Lovecraft. Também poeta e escultor, Smith é um dos autores que ajudou a compor os Mythos de Cthulhu após a morte de Lovecraft. O recordatório faz menção à primeira correspondência que os dois trocaram, por volta de 1922, o que evidencia a passagem do tempo ao longo da edição.
Quadro 3: Aqui vemos à esquerda Farnsworth Wright, leitor das obras submetidas para publicação da revista Weird Tales (lembra do tanto que falamos dessa revista nos outros posts?), e à direita Edwin Baird, primeiro editor da revista. A cena claramente demonstra um diálogo entre os dois à respeito da submissão de material do Lovecraft para publicação, Mais especificamente o conto Dagon.
Quadro 4: Enquanto isso, em Red Hook, Malone continua no encalço de Suydam e companhia…
Quadro 1: Sonia Haft Greene, primeira esposa de Lovecraft. A cena retrata o dia do casamento, em 3 de março de 1924.
Quadro 2: De volta a O Horror em Red Hook, Robert Suydam e Cornelia Gerritsen encontram seu fim.
Quadro 3: Sonia Greene teve que residir um tempo em Cleveland, a trabalho, e Lovecraft permaneceu morando sozinho em Nova York. O pequeno apartamento no número 169 da Clinton street é a área onde muitos eventos de O Pátio e Neonomicon ocorreram.
Quadro 4: Aqui temos Tom Malone no subterrâneo da igreja em Red Hook, sorrateiramente observando Lilith embalar o cadáver de Robert Suydam (ou estaria dançando “You Made Me Love You“? hahhahahahah). O Horror em Red Hook se aproxima de sua conclusão…
Quadro 1: Menção direta ao início de O Horror em Red Hook: O conto começa com Malone em frangalhos, se recuperando do choque de tudo que viu no subterrâneo. O outro policial, ao mencionar o FBI, nos remete ao final do conto A Sombra de Innsmouth e aos eventos finais da mini série O Pátio, onde ocorreram batidas do FBI em cenários Lovecraftianos.
Quadro 2: Esse quadro retrata o final do conto Ar Frio. Quem lembra do Dr. Muñoz no primeiro encadernado? Tão simpático e contemplativo, com suas reflexões sobre o amor… Pois é, game over pra ele… O conto data de 1926.
Quadro 3: Lovecraft retornando à Providence após o fim de seu casamento, por volta de 1926.
Quadro 1: August Derleth, mais um dos chégas da rede de escritores amigos de Lovecraft. Diga-se de passagem, o mais proeminente de todos, que cunhou o termo ‘Mythos de Cthulhu’. Após a morte de Lovecraft, Derleth e Donald Wandrei fundaram a editora Arkham House para prestar tributo ao amigo, publicando postumamente suas obras e correspondências, dando assim início à sua lenda.
Quadro 2: A cena final do conto O Modelo de Pickman.
Quadro 3: Esse parece ser um flashback da infância de Randall Carver, no que parece uma menção ao conto A Chave de Prata, publicado em 1926.
Quadro 4: Howard e Donald Wandrei, irmãos e correspondentes de Lovecraft, parte do círculo de leitores da revista Weird Tales.
Quadro 1: Momentos finais de O Caso de Charles Dexter Ward, ambientado por volta de 1928.
Quadro 2: Na esquerda, o agente especial Clyde Tolson, que conversou com Black no encadernado anterior a respeito do meteoro na fazenda, lembram? À direita, J. Edgar Hoover, diretor do FBI por 48 anos (!!!).
Quadro 3: A morte de Willard Wheatley. Quem conhece O Horror de Dunwich sabe que a aberração se deu mal quando tentou roubar um exemplar do Necronomicon da biblioteca da Universidade Miskatonic. Acabou estraçalhado pelos cães do vigia. Fim. Ou quase, ainda falta seu irmãozinho…
Quadro 4: Uma batida do FBI na comunidade de Salem, que Black visitou no primeiro encadernado. O povo-híbrido-cara-de-peixe entrou na chibata. Os eventos ocorreram por volta de 1927-1928, de acordo com a cronologia do conto A Sombra de Innsmouth, conto no qual a cena é inspirada. Mais uma história encerrada.
Quadro 2: Cena final de O Horror de Dunwich. Notem que o perfil da criatura John Divine é a idêntico ao avô Garland Wheatley, o que não é nenhuma surpresa depois da cena de flashback de incesto mostrada na edição em que Black visita a fazenda Wheatley.
Quadro 3: Robert E. Howard, criador de Conan, o Bárbaro e do livro fictício maldito Unaussprechlichen Kulten. Howard é mais um dos autores que fazia parte da rede de correspondências de Lovecraft e também contribuiu com os Mythos de Cthulhu. Era conhecido por sua obsessão com condicionamento físico, por isso as flexões no chão.
Quadro 4: Robert Hayward Barlow, um jovem colecionador e correspondente de Lovecraft. Lovecraft começou a se corresponder com Barlow quando este ainda tinha 13 anos. É ruim de eu deixar um filho(a) meu ler Lovecraft com 13 anos kkkkkkkkk…
Quadro 1: Os restos de Brown Jenkin, encerrando Os Sonhos na Casa da Bruxa. Aqui, a julgar pela data do conto, já é 1931.
Quadro 2: Cena final de A Coisa na Soleira da Porta, a história de Etienne Roulet/Elspeth Wade chegando ao fim. O conto foi escrito em 1933.
Quadro 3: Lovecraft e uma de suas tias, com quem morou até o fim de sua vida.
Quadro 4: Após sua mãe sucumbir a uma doença terminal, Robert E. Howard foi até seu carro e se matou com um tiro na cabeça. A data era 11 de junho de 1936.
Quadro 1: À esquerda vemos Robert Hayward Barlow, que por volta de julho/agosto de 1936 visitou Lovecraft em Providence, e foi nomeado pelo mesmo como seu executor literário após sua morte.
Quadro 2: Em 15 de março de 1937, às 7:15 da manhã, H. P. Lovecraft morre de câncer estomacal no quarto 232 do Jane Brown Memorial Hospital.
Quadro 4: À esquerda, ao fundo, possivelmente Annie Gamwell, tia de Lovecraft e herdeira de seu patrimônio. No meio, August Derleth e à direita, de chapéu, Donald Wandrei. Derleth e Wandrei tinham planos de publicar as obras de Lovecraft e conseguiram a posse dos direitos de publicação por meio de uma combinação de acordos com Annie Gamwell e um pouco de intimidação, ignorando R. H. Barlow. Apesar das boas intenções em querer difundir a literatura de Lovecraft e assim ter seu legado preservado, a atitude de Derleth consolidou sua fama entre os estudiosos de Lovecraft como a de alguém truculento e agressivo.
Quadro 1: Construção dos primeiros domos protetores de cidades, vistos em O Pátio e Neonomicon.
Quadro 2: Wandrei (à esquerda) e Derleth (à direita) com uma caixa de The Outsider and Others (1939), a primeira coletânea de histórias de Lovecraft em um volume de capa dura, tiragem da editora Arkham House, fundada pelos dois.
Quadro 3: À esquerda, vemos Rheinhart Kleiner e à direita, Frank Belknap Long, dois amigos e correspondentes de Lovecraft. De Vermis Mysteriis, atribuído ao fictício Ludvig Prinn, assim como o Unaussprechlichen Kulten de Robert E. Howard e o próprio Necronomicon de Lovecraft, é mais um livro maldito imaginário, concebido por Robert Bloch. ‘O Velho Cavalheiro’ era um dos apelidos de Lovecraft. Ao fundo podemos ver mais domos em construção.
Quadro 4: Em 11 de janeiro de 1951, R. H. Barlow morre de overdose na Cidade do México. Ele tinha medo de ser exposto como homossexual e acabou exagerando na dose. À direita vemos William Burroughs, na época residente no México. Ele tomou conhecimento da obra de Lovecraft por intermédio de Barlow. o ‘Caro Allen‘ do recordatório é uma menção a uma correspondência de Burroughs com Allen Ginsberg, informando a morte de Barlow (Extraído de The Letters of William S. Burroughs: Volume I 77-78). Burroughs utilizaria alguns elementos dos Mythos de Cthulhu em sua produção ficional.
Quadro 1: Aqui, três hippies maconheiros viajam na maionese e começam a dar força à lenda, tomando-a por realidade. O livro na mão de um deles é Necronomicon: A Study, publicado em 1967 pela Mirage Press.
Quadro 2: O texto nos dois primeiros recordatórios vem do livro que o homem segura, O Renascer da Magia, de Kenneth Grant. Grant estabelece uma correspondência mostrando paralelos entre o sistema mágicko de Aleister Crowley e a ficção de Lovecraft. Mais viagem na maionese, puxando coisas que nunca deveriam existir para nossa realidade, reforçando a própria realidade delas cada vez mais? Aqui eu comecei a acreditar que sim…
Quadro 3: À esquerda vemos George Scithers, fundador da editora Owlswick Press, e à direita, Lyon Sprague de Camp, um arqueologista que viria também a se tornar escritor de Ficção Científica, Fantasia e Não-Ficção.
Em 1973, a Owlswick Press publicou o Al Azif, uma versão do Necronomicon com introdução de L. Sprague de Camp. Os ‘neuróticos incuráveis’ a que de Camp se refere são Robert E. Howard e o próprio Lovecraft. De Camp foi o primeiro autor a escrever biografias sobre os dois autores, e além de se concentrar em apontar as falhas de suas obras, tendenciosamente os rotulou como neuróticos, o que é incorreto afirmar. Ambos tinham sua parcela de tormentos, mas a visão simplista de de Camp não dava conta de defini-los corretamente. Ao longo dos anos, outros pesquisadores fariam a revisão correta dos biografados, entre eles se destacando S. T. Joshi, o qual, repito, vamos reencontrar na última edição desse encadernado.Notem que a artimanha de ambos em publicar o Necronomicon como um livro real é mais um passo no processo de mesclagem do legado Lovecraftiano com a realidade…
Quadro 4: À esquerda temos Jorge Luis Borges, que dispensa apresentações. O influente escritor argentino era um fã ardoroso de Lovecraft. A mulher é Maria Kodama, sua assistente pessoal. Nesta época Borges já estava completamente cego e ditava seus trabalhos a Kodama. Aliás, diz a lenda que Borges ficou cego de tanto ler o Necronomicon…
O texto no recordatório é do conto There Are More Things, extraído de O Livro de Areia, de 1975. O conto é, como dá pra notar, uma homenagem à memória de Lovecraft. Dá pra ler ele completo AQUI.
Quadro 2: Essa cena se passa na loja The Magickal Childe (previamente conhecida como The Warlock Shoppe), no Brooklyn, NY, e mostra Herman Slater (à esquerda), dono da loja discutindo detalhes sobre a confecção do Schlangekraft Necronomicon, mais uma versão falsificada. O livro em questão teve como base um antigo texto mágico sumério com nomes trocados e muitas das medidas de proteção removidas ou alteradas. À direita vemos Peter Lavenda, que executou a ‘obra’. Lavenda utilizou o pseudônimo ‘Simon’, o que faz com que essa versão mequetrefe seja conhecida com o Simon Necronomicon, ou, mais debochadamente, Simonomicon.
O Neonomicon de Culp foi uma versão do Necronomicon produzida no formato fanzine pela Ordem Esotérica de Dagon em 1976.
Quadro 3: À esquerda novamente Herman Slater, e à direita, mais uma vez William Burroughs em uma visita à loja na ocasião da publicação do Schlangekraft Necronomicon. Elementos do Schlangekraft Necronomicon aparecem no livro de Burroughs Cidades da Noite Vermelha, de 1981, inclusive citações a ‘Ktulu’.
Quadro 4: Ainda na década de 80, dois policiais ou agentes do FBI investigando a cada vez mais crescente onda de assassinatos com supostas ligações com o Necronomicon. O mito começa a ficar cada vez mais forte. A escalada continua.
Quadro 1: O homem à direita parece ser um Leonard Beeks mais jovem, o proprietário da loja Sussurros na Escuridão, que deu as caras em Neonomicon, lembram?
Quadro 2: William Burroughs morre em 2 de agosto de 1997. O homem à direita parece ser James Grauerholz, executor literário de Burroughs. O livro aberto sobre o peito de Burroughs é The Starry Wisdom: A Tribute to H. P. Lovecraft, de 1994, que continha ‘Wind Die. You Die. We Die.’, de autoria de Burroughs e a versão original em prosa de O Pátio, de Alan Moore! E essa foi a participação do Bruxão de Northampton dentro de Providence! O livro também conta com um texto de Grant Morrison, mas deixa quieto…
Quadro 3: Um assassinato real ocorrido em Santa Monica, Califórnia, em 1998. A jovem Shevawn Georghegan, de 14 anos, foi estrangulada por Glen Mason e cúmplices em uma casa abandonada habitada por andarilhos e sem-teto. Mais detalhes AQUI.
Quadro 1: Parafernálias reais de Cthulhu. O culto às entidades inomináveis vai aumentando de proporção… A fé alimenta os deuses…
Quadro 2: Eventos ocorridos antes da mini-série O Pátio, portanto, por volta de 2004. Vemos o diretor do FBI Carl Perlman, superior de Aldo Sax na mini-série, e também de Merryl Brears em Neonomicon. Os casos que Gloria menciona são baseados em O Horror em Red Hook e A Sombra de Innsmouth e o livro que ela segura é o diário de Robert Black
Quadro 3: Aldo Sax, protagonista de O Pátio, indo de encontro a seu destino.
Quadro 4: Em uma cena passada após os eventos de O Pátio e antes de Neonomicon, vemos o agente especial Aldo Sax despirocando de vez, falando o idioma Aklo e mutilando seu próprio chefe de volta ao escritório do FBI.
Quadro 1: Sentado na cama está Carl Perlman, que podemos identificar pela prótese de mão. A agente especial Merryl Brears reprisa aqui uma cena que já vimos em Neonomicon, só pra encaixar o quebra-cabeça…
Quadros 3 e 4: Eventos ocorridos após Neonomicon. Brears ajuda Aldo e outros assassinos a fugirem da instituição psiquiátrica. Mas não sem levarem umas mãozinhas antes…
Quadro 1: A igreja em questão é a mesma de O Horror em Red Hook, e que posteriormente se tornaria o Clube Zothique em O Pátio e Neonomicon. A ‘forma de plasma ou relâmpago esférico‘ é a manifestação cabalística de Árvore da Vida assumida pela entidade Lovecraftiana Yog-Sothoth, como vimos no primeiro encadernado de Providence, no já referido flashback de incesto dos Wheatley.
Quadro 3: Os cultistas hipsters de Cthulhu, cada vez mais histéricos, achando tudo um grande oba-oba… coitados…
Quadro 1: A música acaba. O disco é retirado. O passeio acabou, chegamos ao momento presente, que se encaminha para o final.
Quadro 1: As criaturas são conhecidas como Gárgulas Noturnos e foram introduzidas em A Busca Onírica por Kadath e no poema Fungos de Yuggoth.
UFA!!! Chegou a dar tontura. Respirem. Voltem para o começo. Leiam de novo. Repitam a operação até pegarem tudo heheheheh…
PROVIDENCE #12
Tudo é Yuggoth.
Tudo sempre foi Yuggoth.
Tudo sempre será Yuggoth.
Tudo está perdido.
Chegamos na reta final, e aproveito meu último fôlego pra destrinchar a última edição. Carl Perlman, a agente Barstow e o Agente Fuller vão em busca de Brears e Sax, mas o mundo já está se modificando… Essa última edição é mais auto explicativa que a anterior, e restam pouco mistérios a serem decifrados. Vamos a eles?
Quadro 1: Referência a Os Gatos de Ulthar, conto escrito por Lovecraft em 1920.
Quadro 3: Referência ao conto O Festival, de 1925, publicado na revista Weird Tales.
Quadro 3: Quem toca o violão (sem cordas, mas isso é o elemento menos estranho da cena toda, vocês hão de convir) é Stephen, uma das pessoas que Sax estava investigando pelos assassinatos bizarros em O Pátio. Ainda usando o uniforme laranja do instituto psiquiátrico, o que evidencia que ele fugiu com Sax e Brears.
Quadro 2: David Lynch, famoso diretor americano. Twin Peaks, Arkham, Dunwich, Gideon Falls… todas são o arquétipo da cidadezinha americana cheia de segredos bizarros.
Quadro 3: “Assim, de certa forma faz sentido as pessoas costumarem queimar tantos deles no passado.” faz referência a momentos históricos onde a queima de livros era um método para suprimir certas narrativas que se opunham àquelas no poder vigente.
Quadro 1: Da esquerda para a direita: Increase Orne, Etienne Roulet em posse de um corpo infantil e Shadrach Annesley.
Quadro 1: “Depois de nosso grande sucesso em 1919” se refere ao encontro de Robert Black, o Arauto, com H. P. Lovecraft, o Redentor.
Quadro 2: “Japhet, nós o perdemos em 1927 quando sua reintegração foi interrompida. Não pudemos nem recuperar os sais.” é uma referência ao análogo de Joseph Curwen em Providence, Japhet Colwen. Joseph Curwen é oriundo do conto O Caso de Charles Dexter Ward, de 1927.
“Aí, em 28, teve o negócio da São Anselmo com aquele semideus retardado dos Wheatleys.”. Wilford Wheatley e seu irmão, John Divine, mais uma vez, de O Horror de Dunwich.
Quadro 3: “Primeiro, a querida Hezekiah pereceu, e sua casa foi posta abaixo.” se refere a Hezekiah Mason, do conto Os Sonhos na Casa da Bruxa, de 1932.
“Pauvre Heki!” é “pobre Heki” em francês, o que comprova que sempre foi Ettienne Roulet a dar rolê por aí nos corpos dos outros (Eu sei, essa foi péssima! Me perdoem, estou exausto! 🤣), e Heki parece ser um apelido carinhoso diminutivo de Hezekiah.
“Logo depois disso, eu mesmo escapei por pouco” se refere aos eventos de A Coisa na Soleira da Porta, conto de 1933.
“E em 1937, quando o Redentor morreu, ele era quase um desconhecido.“. Fato. Lovecraft morreu na obscuridade e a popularidade alcançada foi toda póstuma.
Quadro 1: Da esquerda para a direita: Um Mi-go (também conhecido como Fungo de Yuggoth, oriundo da história Um Sussuro nas Trevas, de 1930) segurando o trapezoedro trazido pelo meteorito (aquele mix do conto A Cor que Caiu do Espaço com o conto O Assombro das Trevas que Moore amarrou na HQ, e que Johnny Carcosa revelou a Robert Black na décima edição ser uma abstração de Hastur, outro ente inominável dos Mythos), Aldo Sax, Merryl Brears, S. T. Joshi (o maior estudioso de Lovecraft da atualidade em pessoa), uma mulher servindo de hospedeira para um membro da Grande Raça de Yith (do conto A Sombra Vinda do Tempo, de 1936), e por fim, na outra ponta, mais um Fungo de Yuggoth, este segurando um cilindro com o cérebro preservado de Ambrose Bierce, mais um escritor com forte influência na weird fiction de Lovecraft e congêneres. Bierce era escritor, jornalista e foi o criador de Hali, Hastur e Carcosa.
Quadro 2: “Carl? Fuller? Onde estou?”. A agente Barlow sofre o mesmo destino de outras vítimas de Increase Orne, como demonstrado no conto O Terrível Ancião, de 1920: Sua força vital foi aprisionada em uma das garrafinhas de Orne. Já Shadrack Annesley, limpando sangue dos cantos da boca, dá a entender que matou e devorou o agente Fuller.
Quadro 1: Azatoth, o sultão demônio, o caos nuclear no centro do universo. Possivelmente uma das criaturas mais poderosas nesse panteão Lovecraftiano. E nesse quadro ele paira sobre a Terra. Isso não é nada bom…
Quadro 3: “P-por que aquela mulher está fazendo aquilo com o braço, como em Doutor Fantástico?“. Perlman se refere ao filme Doctor Strangelove: or How I Learned To Stop Worrying and Love the Bomb (1964), Aqui no Brasil intitulado Doutor Fantástico, do diretor Stanley Kubrick. A referência fica por conta dos estranhos espasmos que o personagem de Peter Sellers fazia com o braço.
Quadro 2: “MAS AZSIM COMO MARCUZZ AURELIUZZ É O MEU PAI, EU NÃO ZSOU ZSURDO AINDA.” é uma referência a Marcus Aurelius Bierce, o pai de Ambrose Bierce.
Quadro 1: “Vêem o quão fashilmente tudo desvaneshe? Como tudo she shubmete a uma ficshão maish forte?”. A fala de Johnny Carcosa aqui sugere que os Mythos são uma narrativa que está substituindo a narrativa de ‘mundo real’ que conhecemos. Um autêntico ato de invasão e conquista.
Quadro 5: “… Um p-polvo, um dragão e uma caricatura humana… mas era o contorno geral do conjunto que o tornava mais chocantemente aterrorizante…“. Joshi cita Lovecraft descrevendo sua criatura mais famosa… CLEITON!
Quadro 1: A fala de Carcosa sugere que Cthulhu deve ir para o Oceano Pacífico, naquelas coordenadas especificadas por Lovecraft como a localização de R’lyeh.
Quadro 4: “Acho que é Yuggoth agora.” se refere ao planeta ficcional dos Mi-Go, ou Fungos de Yuggoth, na ficção Lovecraftiana.
Quadro 2: “Acho que deveríamos aprender a viver entre maravilha e glória para sempre.“. As palavras de Brears fazem menção às últimas linhas do conto A Sombra de Innsmouth:
“Vou tramar a fuga de meu primo daquele asilo de Canton e juntos nós iremos para a encantada Innsmouth. Nós nadaremos para aquele recife que se estende sobre o mar e mergulharemos para os abismos negros da ciclópica Y’há-nthlei de muitas colunas. E, naquela morada dos Profundos, viveremos em meio a glórias e prodígios para todo sempre.“
Quadro 4: “…e, até onde se sabe, este é um universo predeterminado, sem livre-arbítrio.“. Olha o Moore brincando aí… Como isso é um roteiro, tecnicamente está correto! Tudo já está definido, já chegou definido às nossas mãos e não existe mudança de curso aqui. O fim é inevitável.
“Tudo é destino, tudo é providência.“. No sentido de providência divina, de conclusão predeterminada, que tanto pode se referir a Alan Moore como o roteirista autor desse mundo como também a Cthulhu como uma idéia que cria as condições para a sua própria existência ao longo de O Pátio, Neonomicon e Providence. It’s all part of the plan! Isso reforça a noção de que todos os atos e decisões que os personagens realizaram já aconteceram, congeladas em páginas que ainda não foram lidas. O leitor então é aquele que ‘roda’ a história lendo as páginas do início ao fim de tudo. Sabe quem mais tem uma teoria parecida? Grant Morrison. Tá bom, tá bom, sem treta! Não falo mais nada…
Quadros 1 a 4: Pearlman rasgando as proféticas palavras de Black e espalhando-as (Como… esporos??? hmmmm…). As palavras não são mais necessárias. A realidade mudou. Fim.
UFA!!!! Então no balanço geral, o que dá pra concluir? Que Providence é excelente SIM e Alan Moore continua sendo um grande roteirista, que costura e cruza referências de modo sobre-humano, mas à medida que a história vai chegando ao final, a coisa vai afunilando de uma forma que não tem outro jeito, é preciso conhecer o tema do qual Moore fala na HQ! Leu o final de Providence e não entendeu porra nenhuma? Tem que ler Lovecraft também, seus manés! Sem isso, é como querer que sua mãe ou avô achem graça em Rick & Morty sem conhecer patavinas de Ficção Científica e cultura pop. Além disso, em segundo plano, ainda mais evidente no final, Moore faz uma certeira crítica aos tempos atuais, onde existe uma guerra de narrativas em que pessoas se polarizam, escolhem lados e abraçam ideologias, e quando certa narrativa atinge uma maioria de pessoas, de fato a realidade é alterada, reescrita, o que faz ponte com as teorias do físico Erwin Schrödinger, um dos pais da mecânica quântica, que determina que o resultado de um evento é diretamente afetado pela vontade do observador. Ou, pra continuar no campo da cultura pop, com a história “Sonho de Mil Gatos“, do Sandman de Neil Gaiman, que tratava do mesmo tema. A realidade PODE ser transformada, se um número suficiente de pessoas for mobilizada para isso. O problema são as idéias que seduzem e motivam as massas, e a que transformação isso pode levar. Citando o final da HQ Multiverso, do Morrison: “Cuidado com o que você coloca dentro da sua cabeça.“. E assim citei Grant Morrison três vezes dentro de um post do Moore. Qual é o meu prêmio, produção???
Espero que essa série de textos tenha tornado a leitura de Providence mais rica e agradável, o mais próximo possível que o Bruxão Moore concebeu para ser fruída, e que eu tenha conseguido plantar a sementinha, criando novos leitores de H. P. Lovecraft durante esse processo tortuoso e macabramente divertido. Entre minhas pesquisas, tentei me ater às informações mais relevantes, mas se você tiver síndrome de Asperger e quiser saber de TUDO, pode examinar Providence a nível microscópico com a ajuda desse blog. Foi bom enquanto durou. Azatoth seja louvado!!!
Acabei de ler Providence 3 e era exatamente esse tipo de explicação quadro a quadro que eu estava procurando. Muito obrigado.
Estamos aqui pra isso! ☺️☺️☺️