VERÃO NEGRO, de Warren Ellis e Juan Jose Ryp, ou “Uma forma mais rápida e barata de Impeachment”

Primeiramente, e aproveitando o tema da história, FORA BOLSONARO!

Em segundo lugar, me recuso a gastar linhas, talvez um parágrafo inteiro ou dois apresentando Warren Ellis aqui. Gostaria de acreditar que ele dispensa apresentações. Gostaria também de passar direto para a HQ em questão e não citar que Ellis é um dos principais componentes da “segunda onda” da invasão britânica, o evento que mudou a cara das histórias em quadrinhos na década de 80, e que reverbera no que é produzido na nona arte até hoje. Que apesar de não ter surgido no mesmo momento que Alan Moore, Neil Gaiman ou Grant Morrison, ainda assim Warren Ellis tem seu lugar garantido como uma das cabeças responsáveis por essa renovação conceitual dos comics e é um dos pilares da Vertigo e por onde mais tenha passado, sempre dando preferência a pequenos trabalhos autorais, que permitem maior liberdade criativa em editoras de menor porte ou pequenos selos, como a Avatar PressWildstorm ou Image Comics, e que inclusive escreve algumas edições para a Marvel até hoje, o que, pela qualidade do que costuma entregar, não é nenhum demérito. Também gostaria de não precisar dizer que ele é o autor de três, talvez quatro (isso sendo moderado e conservador, porque convenhamos: TransmetropolitanThe AuthorityPlanetaryFrequência GlobalGravelFell, Verão NegroNo HeroSupergod e Injection já formam sozinhas um Top 10 em qualquer ordem que você queira elencá-las!) de dez HQs que a garotada deveria ler para considerar que tem uma bagagem sólida e decente de boas histórias. Também não vou mencionar que ele já tem dois livros em prosa lançados: seu sensacional début Crooked Little Vein (ainda inédito no Brasil), um insano mix de história de detetive com road trip, recheado com situações absurdas e personagens bizarros, e Máquina de armas, um romance policial um pouco mais contido. Gostaria de não precisar ter que apresentar Warren Ellis e partir direto pra resenha de Verão Negro, mas diabos, acabei falando tudo isso mesmo assim.

Warren Ellis

Ellis é um entusiasta de ciência e tecnologia, e sempre dá um jeito de inserir as teorias e descobertas científicas mais recentes nos enredos de suas histórias, além de disparar suas reflexões ácidas a respeito de política em seu blog pessoal e nas redes sociais. Esta mescla de ciência e política permeia a grande maioria de suas obras autorais, assim como seus comentários socioculturais e críticas aos governos estabelecidos. Esse senso crítico, essa verve em enfiar o dedo na ferida utilizando uma mídia aparentemente inócua, como a maioria das pessoas pressupõe que as histórias em quadrinhos sejam, aliada ao senso de desprezo que a maioria dos roteiristas britânicos cultiva pelos super heróis norte americanos, espalhafatosos e santarrões, renderam muitas boas criações, como o grupo Authority, uma equipe de super humanos sem rabo preso com nenhum governo.

Essa vai pro povo que se alimenta de referências…

Pois bem, em 2007, em um desses inúmeros projetos autorais, Ellis iniciou com Verão Negro uma espécie de “Trilogia super heróica”, composta por três mini séries com um tema em comum: como super-humanos lidam com as relações políticas humanas? Quando você é portador de poderes superiores, é correto passar por cima das leis e decidir fazer justiça com as próprias mãos? Podemos dizer que Verão NegroNo Hero e Supergod pela temática análoga seriam o Watchmen de Warren Ellis? Foi a impressão que tive desde que a primeira mini série da tal trilogia saiu, e essa impressão não se desvaneceu até hoje, quase uma década depois. Ellis utilizou sua trilogia super heróica para fazer um comentário a respeito do panorama geopolítico de nossos tempos, e também de tempos ainda por vir, de um futuro próximo, apontando logo ali na esquina, uma reflexão sobre relações humanas, super humanidade e política. Segundo o próprio Ellis:


“Como se define um criminoso? Em que ponto um ato passa a ser criminoso e você deve buscar justiça? Se sua compulsão ética [como super-herói] é sair do sistema jurídico para praticar ou vingar crimes, o que você faria num país em que o presidente é considerado responsável por uma guerra ilegal que tomou milhares de vidas?”

Capa do hardcover da mini série.

Um dos últimos remanescentes de uma equipe de super-heróis do passado, conhecido como “As Sete Armas”, o poderoso John Horus choca o mundo ao invadir o Salão Oval da Casa Branca e exterminar sem piedade o presidente dos Estados Unidos (na época da mini série George W. Bush, retratado morto em uma das capas principais da mini) e seus conselheiros. Para Horus, o governo era corrupto e em sua luta contra o mal, esta era uma ação necessária. Logo em seguida, ele convoca o povo a realizar novas eleições sem fraude. Na vida real o ex-presidente Bush foi acusado de fraudar o resultado da eleição e se eleger assim mesmo. A mídia em peso satirizou o episódio ocorrido na apuração dos votos na Flórida, estado em que seu irmão Jeb Bush era governador na época. Que coincidência, hein? Mas de Michael Moore ao Saturday Night Live, esse episódio não passou em brancas nuvens.

John Horus mata a cobra e convoca novas eleições.

As autoridades resolvem revidar caçando Horus e todos os seus antigos companheiros de equipe, que se presume, o estão apoiando. Na tentativa de protegerem-se e encontrar Horus para tirar satisfações, além de jogados no meio de uma briga que não provocaram, seus ex-companheiros de equipe desencadeiam uma onda de violência como poucas vistas nos quadrinhos, e que só se agrava ainda mais quando descobrem que estão sendo caçados por seu antigo mentor, Frank Blacksmith, que julgavam estar morto, e por uma nova leva de operativos modificados por ele. 

O hiper detalhismo de Juan Jose Ryp.

Agora, um breve parêntese aqui pra falar do símbolo mais legal que Ellis utilizou em toda a história: o deus Hórus

Na mitologia egípcia, Hórus é o deus dos céus e simboliza a realeza, o poder e a luz. Tem cabeça de falcão e corpo humano. Os egípcios utilizavam um amuleto conhecido como Olho de Hórus, que acreditava-se trazer proteção, força e coragem. Os egípcios também acreditavam que os faraós eram encarnações de Hórus, por ser associado à realeza, zelando por seu povo, trazendo a luz, combatendo o mal e trazendo o equilíbrio à terra. E é aí que as analogias ficam interessantes, pois o personagem homônimo de Ellis, assassina o equivalente à realeza visando recuperar um equilíbrio e justiça que ele julgava perdidos, e os olhos de John Horus, que são os dispositivos que ele criou como parte de seu sistema de armas, mais do que apenas um talismã, são um maquinário de enorme poder, e como podemos ver na mini série, deram trabalho para o exército heheheh… Agora, de volta à nossa programação normal…

O Olho de Hórus, um talismã de força e poder…

A história se alterna entre eventos no presente e flashbacks com cada membro das Sete Armas, cada um deles um especialista em uma área de tecnologia. Todos desenvolveram suas próprias armas e implantes, e nos flashbacks vemos suas motivações para se tornarem vigilantes super humanos. Cada membro do grupo preenche um arquétipo das superequipes de heróis de quadrinhos, porém, de certa forma mais realistas, ou pelo menos com uma abordagem inédita com relação à fonte de seus poderes. Temos o músculo da equipe, a velocista, a voadora, entre outros. Ellis aborda mais uma vez o transhumanismo ao retratar a forma como os integrantes das Sete Armas modificam seus corpos para se tornarem mais do que humanos. Verão Negro nos apresenta uma história espetacular. Sangrenta, brutal e crítica, com muita porradaria, sangue, mutilações, explosões e violência desmedida até a última página. A arte hiper detalhista de Juan Jose Ryp é fantástica e temos várias e várias splash pages de soldados sendo mortos, confrontos insanos, veículos destruídos…. essa é uma HQ que nem demora tanto tempo para ser lida do começo ao fim, mas que nos obriga o tempo todo a parar a leitura para observar os detalhes da arte. Se tivesse que fazer apenas uma ressalva, seria com relação a toda a ação e violência ofuscarem o questionamento moral que Ellis propõe no mote da história: a discussão em torno da validade moral do ato de John Horus é soterrada por todas as sequências de ação e violência subseqüentes, e o leitor que esperar um maior desenvolvimento da parte filosófica da trama, sinto muito, mas vai ficar levemente desapontado. Ainda assim, baixando as expectativas em relação a isso, é uma ótima história, divertida e com muitas idéias boas, para ser lida e relida, ou pelo menos para “ler as figuras.”

Ultraviolência!

E lembra que eu disse que o Ellis fez uma trilogia? Também resenhamos “Herói Nenhum” e “Superdeus“.  Ah, e só pra não perder o costume: FORA BOLSONARO!!! John Horus, me faz um favorzinho…?

“Captured Ghosts”, documentário sobre a vida e obra de Ellis
Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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