Ok, a sequência de Liberdade a Qualquer Custo de Miller e Gibbons não traz a maestria da primeira obra, acho até natural que isso aconteça, pois a primeira obra norteou as estruturas da HQ, nos mostrou cenários distópicos e trouxe bastante crítica ao capitalismo opressor. Nesta nova HQ, essas bases já estão consolidadas e isso é um ponto positivo para o leitor, que já sabe por onde está passeando. Os personagens, também consolidados, todos com suas personalidades bem definidas, característica do Miller, de escrever sobre um personagem e já proporcionar ao leitor uma leitura precisa sobre suas ações. Marta Washington Vai à Guerra pode não ter alcançado o sucesso criativo de Liberdade a Qualquer Custo, mas está longe de ser uma HQ ruim, muito pelo contrário! Aqui nós temos a consolidação da história anterior.
Nesta HQ o ritmo diminui, Martha volta a trabalhar pela PAX achando que o pior já tinha passado, mas tem de lidar com uma profunda crise tecnológica em suas estruturas. Misteriosamente os cientistas da terra estão sumindo e isso tudo está sendo atribuído aos “Fantasmas”, que ninguém sabe quem são. Esse é o mote principal desta série. Ela não expande os cenários, é apenas Martha Washington, caçando esses “Fantasmas”, encontrando-os e bom… daqui não posso mais falar. Importante dizer também que nesta HQ há uma cutucada nas conspirações militares. Existe uma base chamada Harmonia, que fica no céu e detém o controle climático do planeta, utilizando isso para fins bélicos. Sim, essas discussões estavam muito em evidência nos anos 90 e até hoje muito se discute nos campos conspiratórios sobre armas de controle do clima sendo utilizadas para desestabilizar países de terceiro mundo.
O Cirurgião Mor está lá, impávido, inteligente, mas não é o vilão principal da série. Miller fez com que o embate ideológico-filosófico fosse o maior vilão da série. Como um povo pode atingir seu auge se os que detém o controle sobre o povo continuam a exercer suas políticas de corrupção e opressão? Acho que nesse ponto ele vai fundo sobre mudanças de paradigmas sociais urgentes em nossa sociedade. O povo não pode abaixar a cabeça para os governantes, e os governantes não podem tomar a decisão pelo povo. Tem de haver uma integração. A HQ mostra que uma sociedade governada por cientistas, onde os cientistas apresentam propostas de melhorias para a sociedade, e estas propostas são aceitas, ao passo que no modelo obtuso de governantes opressores, essa ideias eram engavetadas, cientistas eram ameaçados e até mortos por propor ideias que melhorassem a condição humana. Os poderosos gostam dessa opressão, quando o povo não tem para onde ir, é onde os ricos chegam com suas soluções escravagistas cedendo tão pouco do seu esforço e exigindo muito do povo necessitado e agradecido por tal ajuda miserável. Isso nos faz refletir o quanto nossa sociedade é ruim a nível mundial. Se por um lado, o capitalismo é uma base econômica que (eu acho) a mais adequada, por outro, é preciso “curar” as bases do capitalismo, porque ela está doente nas mãos de poucos poderosos. Essa é a tônica que vejo o tempo todo neste mundo em que Martha Washington vive. No posfácio Miller faz um agradecimento a Ayn Rand, escritora de A Revolta de Atlas, ao qual atribui a inspiração para esse embate filosófico-ideológico sobre quem é o vilão e quem são os heróis desta série.
Agora voltemos ao genial Dave Gibbons com sua arte grandiosa, feita para ser grande, literalmente. Ao passo que Miller combate esse capitalismo, a história nos faz avançar de uma distopia para uma utopia, como se o povo estivesse em um processo de evolução de consciência, e Gibbons mergulhou em Moebius para ilustrar essa nova utopia que estava nascendo. Confesso não saber de quem foi a ideia, se do próprio Miller ou do Gibbons. Gosto de pensar que Gibbons desenhou e Miller curtiu, porque encaixa perfeitamente na história: O cenário utópico com lindos campos verdejantes, crianças brincando, pessoas felizes, quase que um folhetim de Testemunha de Jeová, onde tudo é belo e ninguém tem unha encravada, já viram? Ah, e tem uma enorme pirâmide tecnológica, a base da resistência ideológica, cara… Não tem como não traçar paralelos com a obra do Moebius!
Sequencia matadora do ataque de Harmonia a Base Piramidal.
Martha Washington Vai à Guerra é uma leitura obrigatória. Assim como Liberdade a Qualquer Custo, vocês precisam ler isso e repensar o modo como vivemos em sociedade, pois neste cenário de HQ, tudo é desvelado, mostrando de forma integral como as bases estruturais de nossa sociedade são elitistas, corruptas, opressoras. Aqui neste cenário está descortinado para o povo como se dá a manipulação de modo a fazer com que o povo seja sempre a classe operária e como a elite se beneficia fartamente ao custo do sangue dos menos privilegiados. Um Frank Miller afiadíssimo, fazendo comentários pontuais que tornam essa HQ atualíssima.
PS: Infelizmente a saga de Martha Washington acaba por aqui no Brasil. A Mythos não trouxe as outras publicações que saíram, sabe-se lá porque motivos. Existem mais 3 títulos one-shot e uma mini-série em 3 edições. Tudo isso poderia caber em um único volumão que fecharia toda a saga de Martha Washington. Fica aí a dica pras editoras brasileiras. Os leitores agradeceriam.
Texto por Conde.
Editora Mythos.
148 páginas. Lombada quadrada, formato americano, papel off-set.
Preço de Capa R$ 39,90
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