A maioria dos leitores de quadrinhos, após um contato inicial com o trabalho de Alan Moore, (“O Rouxinol de Northampton” para os íntimos ou “O Autor original” para os desafetos rs) acaba, por razões óbvias, se encantando com a qualidade de seus trabalhos e não raro, enveredam em uma pesquisa arqueológica para escavar trabalhos anteriores do bruxo (Não fazemos isso com todos os autores, diretores e músicos de que gostamos???). Em se tratando de Alan Moore, essa brincadeirinha arqueológica em torno de sua obra pode render ótimas surpresas, como se pode conferir em Bojeffries: A Saga.
Alguns anos antes da tal “Invasão Britânica”, a estratégia iluminada da DC Comics de olhar do outro lado da poça do atlântico e importar talentos do Reino Unido para dar um revamp em alguns de seus personagens de segunda linha, já sem brilho (na verdade, alguns sem brilho desde sua criação, mas nada que um Moore, Morrison, Milligan ou Gaiman não resolvam, porque, meus amigos, não existe personagem ruim, o que existe é a mulher que não conhece os produtos Jequiti! – ou algo assim), Moore já batalhava no mercado de HQs Inglesas. Começou como cartunista na revista musical Sounds, e logo em seguida dedicou-se exclusivamente como roteirista em títulos como a Doctor Who Weekly, Marvel UK, 2000A.D. e a Warrior, onde produziu V de Vingança, Marvelman/Miracleman e as primeiras histórias de Bojeffries: A Saga (em 1983, contudo outros arcos seriam produzidos depois, mas com o fim da Warrior, estes foram publicados em diversas revistas, sem regularidade definida), com arte de Steve Parkhouse, um dos pilares das HQs britânicas, com mais trabalhos no currículo do que eu disponho de espaço aqui para listar.
Alguns anos depois, em 2008, Moore resolveu retomar a história do clã Bojeffries, enquanto dava um break dos roteiros de A Liga Extraordinária, HQ que produz em conjunto com Kevin O’Neill, a fim de dar uma conclusão apropriada. Uma história de despedida, por assim dizer.
Uma HQ de humor, algo raro na bibliografia de Moore, Bojeffries: A Saga nos traz o dia a dia da família Bojeffries, uma espécie de Família Monstro residente num bairro de casas populares em Northampton, típicas de classe operária britânica, as famosas council houses. Seria um plot banal, se não fosse por um detalhe bizarro: Alguns membros dessa família suburbana “banal” nem humanos são! A saber: Jobremus Bojeffries, o patriarca da família; Ginda Bojeffries, a filha, um brucutu ameaçador; Reth Bojeffries, irmão de Ginda; O bebê, que produz energia atômica suficiente para iluminar a Inglaterra e o País de Gales; Tio Raoul Zlüdotny, um lobisomem aparvalhado que adora os poodles da vizinhança (No sentido gastronômico mesmo!); Tio Festus Zlüdotny, um vampiro inepto e Vovô Podlasp, uma criatura muito antiga, amorfa e poderosíssima que quando irritado, brada palavras como “Y-YUG FNATAGH! N’GAR! YULLOTH RHUGAH! H’RRUN SHLUGATH! IËI CTHLUR-XOTEP”, numa ostensiva homenagem ao vocabulário profano inventado por H. P. Lovecraft, escritor do qual Moore é admirador confesso.
Como toda boa sátira, a família Bojeffries foi apenas um palco para apontar e rir da feiúra cotidiana da cinzenta Inglaterra, com tons abertamente autobiográficos, que remetem diretamente à infância de Moore:
“Eu e o desenhista Steve Parkhouse estamos tentando captar a sensação das coisinhas bem imbecis da Inglaterra que lembramos de quando éramos criança… Resumindo tudo à fantasia de uma paisagem inglesa na qual havia lobisomens e mutantes. É engraçado dizer, mas é mais pessoal que muitas HQs que já fiz.” Vinte anos depois, ele ressaltou a mesma questão: “Bojeffries foi importante pelo fato de ser uma das coisas mais pessoais que já fiz… parece muito surrealista para americanos, enquanto, para mim, é uma das coisas que fiz na qual fiquei mais próximo de descrever o sabor que tinha uma infância de classe operária em Northampton.” Em alguns momentos, Bojeffries: A Saga é simplesmente a infância de Alan Moore com os nomes trocados e leve hipérbole para fins de comédia.“
(PARKIN, Lance. Mago das Palavras: A Vida Extraordinária de Alan Moore, Ed. Marsupial, 2016, p.104)
Apesar de ser um dos primeiros trabalhos de Moore, a HQ é impregnada de um espírito anárquico, de um jovem Alan Moore querendo se divertir e contar histórias, como o infeliz destino de Trevor Inchmale, um cobrador que examinando registros, descobre que os Bojeffries não pagam o aluguel há mais de um século, ou a saída à noite do tio Raoul, que graças a um colega de trabalho com uma agenda velha, confunde as fases da lua, o que dá a Raoul a certeza de que ele pode sair de casa para uma social sem se transformar, mas adivinhem? É noite de lua cheia! Ou as desventuras românticas de Ginda Bojeffries e até mesmo uma ópera! Sim, uma história “cantada” em formato de ópera pelo “elenco” da HQ. Moore ousa nos formatos desde sempre.
A história final, escrita em 2008, no estilo de documentário para a TV, algo como “Por onde andam os Bojeffries?”, é hilariante e, pasmem, acaba numa edição de Big Brother Inglaterra!
Ah, e finalmente a HQ foi lançada no Brasil pela editora Devir, que deu um tratamento de capa dura ao encadernado de 96 páginas que compila TODAS as histórias da família Bojeffries criadas pela dupla, inclusive a derradeira história de 2008, tão ácida em sua abordagem sociocultural quanto as originais o foram em seu tempo. O encadernado segue o padrão do editado lá fora, publicado em conjunto pelas indies Top Shelf (EUA) e Knockabout Comics (Inglaterra),
Uma rara oportunidade de ver os primórdios do barbruxão na prática de seu ofício, em um tempo em que ele ainda não era o Mago Supremo mas já ensaiava seus primeiros passos rumo a narrativas mais grandiosas que revolucionariam a mídia das histórias em quadrinhos, mas isso é uma história pra outro dia, crianças, e eu vou voltar pro meu caixão porque já está amanhecendo… CHEERS!!!