Uma leitura de “Time” do Pink Floyd

Durante o início da vida adulta, Goes Murdock (também colaborador da Zona Negativa) e eu fizemos o pacto de evitarmos ao máximo nos arrepender de nossa existência, caso chegássemos na velhice. Falamos sobre decisões e vícios que poderiam levar a um arrependimento, seja uma vida baseada em excesso de trabalho para sustentar inúteis luxos consumistas, drogas, estresse ou impulsividade, por exemplo. 

Essa ideia perdurou, e como qualquer ideia humana percebemos que não era nada original e que outras pessoas já haviam refletido sobre isso com muito mais maturidade e experiência que nós naquele momento. Talvez minha principal influência tenha sido a música que fala sobre o que nos sobrava e faltava simultaneamente, o tempo. 

Apesar desse texto ser uma reflexão a partir da música Time do disco The Dark Side of the Moon da banda inglesa Pink Floyd, quem entrou anteriormente na minha vida foi a banda de hardcore norte americana Bad Religion. Na música Faith Alone do disco Against the Grain é dito “Não podemos comprar mais tempo / Pois nossa oferta não é válida”. Outra música da banda que acrescenta na discussão é Before You Die que serve como um aviso para que você reflita sobre o que está sendo feito com sua existência. 

“Enquanto você considera as areias do tempo perdidas,

Você se preocupa em saber como sua vida foi definida?

Você sabe que a eternidade nunca poderá mudar sua mente.

Você sabe que a eternidade nunca poderá mudar sua mente.”

O Bad Religion e o Pink Floyd possuem muitas ideias em comum, e isso um dia renderá um texto. Aguardem rs.

A lendária banda de punk rock percursora do hardcore/melódico Bad Religion

Mas nos atentando à música Time:

Ela inicia com um barulho que remete a uma série de despertadores, isso sugere a ideia de despertar, talvez. Para você prestar atenção no tempo e em sua vida, inclusive essa introdução de Time é a introdução mais explosiva e barulhenta de todo o disco. Essa ideia do despertar é presente na carreira do Pink Floyd, a música Comfortably Numb, por exemplo, inicia com as seguintes frases “Olá / Tem alguém aí? / Apenas acene se puder me ouvir / Tem alguém em casa?”. 

Depois desse início, a música parece brincar com a paciência e possível ansiedade do ouvinte, pois os vocais aparecem apenas aos 2:19, uma longa introdução com sons que remetem a relógios. Depois disso entram os vocais que carregam grande parte da mensagem da música. 

“O tempo passa em meio a momentos que tornam um dia sem graça

Você esbanja e desperdiça as horas de um jeito descontrolado

Perambulando por aí em um pedaço de chão em sua terra natal

Esperando que alguém ou algo lhe mostre o caminho”

O início da letra remete a ideia de uma pessoa que está sem rumo e não percebe que seus dias estão passando. Ela desperdiça seu tempo de existência esperando que alguma coisa aconteça e ela se toque sobre seu caminho, caminho esse que pode ser encarado como propósito, e propósito esse que pode se apresentar como profissão, missão, visão religiosa, etc. 

“Cansado de deitar ao sol

De ficar em casa para ver a chuva

Você é jovem e a vida é longa

E há tempo para gastar hoje

E então um dia você descobre

Que dez anos ficaram para trás

Ninguém lhe disse quando correr

Você perdeu o tiro de largada”

Aqui a música segue a narrativa do trecho anterior. A pessoa vivia aguardando que algo lhe mostrasse o caminho e como isso não aconteceu, chegou um momento em que se cansou de ficar deitado ao sol ou olhando para a chuva. Tudo isso aconteceu na juventude, dez anos ficaram para trás e esse alguém ou algo que lhe mostraria o caminho, nunca apareceu e nem aparecerá. Dez anos vividos no automático que agora são lamentados por tantos momentos jogados fora. É possível imaginar que nenhum momento é de fato jogado fora, tudo é vivido e se torna experiência. Mas como é vivido? E qual experiência é interessante para você? 

“E você corre e corre para alcançar o Sol, mas ele está se pondo

Dando a volta até surgir novamente atrás de você

O Sol é o mesmo, de certa forma, mas você está mais velho

Com menos fôlego e um dia mais próximo da morte”

O sol pode ser lido como uma analogia aos desejos. Viver por um desejo, seja de consumo, emocional, etc. Você vive pelo desejo e esquece de aproveitar os momentos e de fato viver a vida. Por exemplo, um dia você vai na feira comer um pastel e pensa “mas quando eu tiver meu carro, vou comer aquele pastel famoso do outro lado da cidade” e continua com uma sensação de insatisfação, mesmo comendo um excelente pastel perto de sua casa, isso por conta do desejo de ter o carro e atravessar a cidade. Então um dia você conquista o carro e come o pastel do outro lado da cidade e se sente realizado, porém até quando? Quantas vezes vai ser incrível comer o pastel do outro lado da cidade? Quando deixará de ser um desejo extraordinário e se tornará parte do cotidiano?

É citado também nesse trecho que o sol está se pondo, porém surgirá novamente atrás de você, sendo o mesmo sol, de forma relativa com você mais velho. Nessa ideia dos desejos, é possível ler que você poderá fundamentar sua existência neles basicamente. Não poderá viver os momentos, pois sempre terá um “quando tiver isso, estará perfeito” e sua vida girará em torno do que for escolhido como objeto de desejo. Quando o carro e o pastel do outro lado da cidade chegarem, você criará outro, um apartamento em um bairro nobre talvez, e gastará todo seu tempo de vida e energia disponíveis para conseguir isso e poderá viver nessa lógica predatória de desejo em busca de uma satisfação pessoal que nunca chega. 

A mitológica banda de Rock Progressivo/Psicodélico Pink Floyd

Essa lógica faz muito sentido no capitalismo, a busca pelo iPhone atualizado ou a nova edição de luxo do gibi favorito. Somos alimentados com essa ilusão associativa de consumo e felicidade, quando que o consumo gera prazer, o que é completamente diferente. É por isso que ao alcançar o desejo, você jamais estará em um estado de satisfação, e não ter desejos não é a resposta para essa valorização do tempo que a música fala. Os desejos, quando conquistados, geram prazer e apenas isso, essa é uma das facetas da realidade e da complexidade que é a vida, é importante e prazeroso conquistá-los, porém a vida não pode se basear apenas na busca exacerbada por eles. 

Essa é a maneira mais fácil de cair no vício do excesso de trabalho, consumir coisas que não precisa, dever dinheiro e desejar outras. Esse ciclo é perfeito para te manter em trabalhos exaustivos fazendo a roda do lucro girar, te levando para uma jornada de longas horas extras em busca de um suposto ideal de felicidade. 

“Cada ano que passa fica mais curto

Parece nunca arranjar tempo

Planos que tampouco dão em nada

Ou meia página de linhas rabiscadas

Se agarrando a um desespero silencioso, este é o jeito inglês

O tempo passou, a música acabou

Pensei que eu teria algo mais a dizer”

No trecho acima a música apresenta algumas das consequências de não sentir o tempo, como os anos mais curtos, os dias que voam e a vida que se esvai em meia página rabiscada. Não creio que a música faça um juízo de valor sobre utilizar seu tempo em fazer algo “produtivo”, nessa leitura é apenas observar essa passagem de tempo e refletir sobre as insatisfações de sua existência. 

“Em casa, novamente em casa

Eu gosto de estar aqui quando posso

E quando chego em casa com frio e cansado

É bom esquentar os meus ossos junto ao fogo

Bem longe, do lado de lá do campo

O badalar do sino de ferro

Chama os fiéis para se ajoelharem

Para ouvir os feitiços sutilmente lançados”

Provavelmente o trecho mais interpretativo da música, onde a mensagem praticamente já foi exposta e a banda precisava dar uma conclusão pra essa espécie de narrativa. Pode ser lido como que ao fim da música e dessa reflexão, a pessoa vá voltar pro seu estado original de inércia com a própria vida. Pode ser lido como um prazer real de voltar pra casa, um lugar seguro e conseguir pensar na situação de maneira mais fria e racional para identificar os problemas na própria vida. E se lermos casa como por exemplo uma Igreja, uma instituição que dá sentido a vida das pessoas, podemos ler como um lugar onde nos lançarão sutis feitiços em que todas essas preocupações desaparecerão, pois a existência é explicada por Deus e nós não precisamos sofrer com nada disso e nem nos preocupar com o tempo que perdemos, já que existe a promessa de imortalidade da alma e nossa missão na terra está sendo cumprida. 

Time é uma música inventiva e pode ser desoladora caso a pessoa se sinta presa em alguma espécie de ciclo destrutivo de não entender o que a satisfaz e como lidar com seus desejos. Ela pode ser dolorosa e libertadora, parte da dor dela surge em reconhecer os possíveis vícios que cada um de nós pode obter com o passar da vida, seja o consumo em busca de uma suposta felicidade, uso de drogas ou do próprio entretenimento para fugir da própria realidade o máximo que puder. Sinta o tempo, ouça e viva os momentos dessa canção, deixe o tempo ser consumido pelo Pink Floyd e é provável que depois disso um segundo valerá mais que um mero segundo. 

A tradução da música partiu do site Letras, pois é a mais comum e que melhor se aproxima do significado no idioma original da música. E caso você ainda não tenha contemplado esse grande clássico da música que é Time, por favor ouça logo abaixo:

LETRA ORIGINAL

“Ticking away the moments that make up a dull day
You fritter and waste the hours in an offhand way
Kicking around on a piece of ground in your home town
Waiting for someone or something to show you the way

Tired of lying in the sunshine
Staying home to watch the rain
You are young and life is long
And there is time to kill today
And then one day you find
Ten years have got behind you
No one told you when to run
You missed the starting gun

And you run and you run to catch up with the Sun, but it’s sinking
And racing around to come up behind you again
The Sun is the same in a relative way, but you’re older
Shorter of breath and one day closer to death

Every year is getting shorter
Never seem to find the time
Plans that either come to naught
Or half a page of scribbled lines
Hanging on in quiet desperation is the English way
The time has gone, the song is over
Thought I’d something more to say

Home, home again
I like to be here when I can
And when I come home cold and tired
It’s good to warm my bones beside the fire
Far away, across the field
The tolling of the iron bell
Calls the faithful to their knees
To hear the softly spoken magic spells”

Rac John
Viajando em um túnel infindável de dados, tentando juntar os fragmentos corretos da loucura cotidiana que o mundo produz sob a sombra de caracteres. Meu nome é Rac John, e te convido a se deixar envolver pela loucura.

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