A Trilogia A SAGA DOS BRUTOS, de Ana Paula Maia

Texto por Ricardo Cavalcanti

Se tem uma coisa que a equipe da Zona Negativa sempre gostou foi de procurar algo interessante fora do badalado mainstream. A satisfação em descobrir algo escondido embaixo de um monte de obras pasteurizadas que obedecem a uma fórmula de sucesso sempre foi recompensador. Nem sempre tudo foi muito fácil de se conseguir como hoje em dia. Para se ter uma ideia, se você quisesse ouvir algo que não era tocado nas rádios ou que aparecia nos programas dominicais na TV, você tinha que encarnar o seu espírito desbravador e sair à caça de lojas de discos que oferecessem algo além das obviedades.

Matéria sobre De Gados e Homens, lançado na Itália

Com os filmes era a mesma coisa. Caso a locadora mais próxima da sua casa não te oferecesse opções além dos filmes que viriam a ser futuros títulos de Sessão da Tarde, o processo de descoberta era o mesmo. Isso numa época em que as únicas opções eram as oferecidas pela TV aberta e a TV por assinatura era um privilégio para poucos.

Ler então… Se você não tivesse um bom faro e um bom sebo para garimpar, pouca coisa se conseguia encontrar de relevante. Não existia um caminho das pedras a ser seguido; cada um desenvolvia seu próprio caminho. Além do mais, era preciso usar muita sabedoria para gastar o pouco dinheiro em alguma coisa, já que na maioria das vezes, a gente acabava apostando no escuro. Não era um simples gasto, era como um investimento de alto risco.

Com o aumento do acesso à internet, tivemos um novo mundo se abrindo diante de nossos olhos. Conseguimos acesso a obras dos mais remotos cantos do mundo. Nesse sentido, muito nos ajudou o falecido Putrescine, que era uma fonte inesgotável de pérolas, prontas para serem descobertas, seja qual for o seu gosto. Tivemos a sorte de conseguir grande parte da filmografia sangrenta de Takashi Miike, da crueza do cinema de Takeshi Kitano, além de uma gama gigantesca de coisas sem noção, que é até difícil definir como o Batman filipino, ou o Superman Turco, além de toda picaretagem do cinema produzido na Turquia e na Índia, que copiavam descaradamente as produções de Hollywood.

Matéria sobre A Guerra dos Bastardos, lançado na Sérvia.

Hoje, graças ao Google, temos uma facilidade maior para encontrar qualquer coisa. Imaginamos que seria o fim da cultura de massa, que a polarização seria a nova forma de consumo de entretenimento, e que tudo estaria caindo no nosso colo, nos cabendo apenas o trabalho de escolher entre as diversas opções. Mas a sensação que se tem é de que sempre aparecem as mesmas coisas, ficando cada vez mais difícil encontrar algo que te impacte e valha realmente a pena. Mas apesar de o espírito desbravador andar meio velho, cansado e um bocado preguiçoso, a empolgação de descobrir algo bom e que fuja das obviedades com que somos bombardeados ainda está mais viva do que nunca. Nesse sentido, surgiu um nome de uma autora brasileira que me surpreendeu, não só pela sinopse de seus livros, mas também da reação de seus leitores.

Ana Paula Maia acabou atiçando minha curiosidade e resolvi conferir do que se tratava. Logo fui surpreendido por sua forma de escrita poderosa e extremamente pessoal. Na trilogia que compões a ‘Saga dos Brutos‘, temos três histórias divididas em dois livros – Entre Rinhas de Cachorros e Porcos Abatidos, de 2009 (que também tem a história O Trabalho Sujo dos Outros) e Carvão Animal, de 2011 – ambos publicados pela editora Record. Seus personagens são embrutecidos pela vida. Não possuem altos questionamentos filosóficos que os consumam; não fazem planos para a própria vida. São os bestializados, os excluídos, os marginalizados, os invisíveis perante a sociedade. Aquele que recolhe o lixo da sua casa por anos e anos e você não sabe nem o nome. Os que desentopem os bueiros e de quem ninguém quer chegar perto porque fedem.

Capa da edição francesa de Carvão Animal

Ana Paula possui uma escrita direta, sem floreios, sem rodeios, sem pudores. Suas histórias não possuem finais apoteóticos, nem tramas rebuscadas que com plot twists mirabolantes no final. Mas não significa que também não sejam extremamente impactantes ao final da leitura. A autora te insere em uma realidade dura e sem perspectivas. Em comum, seus personagens possuem o mesmo objetivo: sobreviver.
O juízo de valor, mostrando o quanto é reprovável como os personagens conduzem suas vidas e suas decisões (ou suas formas de pensar), poderia ser um caminho fácil a ser trilhado pela autora, mas Ana Paula não te induz, em nenhum momento, o que achar e o que sentir sobre os acontecimentos. Essa função fica a cargo do próprio leitor.

É uma leitura desaconselhável a pessoas sensíveis e que esperam sempre o lado bom da vida, ignorando as mazelas do dia a dia e tudo que não agrada aos sentidos. Como um aperitivo, segue um pequeno trecho para se ter uma ideia da prosa:

“A gordura funciona como combustível e aumenta a intensidade do fogo, sendo assim, uma pessoa magra demora mais para ser reduzida a cinzas do que uma gorda. O forno crematório atinge uma temperatura de até 1.000°C. Inclusive para os dentes é impossível resistir ao insuportável calor. A fila de corpos a serem cremados é sempre longa. São mantidos congelados até assarem no forno, e moídos os restos empedrados que são finalizados em cinzas de grãos uniformes e suaves.
Enquanto o corpo é carbonizado, as extremidades se contorcem e encolhem. O que já foi humano parece voltar-se para o lado de dentro. A boca escancara e se contrai. Os dentes saltam. “O rosto murcha e torna-se um grito suspenso de horror.”

Carvão Animal
De Gados e Homens, capa da edição Sérvia.

Por conta de suas descrições de situações que podem gerar incômodo, algumas pessoas a comparam com Chuck Palahniuk, autor de Clube da Luta, Assombro, Cantiga de Ninar, entre outras pancadas da literatura transgressora. Apesar de suas histórias se encaixarem perfeitamente nos contos de Assombro, por exemplo, não acho que seria uma comparação justa. Acabaria a reduzindo a uma cópia; um pastiche. Mas SE for para comparar, diria que suas histórias seriam algo como se Beto Brant filmasse com a violência dos filmes dirigidos por Mel Gibson e um bocado de Ruggero Deodato em Holocausto Canibal.

Edição alemã de “A Guerra dos Bastardos”


O personagem Edgar Wilson (recorrente em suas histórias) é a junção de Edgar Alan Poe com do personagem William Wilson, que dá nome a um dos contos do autor, revelando uma de suas influências.

Imagino como deva ser complicado para um autor nacional conseguir publicar alguma coisa por uma grande editora. É mais fácil investir no óbvio, que vai trazer lucro certo, do que apostar num novo nome e apresentá-lo aos seus leitores. Sem contar que o fato de ser mulher deve complicar ainda mais essa situação, enfrentando o machismo cada vez mais forte de homens inseguros e que vêem na mulher uma ameaça a…. sei lá o quê. Principalmente depois de constatarmos que estamos regredindo como sociedade nos últimos anos. Para se ter uma ideia dos obstáculos que uma mulher enfrenta, J. K. Rowling assinava assim para não saberem que era uma mulher escrevendo (só para citar um exemplo!).

Ana Paula Maia conquista seu espaço de forma imponente, com muito sangue e violência. Suas obras já foram publicadas em vários países como Alemanha, Estados Unidos, Sérvia, França, Itália e Argentina. Mas apesar disso, ainda é relativamente pouco conhecida por aqui. Ou é pelos motivos mencionados no parágrafo anterior, ou é o nosso complexo de vira-latas falando mais alto. Talvez seja um bocado dos dois.

Em 2017 ainda tivemos ainda mais de Ana Paula Maia. O filme Deserto – que foi roteirizado por ela – do diretor Guilherme Weber – e que já coleciona prêmios em vários festivais, deve entrar em circuito comercial ainda esse ano.  

Uma última pergunta… Onde eu estava que não a conheci antes?

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