Você tem uma fuinha sobrenatural na sua cabeça?

“Aliás, você é inteligente de verdade? Você está lendo um texto escrito por um cachorro!
Eu sou um cachorro russo, nascido em 1931.
E meu ex-dono era um russo com fetiche por cachorros.
Meu ex-dono era um russo com fetiche por salivação de cachorros.
Agora, eu vivo com um austríaco que gosta de manter gatos dentro de caixas.
Pelo menos eu não preciso mais ter vergonha de salivar.”

O Cachorro de Pavlov e o Gato de Schrödinger

UMA FUINHA SOBRENATURAL SE INSTALOU NO MEU CÉREBRO E OUTROS TEXTOS IGUALMENTE IMBECIS.

Esse aí em cima é o título do primeiro livro de Douglas Domingues. E com um título assim esdrúxulo, os Xeroque Holmes que seguem a gente aqui podem – acertadamente – deduzir que se trata de uma obra de comédia, e se estiverem se achando perspicazes a partir dessa conclusão, podem queimar a mufa mais um pouquinho e deduzir também que o foco da comédia é o nonsense, pra ser mais específico. O capixaba radicado em São Paulo dá aulas de cinema, audiovisual e novas mídias no ensino superior, é aficionado por quadrinhos baratos, filmes ruins, música esquisita e trecos afins, o que provavelmente deve ter lhe causado as lesões cerebrais tão necessárias para se conseguir produzir histórias desse naipe.

Douglas Domingues (duubhs@gmail.com)

Segundo o próprio Douglas “Na verdade, minha inspiração é um gênero que no Brasil vejo pouca gente lendo e escrevendo, chamado “bizarro fiction”. Sou um leitor ávido desse tipo de livro e meu entusiasmo maior é com três autores: Bradley Sands, Sam Pink e Jeremy Robert Johnson. Tenho outras influências, como Chuck Palahniuk (quem nessa geração não tem, né?), Martin Page e Aravind Adiga.“, explica.

Ãin, mas nonsense é muito vago, pode ser qualquer coisa…

É verdade gafanhotos, então permitam-me ser mais específico: Os contos abordam o tédio mortal em um domingo de páscoa e as coisas caóticas que se é capaz de fazer por ódio a esse feriado, ou o desabafo de um ex cão de Pavlov (aquele do experimento de reflexos condicionados, lembram?) que acaba conhecendo o experimento de Schrödinger (aquele do experimento do gato na caixa, lembram?), um game show ambientado no Inferno, onde uma pergunta respondida corretamente pode ser definidora de onde você vai passar a eternidade (por razões óbvias, acabei lendo as falas do Capeta com a voz do Silvio Santos kkk), e uma fuinha mística se instalando no cérebro de um usuário de metrô com a intenção de jogar uma conversa fora (Pois é, WTF, né?)…. só pra dar uma ideia do que os espera heheheheh. Domingues consegue unir as características do humor nonsense ao toque de brasilidade que inaugura novas possibilidades para a literatura nacional. Das influências literárias declaradas pelo autor, de fato dá pra captar um quê de Chuck Palahniuk e Martin Page em alguns dos textos. Quanto aos outros eu não saberia dizer pois não conheço.

“Sabe por que o mundo não tem mais ateus? Por que religião é uma mentira tão grande, uma merda tão grande, que quando você se dá conta disso, não quer admitir que era burro. Pra não ter que admitir, continua insistindo no erro até acreditar de coração que aquele absurdo todo é verdade. Pura covardia.”

Na Páscoa

Uma Fuinha Sobrenatural… foi lançado em formato e-book, reunindo, além dos pequenos contos, poesias e micro ensaios que, segundo Douglas “Guardam como semelhança temas que são estúpidos demais para serem levados a sério” e está disponível na loja virtual da Amazon.

A capa do livro é uma obra à parte. De autoria do quadrinista Victor Bello, expoente dos quadrinhos underground e responsável por obras como o já clássico Úlcera Vortex (2017)O Alpinista (2019), a arte do catarinense casa perfeitamente com o texto de Domingues, e quem leu as HQs citadas sabe o quanto Bello é a escolha perfeita para ilustrar a capa de Uma Fuinha Sobrenatural…, afinal, suas HQs transbordam escatologia, tramas tão bizarras quanto complexas e personagens marcantes.

Página de Sinuca Paranoide, HQ de Victor Bello publicada pelo selo Pé-de-Cabra

Aliás, sugiro um exercício de observação aos leitores de Uma Fuinha Sobrenatural…: A capa do livro, aparentemente caótica, depois de concluída a leitura se desdobra em várias referências aos contos, que no traço premeditadamente tosco de Bello, fazem total sentido. Quer dizer, tanto sentido quanto o nonsense de Douglas permite, né?

“Cães não tem muito nojo… Vai ver é por isso que os cães são os melhores amigos do homem.”

O Cachorro de Pavlov e o Gato de Schrödinger

Esse estilo literário pode parecer estranho para a maior parte dos leitores, mas não se enganem: Há uma enorme cultura em ascensão do universo do “bizarro” somado ao nonsense. Desde o tradicional britânico Monty Python até o subversivo e divertidíssimo Tim and Eric Awesome Show Great Job, desenhos da infância noventista como Coragem, o Cão Covarde ou mesmo clássicos modernos Aqua Teen Hunger Force (aqui no Brasil conhecido como Aqua Teen: O Esquadrão Força Total), elementos que causam estranhamento agradam e atraem centenas de pessoas, especialmente nos espaços geeks. Então se você curte essas doideiras e é um leitor que foge do convencional, Uma Fuinha Sobrenatural… é a pedida.  

Monty Python. Dispensa apresentações.

Com uma personalidade igualmente irreverente, o autor reforça “o formato de textos curtos o torna uma ótima opção para se ler na intimidade do banheiro”. Não é apenas o conteúdo, mas Douglas também compartilha o nome com uma das maiores referências do segmento, Douglas Adams, envolvido com o projeto de Monty Python e autor do famoso Guia dos Mochileiros da Galáxia.

Tim and Eric Awesome Show Great Job

Aqua Teen Esquadrão Força Total, o nonsense mais perfeito dessa dimensão…

“O austríaco maníaco pegou uma caixa. O austríaco maníaco pegou o gato. O que eu havia escolhido. O austríaco maníaco pegou uma armadilha.
Nessa hora, tomei uma decisão.
Antes do austríaco maníaco selar a caixa, sem que ele percebesse, entrei na caixa.
O austríaco maníaco selou a caixa.
Selando a caixa, a armadilha estava preparada.
Por alguns instantes, eu estive vivo e morto. Ao mesmo tempo.
E fiquei confuso se deveria matar o gato ou não.
Aliás, eu não sabia se eu mesmo estava vivo ou morto. E eu não sabia se o gato estava vivo ou morto.
Se eu estivesse morto, como eu iria matar o gato?
E se o gato já estivesse morto, pra que matar o gato?
Por garantia, decidi morder o gato.”

O Cachorro de Pavlov e o Gato de Schrödinger

Um Bate Bola com Douglas Domingues

Zona Negativa: Salve, Douglas! Preciso começar perguntando em que fontes vc bebeu essa água alucinógena, ou sejE, quais são suas influências, artisticamente falando, além dos autores já citados na matéria. Fale mais sobre os gibis ruins, os filmes vagabundos, a música estranha que você consumiu/consome, só pra gente entender como essa mistura pode ter dado nesse Chernobyl caótico que é seu livro de estreia heheheh.

Douglas Domingues: Artisticamente falando, eu acho que se for falar de arte mesmo, mesmo, é o Marcel Duchamp. Como essa influência se faz presente no meu livro eu não faço ideia, né? Mas ele pra mim é o grande artista do século XX. Falando de quadrinhos, eu tenho que citar o Victor Bello, que fez a capa (extraordinária!) do meu livro. Ele lançou a melhor obra do século XXI até agora, não só de quadrinhos, mas de qualquer suporte artístico, O Alpinista (Ugra Press, 2019). Uma trama bizarra de escatologia e alpinismo, crises de identidade, robôs, coprofagia e mais alpinismo. Mas ele tem muitas outras coisas lindas também, como Sinuca Paranoide ou Úlcera vortex. Tem também a Emilly Bonna e seu Esgoto Carcerário (Escória Comix, 2019), uma obra ímpar sobre um penico que almeja se tornar um vaso de plantas. No exterior, meu artista favorito é Chester Brown, sem a menor sombra de dúvidas. Sua série Yummy Fur e o compilado Ed – The Happy Clown, famoso por, no meio da história, a cabeça de Ronald Reagan se teletransportar e se fundir com a glande (isso mesmo) do palhaço protagonista é uma das coisas mais bizarras e inventivas que eu já tive contato. Vale a pena caçar coisas fora do mainstream, das pequenas editoras, dos fanzines.
Pra cinema meu gosto é parecido. Eu caço filmes esquisitos em tudo quanto é canto. As produções do Roger Corman, do estúdio Troma e do Larry Cohen obviamente que são grandes influências, mas gosto muito de caçar filmes esquecidos por aí. Por exemplo, Há uns 2, 3 anos eu tava viciado em filmes esquisitos da Polônia e da Tchecoslováquia dos anos 1970 e 1980. Vi cada pérola, como “Seksmisja“, “Zabil jsem Einsteina, panove“, “Zítra vstanu a oparím se cajem” e “Tajemství hradu v Karpatech“. O último que eu lembro de ter visto foi “Babicky dobíjejte presne!“, de 1984, que é um filme com uma batalha de robôs domésticos geriátricos. Esses dias eu vi outra pérola, Psycho Goreman, que foi um filme bizarro o suficiente pra renovar minha fé no cinema.
Música eu também faço meu garimpo. Eu gosto de canções com temas aleatórios que não sejam metafóricos. Tem uma banda que eu ouço muito, They Might be Giants. Eles tem muitas músicas nesse sentido. Eles tem uma música sobre o sistema circulatório que fala sobre sangue, e não sobre amor, amizade ou solidão. É sobre glóbulos vermelhos e brancos e artérias e coisa e tal. No Brasil, tem uma banda extinta que eu ouço à exaustão que é Zumbi do Mato. Novo México é a música que eu quero que toque no meu velório, inclusive. E é isso, minha lógica de consumo cultural é assim: eu vou separando o que é bom e o que é lixo, e fico com o lixo.

ZN: Muita gente tem a ideia errônea de que humor é algo fácil de se escrever, que é só bolar alguma palhaçada fora do comum e tá pronto, a gente sabe que não é assim que rola. Fale um pouco aí sobre o seu método de criação: Essa balbúrdia criativa toda sai de um cronograma rígido, você é mais de parar tudo quando a ideia vem pra dar aquela prioridade ou são dorgas mesmo?

DD: Esse primeiro livro eu reuni textos muito diversos. Tem coisa de quando eu tinha 16 anos e coisa de quando eu tinha 36 anos (ano passado). Todos esses textos do livro surgiram de forma espontânea, nenhum deles foi planejado. Eu até gosto de planejar e estruturar história, mas faço isso quando escrevo roteiro, pra audiovisual. Pros meus textinhos bestas não: eu começo a história com uma frase e vou descobrindo enquanto escrevo, e vou escrevendo até achar uma história ali. Depois que eu identifiquei o que eu quero narrar no meio daquela bagunça, eu vou reescrevendo pra adequar, e costumo reescrever muito. E não, eu não uso dorgas pra escrever. Não acho que funcione. Não pra mim, pelo menos. Eu gosto de ser culpado pelas minhas próprias cagadas, não quero ter uma desculpa que me isente.

ZN: Esse turbilhão de insanidade dos últimos anos causou um impacto na sua criação? Sendo mais direto, o quanto o hospício surrealista que o Brasil se tornou na última década impactou na produção de sua obra?

DD: Rapaz, nesse meu primeiro livro eu reuni textos de períodos muito distintos da minha vida. O único aspecto que foi afetado pela loucura do contemporâneo foi o lançamento. Em janeiro de 2020 eu planejei lançar o livro, digital e de papel, em julho. No meio do caminho veio a pandemia, que me afetou muito financeiramente. Daí eu perdi o pique e fui adiando pra lançar o livro até que no finalzinho do ano eu, de supetão, lancei só a versão digital mesmo. Outra coisa é que embora eu, na vida particular, seja ostensivamente politizado, nos meus textos eu me permito ser bobo. Talvez algum tipo de comentário da realidade esteja ali, mas não manifesto de forma explícita. Mas o dadaísmo fazia uma arte absurda diante dos horrores da Primeira Guerra Mundial. Só que no caso, o fazer artístico era que comentava sobre o contexto, não os temas que eles abordavam. Nunca examinei meus textos nesse sentido, mas acredito que minha reação ao contexto geopolítico e social contemporâneo seja inevitável. É inevitável pra qualquer autor, mesmo pra mim, que falo de fuinhas sobrenaturais e faço poesia sobre par-ou-ímpar. Mas não é ostensivo ou panfletário. Acho que tem mais a ver com o que eu comentei sobre os dadaístas.

Ou eu posso só estar falando merda mesmo.

ZN: Beleza! E pra finalizar eu preciso perguntar: Devo me preocupar com essa desorientação que venho sentindo e a vozinha debochada na minha cabeça que surgiu logo depois de eu ler seu livro? Esses efeitos são permanentes? Devo procurar um neurologista ou um médium?

DD: Não dirija veículo motorizado sob efeito desse livro. Ou dirija, só não me chame. Ou me chame, sei lá também. Os efeitos são duradouros, mas não sei se são permanentes. Então eu pretendo continuar lançando livros. E eu recomendo quem se identificar com as bobagens desse meu livro a lançar um livro também. Que o meu livro sirva de parâmetro baixo para te encorajar!

ZN: Bom, valeu pela breve conversa e stay crazy! Estamos ansiosos por mais monólogos/diálogos com fuinhas sobrenaturais e baleias cientologistas claustrofóbicas no próximo livro.

DD: Eu é que agradeço! Espero lançar meu próximo livro esse ano ainda. O título já está decidido, vai se chamar Reencarnei Como Uma Jujuba e Outros Textos Igualmente Degradantes, e essa história da jujuba foi o primeiro conto autobiográfico que eu escrevi na vida. Vai ter texto sobre o porteiro do inferno, sobre mágica com semáforos, poesia sobre Thomas Hunt Morgan e outros textos tão ignóbeis quanto. Pode deixar que uma cópia vai se materializar na Zona Negativa para o azar de vocês! Muito obrigado pelo papo e pelo espaço e um abração!

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Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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