CONTOS DA ZONA: Conjurações.

Eu tinha acabado de chegar no apartamento. Dei uma estica com os colegas: Direto do trabalho para o bar. Sinuca, flertes bem-sucedidos com uma colega e muita, mas muita bebida. Foi uma noite proveitosa. Tento sempre deixar o celular desligado e não ser um daqueles babacas que ficam de cabeça baixa, masturbando o telefone enquanto o resto do grupo tem uma interação humana normal. Assim que entrei no apartamento meu aparelho se conectou à rede. Mensagens e mais mensagens de várias conversas e grupos choveram, fazendo o telefone vibrar convulsivamente, compensando as horas offline.

Em meio à tantas conversas, uma me deixou um tanto curioso: Rubinho era meu amigo desde que éramos crianças, mas já fazia uns 4 ou 5 anos que eu não tinha nenhuma notícia dele, quando ele decidiu sair do banco onde trabalhávamos para suprir um cargo misterioso ao qual ele foi indicado e do qual nunca falou grandes detalhes, só disse ser um ‘órgão do governo’. Pouco tempo depois Rubens cortou contato comigo e com todos os outros amigos em comum. Ninguém mais soube dele. Achei que ele tinha virado mais um burocrata de alto escalão esnobe e exageradamente bem remunerado. Seria um alívio se fosse apenas isso. A mensagem e o áudio que ele enviou sugeriram uma realidade mais perturbadora: “Oi Nelson. Há quanto tempo, hein? Muito tempo mesmo. Tempo suficiente pra minha vida mudar, me distanciar desse mundo corriqueiro onde a gente vivia e entrar nessa loucura, perder minha alma… Precisava desabafar com alguém, tirar isso do peito. O que eu aprendi aqui… é terrível demais. Eu não aguento mais, quero cair fora. Dinheiro nenhum vale o peso de saber o que realmente move o mundo. E sinto que alguma coisa ruim vai me acontecer… Por isso preciso contar pra alguém! Não queria te envolver nisso, mas você é o meu amigo mais antigo. Talvez o único amigo que me resta, Nelson. Espero que o áudio que te enviei não lhe cause problemas, mas sinceramente, não tenho tanta certeza disso.

Filho da puta. Se meteu em algum esquema de corrupção e agora quer me sujar também! Ô país filho da puta! O cidadão não pode subir numa posição de prestígio e poder que já se mete em esquemas, falcatruas, desvio de verba… E ainda por cima estou automaticamente ligado a essa merda, seja lá o que isso for! Já conseguia ver tudo: Rastreariam a mensagem, eu seria indiciado, julgado, preso, perderia o pouco que conquistei até agora. Algum juizeco egocêntrico iria fazer fama e pose para capas de revistas às custas da minha vida, pegando um bucha como eu e dizendo que resolveu os problemas do Brasil com isso. Tudo porque o Rubinho achou que poderia desviar verba de pensões de viúvas ou da merenda de crianças carentes e ficar de boa. Filho da puta!

Possesso de raiva, dei play no áudio. Foi ainda mais perturbador que a mensagem de texto. Com uma voz estranhamente calma, Rubens começa a falar:

“Estamos cercados por magia. Não, é sério, pode reparar à sua volta! Essa aparência de inocuidade e monotonia não passa precisamente disso: Aparências, um grande engodo para ocultar de nós o que realmente se passa no mundo. Há uma série de operações mágicas ocorrendo debaixo dos nossos narizes. O. Tempo. Inteiro.

Os pactos com o demônio, tão famosos na idade média, eram firmados através de um contrato, onde o ‘solicitante’ empenhava a sua alma imortal em troca do desejo de seu coração. O que intermediava a entrega de sua alma em troca do que você desejava era um documento. Palavras em um papel. Essa é a base de tudo. E está em tudo. Ao nascer somos registrados, catalogados como uma coisa, um objeto qualquer. Eles não querem nos perder de vista e querem saber exatamente quantos de nós nascem a cada ano. Por isso a Certidão de Nascimento. Uma certidão de casamento é um documento alquímico perverso, unindo “até que a morte os separe” duas pessoas que não têm nada em comum ou sequer se gostam, pelos motivos errados. Ou ainda pior, o poder desse papel consegue reduzir duas pessoas que se amam a uma existência inexpressiva, numa rotina insípida e vazia, acabando com qualquer medida de amor que exista entre aquelas pessoas. Perverso.

Já os bancos? Ah, os bancos…. eles já sacaram isso tudo há muito tempo atrás. Já brincam assim há séculos! “Eu te amarro a mim, até o fim…“. Um contrato de empréstimo, por exemplo, é descarado: Um elaboradíssimo feitiço de amarração onde o tomador é amarrado e comprometido a pagar de volta o que pegou…. ou sofrer as devidas penalidades. Por meio de matemágica sombria, são forjados juros que, não importa o quanto você pague, a dívida nunca acaba! Multidões vivendo pra pagar uma dívida que não acaba nunca, e tomando um empréstimo para pagar outro. A mesma coisa com um contrato de habitação: Não pague as prestações de sua casa e veja a mágica acontecer… ABRACADABRA! Você está no olho da rua! A banca sempre ganha.

Comprar e vender sua vida. Posse. Amarração. Eles são os especialistas em amarrar pessoas por toda uma vida, sangrando todo o dinheiro que essa pessoa pode fazer direto para os bolsos deles. Poucas coisas são mais poderosas que Magia Financeira…

Documentos nada mais são do que feitiços lavrados em cartório. Somos regidos, ou melhor, dominados por magia sob uma fachada jurídica, o latim profano dos grimórios da Idade Média substituído pelo jurisdicês, os sacrifícios em altares substituídos pelas rodovias. Você sabia que a maioria das nossas autoestradas são projetadas pra passar por cima de linhas de Ley? Sabe, aquelas correntes de energia que passam por debaixo da terra, como se fossem um fluxo de poder que circula por todo o planeta? Eu sei, isso tá muito History Channel, mas continua me acompanhando, não sei quanto tempo tenho! Então, você constrói, digamos, a Via Light, a Linha Vermelha ou a BR-101, onde morrem bichos de pequeno e médio porte o tempo todo, e às vezes uma pessoa aqui e ali, todos os dias, certo? Toda aquela energia, aquele sangue… Isso é um grande ritual de sacrifício, poder nas pontas dos dedos todos os dias! Mas nas pontas dos dedos de quem??? Não se engane com os idiotas que são eleitos e dão um vexame por dia na TV e na Internet, os verdadeiros magos negros que controlam tudo estão muito bem ocultos nas sombras…

Os grandes bruxos e necromantes que dominaram, saquearam e aterrorizaram a Europa por séculos, cansados do Velho Mundo, vieram pra cá, entende? Nunca morreram na fogueira. Se refugiaram no Brasil Colônia, se tornaram as famílias mais influentes e têm literalmente passado de pai pra filho através de todos esses séculos. Essa é a tal meritocracia! Você possuir o corpo do seu filho ou do seu neto, dando continuidade a sua vida infindável de exploração, abusos, assassinatos, brincando de banco imobiliário com as vidas de toda uma população, por gerações e gerações! Eles forjaram uma descendência todo esse tempo, com suas esposas troféu, gerando filhos apenas pra terem um novo invólucro físico pra se manterem aqui, nos explorando eternamente! Um ritual de troca de corpos aqui, uma morte forjada de um patriarca ali e a vida parece seguir seu curso normal. Sabe aquela sensação de que nada nunca muda e evolui aqui? É porque nosso país está literalmente nas mãos das mesmas pessoas há mais de quinhentos anos! Eles são nossos donos e nossos mestres! O país é como é porque eles querem assim! Se a impressão que dá é de que somos governados por retrógrados, é porque é exatamente o que são: Oriundos de outra época! Os índios, massacrados até hoje, os negros escravizados até hoje… Nos salões do poder e nas festas de gala, tive que ouvi-los se lamuriando sobre um passado recente, uma época onde não faltavam “ovelhas para o abate de todos os tipos, raças, sexo e idade” e onde era fácil alguém desaparecer sob o pretexto de subversão e ameaça à soberania nacional. Eles diziam que nunca foi tão fácil sumir com alguém sem explicação quanto nos anos de chumbo. Eles têm saudade dessa época, e como eles aproveitaram!

Eles continuam gerindo seu grande ‘investimento’ e aproveitando a melhor vida possível às custas de nosso povo. De todos nós, Nelson! Como alguém pode compactuar com isso, continuar trabalhando para essas… coisas depois que vê o esquema todo? Quanto dinheiro é preciso para não se importar com uma verdade tão monstruosa, cara?

Estamos cercados por magia e as palavras TÊM poder. Trabalhei pra eles por muito tempo, mas não aguento mais! Eles nos tratam como seres inferiores! Como gado! Nós só existimos para eles lucrarem em cima nós, nos foder ou nos matar quando bem entendem! Eu acho que só tem um jeito…”

A frase é interrompida ao mesmo tempo que se ouve um estrondo – uma porta sendo arrombada? – seguido de um… zumbido. Uma quantidade descomunal de insetos zumbindo ao mesmo tempo, como se todo o ambiente tivesse sido preenchido por gafanhotos ou… moscas??? Mal consigo distinguir os gritos de Rubens, abafados pelo zumbido alto e mais alguns sons estranhos e indescritíveis. Volto esse trecho do áudio várias e várias vezes para tentar entender melhor o que se passa. Abaixo dos zumbidos, vozes roucas, estranhas, gargalhadas e… rugidos? Por fim, consigo distinguir os gritos de Rubens, como se ele estivesse sendo dilacerado por animais selvagens. Rubens, em que merda você se meteu? Pior, em que merda você ME meteu???

Ligo para o celular dele. Ninguém atende. Olho novamente o horário em que as mensagens foram enviadas. Três horas atrás. Começo a pensar, especular, imaginar cenários. Estou apavorado demais pra acreditar na história de Rubens, mas no fundo sei que era verdade, apesar de absurdo. O medo que Rubens queria esconder na voz, mas que acabou transparecendo me convenceu. O que era aquilo que pegou ele do lado de lá? Será que eles conseguem me localizar? Antes de terminar de mentalizar a pergunta, me senti um idiota: Eu tenho certidão de nascimento, RG, CPF… Eles sempre me tiveram nas mãos. A todos nós. Não consigo nem começar a sentir aquela sensação gélida de pavor quando ouço um zumbido atrás da porta de entrada do apartamento, cada vez mais forte…

Eduardo Cruz (@eduardo_cruz_80)

Contos da Zona são histórias escritas pelos membros da Zona Negativa, com o objetivo de expandirem a produção de conteúdo para além das resenhas. Assim sendo, esperamos proporcionar boas experiências de leituras e reflexões. Deixe seu comentário 🙂

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

12 comentários em “CONTOS DA ZONA: Conjurações.”

  1. Texto extremamente impactante e ao mesmo tempo esclarecedor!
    Estamos dentro de uma Matrix e a maioria da população não conseguirá sair dela!
    Ah!Também quero fazer um relato!
    Sou fã incondicional de Eduardo Cruz!
    Ethan!93!

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  2. Porra, gostei! Parabéns! Trabalha bem com o lance conspiratório e a escrita funciona! Só tenho uma observação: Ele é um conto veloz, ligeiro, perfeito para internet. Porém, se for publicá-lo em livro, tente torna-lo mais longo e mais lento ao apresentar esse mundo. Por exemplo, no lugar de se ser só uma mensagem apenas, que sejam várias em que Rubens revela com exemplos de casos. E que o narrador no começo não leva a sério, depois começa a ver lógica nos relatos e a liga-los com a vida prática. E, por fim, começa a se sentir observado, com figuras estranhas o encarando até o final descrito.

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    • Exatamente, optei por cortar nesse momento, pode ter acabado ali ou ser serializado, dando continuidade à história. Mas a verdade é que quanto mais escrevia, mais a história ficava densa. Isso pode virar um livro com relativa facilidade. Fico feliz que você tenha gostado !😉

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  3. Obrigado, professor!!!! Fico feliz por você ter lido e mais ainda por ter curtido! Só dei um tempero de horror para o nosso já horrível e cruel cotidiano.

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