CONTOS DA ZONA: Os Velhinhos do Santa Ana.

Menti pra conseguir o trabalho. Na verdade, nunca trabalhei com cuidadoria de idosos na vida, mas ei, a situação tá feia e parece que não vai melhorar tão cedo! Eu fiz o que precisava fazer pra conseguir um sustento minimamente digno. Era isso ou continuar engrossando a cada vez mais extensa fila de desempregados que todo esse caos tem gerado. Então, enfeitei meu currículo o melhor que pude, colocando os nomes de uns quatro asilos como minhas experiências anteriores no setor. Tomei o cuidado de só mencionar asilos que já fecharam, para não ser pego em uma checagem de referências. Deu certo. Fui contratado. Agora, era só ficar na minha e prestar atenção à rotina no lugar, e talvez eu conseguisse enganar pelo menos por um tempo, fingindo saber o que fazia ali. Mais uns meses de salário, talvez conseguir juntar algum dinheiro até ser descoberto e demitido. Melhor do que passar necessidade, não é?

Fui contratado pela Casa de Repouso Santa Ana, um asilo pequeno, próximo de onde eu moro. Asilo de gente humilde. Se a idéia de um asilo ou casa de repouso já é triste, imagina um asilo onde as pessoas que nunca conseguiram conquistar nada na vida vêm pra morrer. Definitivamente, você percebe, depois de trabalhar ali um dia ou dois, que é um lugar onde quem não serve mais pra dar lucro ao sistema é jogado fora, abandonado para morrer ‘humanamente’. Li em algum lugar por aí que chamam isso de ‘Necropolítica‘. Faz sentido se a gente levar em conta o jeito como a saúde funciona no país. No Brasil, tudo parece ser feito pra matar os mais necessitados. Da maternidade ao asilo. Esse país realmente não é para amadores. Li numa revista uma vez, uns ecologistas dizendo que nossa sociedade produz muito lixo, joga muita coisa fora, gera muito desperdício. Mas ninguém parece lembrar das vidas que são jogadas fora todos os dias. As pessoas são usadas como coisas e jogadas fora assim que ‘pifam’ ou deixam de ser produtivas pra alguém. Lamentável.

Não digo que quem trabalhe nesses asilos seja tão indiferente quanto o próprio sistema em relação e esses velhinhos. Muito pelo contrário. Trabalhando no Santa Ana descobri uma nova categoria de heróis: Os cuidadores. Eles são mal remunerados, as condições de trabalho são precárias e do jeito que as coisas andam, tudo vai piorar antes de melhorar. E mesmo assim a grande maioria deles tem uma paciência e carinho enormes, apesar de todas as condições os empurrarem para um tratamento desumano como cuidadores. Eu fazia exatamente como eles, para manter minha fachada de ‘profissional experiente’ no ramo. Olhava e dava o meu melhor para imitar os procedimentos com segurança e até um ar de tédio pra sugerir anos e anos de prática repetitiva. Acabei fazendo amizade com um desses ‘heróis’ depois de alguns dias de trabalho. Tião era velho. Bom, não tanto quanto os velhinhos de quem nós cuidávamos, mas ainda assim parecia beirar os setenta. Dizia trabalhar no Santa Ana desde que foi inaugurado, não sei há quantos anos atrás. Era difícil dizer, já que ele exibia um vigor, tanto na voz quanto nos movimentos, sempre ágil e bem disposto, mas era inevitável pensar que dali a poucos anos seria a vez de ele próprio ser um dos hóspedes do Santa Ana. Dividíamos o mesmo turno, das 23h às 7 da manhã. Além de nós dois, havia somente uma enfermeira de plantão e um vigia. Se acontecesse qualquer emergência no meio da noite, ligávamos para a emergência e o hospital municipal despachava uma ambulância disponível. Por se tratar de pessoas bem idosas, naturalmente, alguns velhinhos não retornavam do atendimento de emergência. Vida que segue. Essa era a nossa rotina.

Quando eu era garoto, sempre passava em frente ao Santa Ana, a caminho da escola, fosse a pé ou de ônibus, do lado de fora do portão. O asilo era uma grande casa que foi adaptada, com alpendres amplos em três dos quatro lados da casa, e com os velhinhos sempre lá durante o dia, sentados em cadeiras ou andando pelo grande quintal de terra batida. De frente para um dos lados da casa se estendia um pedaço de mata que ia até os fundos da casa e tomava quase todo o quarteirão. A casa onde o asilo funcionava poderia até ser grande, mas a área verde do local era impressionantemente enorme, com muitas árvores altas, que se de dia já encobriam boa parte do sol, à noite faziam tudo ali dentro ser de uma escuridão perturbadora.

Como eu comentei antes, os idosos costumavam fazer pequenas caminhadas pelo quintal de terra ao redor da casa, mas eu achava que nenhum deles se aventurava no trecho com mata. Quer dizer, pensei isso pelas primeiras oito noites em que trabalhei lá. Na nona noite, lua minguante alta no céu, noite escura, tudo sossegado, parei na varanda para um cigarro. Eram 3:12 da madrugada, eu estava no meio do meu turno, entre uma tragada e outra, quase terminando para voltar lá pra dentro e encarar a outra metade do meu turno, quando ouvi som de farfalhar na mata, passos pisando nas folhas secas e uma voz rouca. Claramente eram passos, infelizmente nítidos o bastante para não deixar dúvidas. Ritmados, pesados, lentos. Senti um arrepio na nuca, e lembrei de meu avô, em seus últimos anos de vida.

Por conta de uma senilidade que evoluiu rapidamente, tornando ele um estranho para a própria família e vice versa, ele acordava no meio da madrugada, destrancava a porta e ia vagar pelas ruas do bairro, até ser encontrado pelos vizinhos e levado de volta para casa. Achei que era isso que se passava ali, então ignorei o arrepio elétrico no pescoço, tomei coragem e me embrenhei na mata, usando a lanterna do celular para andar pelo caminho. Não andei muito quando vi, à luz da lanterna do celular, a silhueta pálida e encolhida de dona Olga, uma das hóspedes, uma senhora que já havia passado dos noventa anos de idade. Achei esquisito: Quando comecei a trabalhar no Santa Ana, Dona Olga estava debilitada e mal se levantava da cama para fazer suas necessidades e tomar banho, e mesmo assim ela estava ali, no meio do mato, balbuciando para si mesma, não parecendo ter me notado, e a mais de duzentos metros de sua cama. Mas o que me perturbou de verdade e me fez sentir um arrepio gelado por todo o corpo foi lembrar que dona Olga havia morrido duas noites antes.

***

Não lembro se corri de volta para o asilo ou se fui encontrado na mata e carregado pra fora de lá. Só lembro de ver Tião com uma expressão sorridente e tranquilizadora, como se soubesse o que tinha me acontecido. “Você viu um dos velhinhos, não é?” ele perguntou em um tom simpático, como se aquilo não tivesse sido nada demais, eu ter visto uma pessoa morta de pé na minha frente. Talvez por causa da cara que devo ter feito quando disse isso, Tião continuou: “Seguinte, garoto… as pessoas aqui são muito debilitadas. É a mente, sabe? A única coisa que sobrevive depois da morte… e a deles, nesse fim de vida, coitados, não tá funcionando nada bem. Primeiro, uma vida inteira sofrendo, passando necessidade, tristeza, para depois, na velhice, o abandono, senilidade, demência, esclerose múltipla, Alzheimer… É tanta coisa… E morrer assim deve ser bem confuso né? Acho que até eles perceberem que não são mais matéria e entenderem o que aconteceu, ainda ficam zanzando por aqui e podem assustar os outros heheheheheh….“, disse ele, meio que se divertindo às minhas custas.

Pensei em pedir demissão na hora, mas pensei nas contas que tinha pra pagar e o jeito como Tião enxergava as coisas… Não podia ser tão terrível assim. “É só ter nervos de aço e manter a cabeça no lugar“, eu repetia pra mim mesmo. “Os mortos não podem machucar os vivos“, eu repetia pra mim mesmo. Aposto que quem trabalha no IML deve ver coisa parecida o tempo todo. E eu preciso trabalhar! Não posso me dar ao luxo de pular fora por medo! “Os mortos não podem machucar os vivos, os mortos não podem machucar os vivos…“, era meu mantra durante as madrugadas no meu turno no Santa Ana.

Nos meses seguintes aquilo virou uma rotina pra mim: Cada idoso que falecia se fazia notar alguns dias depois, vagando pelo matagal. Ninguém além de mim e Tião parecia se dar conta disso. Se alguém mais sabia que os tais velhinhos vagando de madrugada eram residentes já falecidos, continuaram de bico calado, fingindo não existir fantasmas no mundinho deles. Apesar da tranquilidade de Tião em relação ao assunto, minha perturbação interna não passava. Ao contrário, só piorava. Não tirava mais pausas pro cigarro, só saía do asilo na hora de ir embora já com o sol nascendo, e o pior de tudo é que não se limitava mais ao asilo: Em casa ou qualquer outro lugar onde estivesse sozinho, pairava aquela sensação de estar sendo vigiado. Uma sensação de opressão que se intensificava quando estava sozinho, a qualquer hora do dia ou da noite. Mas que aumentava de intensidade mesmo era nas madrugadas de plantão no santa Ana. Talvez eu tenha que admitir que pode ser culpa. Vejam, eu não conseguia suportar tanto sofrimento e desdém, precisava fazer alguma coisa, mas sou tão Zé-Ninguém quanto eles. Como posso ajudá-los se mal consigo me manter? Bom, achei que sabia como poupar esses velhinhos de todo esse sofrimento.

O que gera um fantasma? Quais são as condições necessárias? Morte violenta, sofrimento, mágoa, negócios não concluídos em vida… viver nessa realidade cheia de injustiça e desigualdade…. me espanta não estarmos todos afogados no meio de infinitos espíritos raivosos… E apesar de toda a confusão mental, acho que o que foi decisivo pra isso predominar foi a mágoa por eu ter sufocado alguns deles. Não fiz por mal. Eu realmente me compadecia e queria aliviar o sofrimento deles. Não aguentava mais vê-los assim, jogados fora como uma ferramenta quebrada depois de uma vida inteira de exploração. Não é que eu seja psicopata ou algo do tipo, só achei que a morte seria uma alternativa a esse fim de vida deprimente a que essas pessoas foram submetidas. Eu não tinha esse direito, eu sei, mas realmente acreditei que minhas boas intenções fossem o atenuante pros meus atos. E fiz com dona Matilde. E com seu Adélio. E seu Francisco. E dona Luizita (que senhorinha doce!) e vários outros, ao ponto de levantar suspeitas no asilo. Tentei poupar cada um dos velhinhos de mais um minuto de tristeza sequer. Por alguns meses fui o Anjo da Morte no Santa Ana, mas chega. Pedi demissão. Não vou ser preso por tentar livrar as pessoas da sua miséria e, principalmente, cansei de ser assombrado.

***

Agora eles vêm até mim à noite, me observando em silêncio, parados no meu quintal. Cada vez mais a cada noite. Onze deles, pra ser mais exato. Todos que eu achava ter ajudado. Alguns choram em silêncio, como num filme mudo, soluçando sem emitir som nenhum, mas a maioria deles tem uma expressão raivosa. Eu tinha a melhor das intenções. Só queria acabar com a dor deles, mas parece que eles não gostaram nem um pouco da maneira como fiz isso. Mais assustador do que ver o fantasma pálido de alguém metros à sua frente é ver sua expressão de raiva e os olhos vazios, fervendo de ódio, conscientes de que foram mortos por você. Mas Tião era o único que falava.

Ele disse em uma voz firme e carregada de ódio: “Viemos te buscar, desgraçado. O Anjo da Morte não gosta de quem se mete a fazer o serviço dele!

Comecei a repetir pra mim mesmo: “Os mortos não podem machucar os vivos, os mortos não podem machucar os vivos, os mortos não podem machucar os vivos!”. Só parei quando senti um cheiro intenso de podridão e, ao mesmo tempo, um puxão forte nos cabelos. Meus olhos se enchem d’água com a dor. A visão embaça. Alguém, ou algo, me puxava por trás, e eu não fazia ideia de pra onde estava sendo levado… Só tinha certeza absoluta de que não teria um minuto de repouso.

Eduardo Cruz (@eduardo_cruz_80)

Contos da Zona são histórias escritas pelos membros da Zona Negativa, com o objetivo de expandirem a produção de conteúdo para além das resenhas. Assim sendo, esperamos proporcionar boas experiências de leituras e reflexões. Deixe seu comentário 🙂

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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