Feiticeiro de Aluguel e o Álamoverso, ou “A cara do Pulp brasileiro em 2020”

Cumprindo sua função social, A Zona Negativa traz mais um artista que vocês realmente deveriam fazer o favor a si mesmos de conhecer mais a fundo. Jean Gabriel Álamo é um escritor nascido e residente em Juiz de Fora, Minas Gerais, e talvez vocês nunca tenham ouvido falar desse ilustre cidadão, mas desse momento em diante, atentem bem para esse nome, em especial se vocês são entusiastas de ficção científica, horror cósmico, weird fiction, steampunk…. Sim, estamos falando de um autor versátil que transita bem entre todos esses gêneros e que certamente tem tudo para agradar os leitores desses nichos!

Jean Gabriel Álamo

Meu primeiro contato com Jean Gabriel foi em um grupo de whatsapp de autores de weird fiction, e após uma rápida conversa, ele me enviou alguns contos de sua autoria, todos de seu personagem mais emblemático, o Feiticeiro de Aluguel. As histórias do Feiticeiro de Aluguel têm uma ambientação soturna de fantasia urbana e contam, em pequenas histórias fechadas que podem ser lidas em qualquer ordem, o cotidiano de Iago Lima: Bruxo, carioca, negro e bissexual, Iago vende seus serviços como magista a quem precisa ter seus problemas de ordem sobrenatural resolvidos com rapidez e discrição. Nesse cenário, a magia é sempre algo sutil, embora interfira ativamente na realidade. As histórias se mostram um terreno fértil onde o autor malandramente se vale das mais diversas crenças religiosas e místicas para levantar discussões sobre problemas sociais no cotidiano brasileiro. Algo como Hellblazer na madrugada carioca adentro, mas com doses ainda mais generosas de violência e sexo.

Iago odiava ser chamado de “feiticeiro”. Um feiticeiro era alguém sem compreensão de magia, que apenas repetia fórmulas prontas de feitiços. Iago, por outro lado, sendo alguém que compreendia a natureza da magia e seu funcionamento de uma fórmula mais ampla, era considerado um bruxo, estando abaixo apenas de um mago.

Feiticeiro de Aluguel – Noite em Neon

A prosa de Jean Gabriel é ágil, fluida e plena de referências, tanto à cidade do Rio de Janeiro, cenário onde se ambientam a maioria das histórias do personagem – e onde o autor morou por algum tempo, bem como o conhecimento arcano que o autor desfia de forma bastante criativa em suas páginas. Sigilos, egrégoras, choque de retorno, magia do caos, servidores…. termos não tão familiares assim para quem nunca leu sobre magia e ocultismo, mas para quem já travou contato com esse tipo de informação é um deleite ver tais conceitos sendo utilizados tão competentemente em um enredo de fantasia urbana. Além disso, o autor utiliza muito bem o noir em suas histórias, assim como suspense, algum humor negro – porque ninguém é de ferro! – e muita, mas muita crítica social, sempre pontual, certeira e ácida!

Por isso não vão concluindo se tratar de um mero rip off tupiniquim de John Constantine! Iago Lima, o Feiticeiro de Aluguel, é uma criação com uma identidade própria, intenso e vibrante, contestador e agente efetivo para levantar discussões como racismo estrutural, fanatismo religioso, abuso infantil, entre outros temas espinhosos sem ser ‘engachato’, panfletário e sem forçar a barra.

Frequentemente, ele se perguntava se o fato de ser um homem negro e o racismo implantado na sociedade tinham a ver com aquele tipo de confusão, fazendo pessoas brancas frequentemente acharem de forma inconsciente que um homem de pele escura não poderia ser um grande conhecedor de qualquer coisa.
Em sua percepção social, nenhum homem branco, ao ver um negro, imaginava à primeira vista que pudesse se tratar de um professor, um médico, um advogado, um engenheiro ou, tratando-se dos meios ocultistas, algo mais que um feiticeiro. A visão era sempre de que o negro era alguém inferior.

Feiticeiro de Aluguel – Noite em Neon

Além dos contos já publicados do Feiticeiro de Aluguel, Jean Gabriel já adianta que em 2021 tem mais Iago Lima! Feiticeiro de Aluguel – Ponta da Praia vem aí e parece ser a história mais ambiciosa do personagem até agora, em uma trama que além de envolver personagens e elementos das histórias anteriores, trará, segundo o próprio autor, “espionagem, bruxos nazistas, fake news das mais descabidas, Ashtar Sheran, Januário Sete Orelhas, budistas tibetanos, hacktivistas, crescimento de poder das milícias, execução de políticos de oposição em vias públicas, vampiros, Registros Akáshicos, Anansi, lendas urbanas, fadas travestis, fantasmas da Ditadura Militar em busca de vingança contra seus executores, experimentos científicos durante a Guerra Fria e seus reflexos em torturas no Brasil durante os Anos de Chumbo“. Ainda em 2021 também teremos Feiticeiro de Aluguel: Contra o Chupa-Cu (!!!). Quem viver lerá.

Jean Gabriel Álamo no Álamoverso

Mas para além do Feiticeiro de Aluguel existe ainda todo um universo saído da mente prolixa e afiada de Jean Gabriel. O autor criou o que eu acabei batizando carinhosamente de “Álamoverso“: Uma bibliografia que já contabiliza algo em torno de 18 histórias, divididas entre romances e contos, todas ambientadas em um intrincado universo compartilhado que conta com histórias com ambientação desde o passado primordial até o futuro longínquo e que abarca subgêneros literários que vão da ficção científica, fantasia urbana, espada e feitiçaria, steampunk e horror cósmico, abrindo um amplo leque que não é qualquer autor que consegue manter – com qualidade -, sem deixar a bola cair e sem descaracterizar a voz do autor.

Os e-books de Jean Gabriel estão disponíveis AQUI.

— Joga mancala awelé?
— Apenas o suficiente para matar o tempo.
— Pois é tempo que apostaremos então!
— Apenas tempo?
— E existe coisa mais preciosa nesse mundo?
— Ouro, poder, as mulheres em seu colo…
— Tudo isso é obtido às custas de tempo, seu ou dos outros. Tudo isso pode ser perdido e recuperado, mas não o tempo. O tempo é a única riqueza que está sempre acabando e cujo investimento deve sempre valer a pena.

A Cidade Sob As estrelas

Um Autor Polivalente…

Acharam pouco? E se eu falar que o cara ainda é revisor e diagramador freelance e edita a própria revista??? A antologia de contos Literatura Fantástica é uma revista eletrônica que sinaliza ser o novo pulp nacional. A publicação, que em sua primeira edição conta com impressionante 800 páginas e mais de 50 (!!!!) contos de diversos autores independentes, estava em vias de conclusão da segunda edição até o fechamento desse texto, e talvez seja a publicação mais diversificada do gênero atualmente, o que em tempos de crise do mercado editorial, é uma bela façanha!

— E ninguém sofreria.
— Malarã deu outro sorriso dourado.
— Veja bem: todos os seres humanos, ao longo da vida, passam por mais sofrimentos do que alegrias. As pessoas que recebem mais benefícios do que sofrimentos tendem a sofrer porque as alegrias perdem o sabor. Para elas, a felicidade passa a existir perante outro referencial. A verdade é: você pode se sentir feliz por algumas horas, dias, semanas, meses ou, com muita sorte, até mesmo anos; porém, para tal coisa, os sofrimentos em sua vida precisarão pesar mais. E a balança sempre pesará mais para experiências ruins.
— Qual o sentido da vida então? — Hastur perguntou.
— O tempo — respondeu Malarã.
— Cabe a nós administrarmos o investimento que faremos com o tempo para obtermos o que queremos. O investimento de tempo para nos realizarmos.

A Cidade Sob As estrelas
Literatura Fantástica, a revista editada por Jean Gabriel

Um bate-bola com Jean Gabriel Álamo

Resolvemos incomodar Jean Gabriel um pouquinho mais pra arrancar dele o segredo de tanta produtividade. O resultado é essa rápida entrevista. Rápida mesmo, porque adivinhem? O cara tava muito ocupado realizando a manutenção de todo um universo! Ei, tá achando que é moleza???

Zona Negativa: E aí, belezinha? Fala um pouco sobre você, como você começou a se perceber como um contador de histórias, suas influências, seus livros de cabeceira? O que você tá sempre relendo?

Jean Gabriel Álamo: Eu tinha 9 anos de idade, e como muitos escritores ligados ao Fantástico, ao ter meu contato com a trilogia de livros O Senhor dos Anéis, acabou caindo a ficha de que eu não queria fazer qualquer coisa da vida que não fosse trabalhar com literatura. E, para me satisfazer neste ponto, eu logo entendi que queria trabalhar tanto como escritor quanto editor. Então o que eu faço hoje acaba sendo a realização de um sonho de criança. Porém, os livros que mais me influenciaram estão longe da seara da ficção. Eu sou um consumidor ativo de filosofia, e estou sempre relendo A Gaia Ciência, de Nietzsche; The Conspiracy Against the Human Race, de Thomas Ligotti (sem tradução para o português); Os Ensaios, de Montaigne. Principalmente com Thomas Ligotti e Montaigne, sempre que releio, assimilo alguma nova camada.
Em termos de prosa, porém, eu diria que minhas maiores influências são Rubem Fonseca, Tibor Moricz, Patricia Mello, Oghan N’Thanda, Alfredo Alvarenga, Clinton Davisson e outros autores nacionais.

ZN: Como se deu a construção de todo esse universo de histórias compartilhadas? Foi algo concebido, digamos, como um grande quadro, ou você simplesmente foi criando as peças e interconectando numa estrutura maior?

JGA: Eu tinha 12 anos, sabia que queria ser escritor, mas não estava muito certo, até aquele momento, do que fazer. Meu pai era o tipo do cara que se dizia espiritualizado, mas cometia todo tipo de abuso contra as pessoas ao seu redor. Ao mesmo tempo, ele era um consumidor ativo de teorias de conspiração, principalmente quando possuíam um verniz espiritualista. Entre as favoritas dele, estava a crença dos Exilados de Capella, um livro canônico do Espiritismo que eu considerava extremamente problemático em questões raciais já naquela época. Porém, como ficção, eu enxergava um potencial ali. Foi quando percebi que eu poderia pegar tanto teorias de conspiração quanto a realidade ao meu redor para trabalhar num roteiro. Porém, o roteiro que eu queria trabalhar acabou ficando colossal, em termos de tamanho, dentro do meu planejamento. Ao mesmo tempo, havia potencial para histórias menores, que caberiam em livros e contos. Então passei anos reestruturando a ideia original para funcionar como um grande universo literário. Nele, você encontra todo tipo de conspiração, espiritual ou não, diversos problemas sociais, um pouco das revoltas que cada um tem em relação ao próprio país, bem como outros elementos que convergem para temas que eu sempre gostei, tais quais Ciência e Ocultismo. Por mais que um pareça contradizer o outro.

ZN: Com relação à revista Literatura Fantástica, existem planos de se expandir o alcance da publicação? Alguma chance de exemplares físicos através de campanhas especiais de financiamento coletivo, algo nesse sentido?

JGA: Qualquer coisa nesse sentido descaracterizaria o fator econômico do pulp, que é a espinha dorsal do conceito de pulp fiction. Se eu fosse lançar uma edição física hoje com os recursos que tenho à mão, ela não sairia por menos de R$ 85,00. Afinal, são mais de oitocentas páginas e com algumas ilustrações em cores, o que encarece ainda mais o processo. Porém, existe a ideia de, daqui a alguns anos, reunir os contos mais elogiados e comentados, colocar todos numa edição física e lançar, direcionando 100% dos royalties aos autores.

ZN: Alguma dica ou alerta pra quem, como você, tem todo um universo de histórias pra botar no papel e não sabe por onde começar?

JGA: Vários, e eu poderia alertar a todos os percalços possíveis, mas cada trajetória é uma, e os desafios podem ser diversos. Mas existem três denominadores comuns a todo autor:

1) Passe longe das editoras e foque na publicação independente. A maior parte das editoras fará questão de restringir direitos de uso dos elementos na sua obra, o que inclui personagens, conceitos sobrenaturais e científicos que você elaborou, eventos narrados, etc… A restrição de direitos costuma durar entre 2 e 5 anos, o que representa um atraso imenso no andamento do seu universo. Compensa mais você pagar do próprio bolso todo o processo, e hoje existem alternativas muito baratas para isso, do que pagar caro com o seu nome lá na frente. E lidar com editoras ainda costuma ter o problema de o editor forçar modificações que criam problemas de coesão interna no seu universo. Quase todo leitor que passar a acompanhar seu universo literário ativamente fará questão de não encontrar a mínima contradição entre uma obra e outra. Se você cede ao editor, esses problemas inevitavelmente surgem, seja numa escala maior ou menor.

2) Aprenda a divulgar suas próprias histórias. Mesmo que você publique numa editora, descobrirá que essa é uma habilidade extremamente necessária. Quantas vezes em relação a autores estrangeiros você vê um autor nacional recebendo marketing ativo de uma editora? É raro, e os poucos nomes que recebem algum marketing são aqueles que ralaram muito para divulgar suas próprias obras ao longo da maior parte de suas carreiras.

3) Conheça seus limites como autor e os limites do universo. Hemingway dizia que devemos escrever somente sobre aquilo que conhecemos. Portanto, planeje e estruture seu universo sem qualquer pressa. Eu planejei meu universo ao longo de 12 anos até saber o que eu queria fazer. E, como diria Nic Pizzolato, quanto mais decidido sobre o que você quer fazer numa história, mais livre você é para fazer o que quiser com ela. Portanto, tenha muita certeza de cada elemento principal deste universo. Com isso, você saberá o que criar e para onde ir com cada coisa, respeitando seus próprios limites e os limites de aceitação do leitor.

ZN: Pra terminar, pode falar alguma coisa do que o futuro reserva para o Álamoverso? Pra que direção vai um autor que começa seu ofício já concebendo todo um universo? Qual é a próxima fronteira a ser cruzada?

JGA: Eu darei continuidade às histórias do Feiticeiro de Aluguel por mais alguns anos. Enquanto isso, publicarei algumas histórias de steampunk, cyberpunk e fantasia urbana antes de dar o próximo passo, que é meu projeto mais ambicioso. No começo dessa entrevista, falei sobre como surgiu a ideia deste universo com o qual trabalho. Quero dar andamento a uma série planejada para 35 livros que começará no contexto da Guerra Fria, passará pelos dias atuais e dará prosseguimento até alcançar um futuro muito distante. Batizei esta série de Exilados, e considero tanto o meu projeto mais ambicioso quanto a espinha dorsal deste universo. Enquanto a saga tiver andamento, a partir de 2022, a ideia é ir publicando alguns livros e contos variados.

A Zona Negativa se compromete a ajudar a quebrar a resistência que parece existir em relação a autores nacionais que publicam de forma independente, em especial aqueles que, como Jean Gabriel Álamo, têm muito a acrescentar ao panorama de ficção nacional. Todas as obras citadas nesse texto podem ser encontradas em formato e-book nas melhores livrarias online e por um preço simbólico, com um custo-benefício maior do que aqueles salgadinhos horríveis fritos com óleo de 32 reusos e resíduos de barata no recheio que vocês compram a quilo nas pastelarias do china pra entupirem as artérias. Pelo menos aqui vocês têm a garantia da Zona de que seu dinheirinho suado, além de pagar por entretenimento de alto nível, não oferece riscos à sua saúde heheheheh…

Tanto faz a pronúncia – dissera Iago na ocasião, ao telefone. – Pelo que lembro da história, Cthulhu é o que as pessoas balbuciavam enquanto dormiam ou estavam em transe, sei lá. Como qualquer nome balbuciado serve, eu chamo de Cleiton mesmo. Nunca fui muito fã de Lovecraft.

Feiticeiro de Aluguel – O Chamado de Cleiton

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Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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