GRANDES CONTOS, de H. P. Lovecraft, ou “Meu amor, o Inominavelmente Indescritível e Abominável Horror Rastejante”

A literatura de horror ocidental teve um ponto de virada no início do século XX, quando houve uma transição do horror gótico para o horror cósmico, e isso se deu quase que graças a um escritor somente: Howard Philips Lovecraft (ou agápê Lovecraft pros íntimos rs). Essa virada aconteceu a partir do momento em que alguns autores de horror passaram a não mais basear suas histórias em mitos e lendas, no folclore ou em qualquer outra base já existente, mas sim criar do zero toda uma cosmogonia onde o ser humano tinha muito pouca ou nenhuma relevância, e onde criaturas de proporções e poderes incomensuráveis, comparáveis a deuses eram o horror absoluto, ampliando em muito o escopo e o alcance do gênero, levando o horror a um direcionamento impensado até então. Nas palavras do próprio Lovecraft: “As efabulações sobre temas mundanos e o lugar-comum não satisfazem as mentes mais criativas e sequiosas de novos estímulos”.

Como muitos artistas que não tiveram reconhecimento em vida, mas postumamente se tornaram referências incontestáveis em suas respectivas áreas, como Van Gogh, Oscar Wilde, Edgar Allan Poe, Rembrandt, entre outros, o legado de H. P. Lovecraft está cada vez mais popular. Considerado um dos escritores mais influentes do século XX, foi um dos fundadores do nicho de Horror Cósmico, ou Cosmicismo, junto com autores como August Derleth, Robert Bloch, Frank Belknap Long e Robert E. Howard, com quem trocava muitas correspondências, e ajudou originar uma espécie de universo compartilhado que hoje conhecemos como “Os Mitos de Cthulhu”. A popularidade de Lovecraft só cresce, apesar de já termos deixado o século XX para trás faz alguns anos, mas sua presença ainda se faz sentir, direta ou indiretamente no cinema, videogames, quadrinhos, RPGs, card games e até na música! Se não o era antes, nos dias atuais H. P. Lovecraft é leitura obrigatória em matéria de horror, a fonte onde muitos nichos da cultura pop bebem até hoje para produzir horror impactante e de qualidade.

Cthulhu, o filho mais famoso de Lovecraft

O Horror Cósmico é um nicho literário que retrata o universo como um lugar vasto e hostil, ou na melhor das hipóteses, indiferente ao ser humano. Conceitos como civilização, amor, democracia, IPTU, religião, família, hambúrguer gourmet, guerra, ascensão profissional, gasolina barata, amor verdadeiro, política, sexo…. esqueça! Em uma história de Lovecraft percebemos a total indiferença a qualquer crença, ideologia ou atividade humana, e o próprio lugar do ser humano no universo é irrelevante. Tais conceitos e construtos sociais são como uma pequena jangada no oceano turbulento e caótico que é o universo. Por essa mesma razão Lovecraft não é indicado para qualquer pessoa que simplesmente goste de ler. Suas histórias geralmente são carregadas de cinismo, nada romantizadas e com um alto teor de pessimismo, onde além do horror gráfico, não raro vivenciamos situações de horror psicológico nas tramas, e sua ambientação lenta que conduz a um ápice (melhor dizendo, à beira do abismo ;>)) quase sempre desastroso e com muito terror psicológico são mais uma razão para afirmarmos que a prosa de Lovecraft não é para qualquer leitor.

É claro que não estamos sozinhos em um universo Lovecraftiano tão vasto e hostil: essa oposição direta a valores como o Iluminismo e o Humanismo traz a reboque a noção de que dividimos nosso espaço neste universo com entidades, seres e monstros ancestrais, um verdadeiro panteão de criaturas extradimensionais – a maioria delas com propósitos insondáveis à nossa compreensão – algumas mais antigas do que a própria humanidade, algumas tão poderosas que foram cultuadas como deuses por humanos no passado, tendo reinado sobre a Terra há milhões de anos atrás. Algumas apenas dormentes, esperando o momento de retornar e reclamar nosso mundo para si novamente. Essas sim as verdadeiras responsáveis por intervenções tanto entre os humanos, quanto no restante do universo. Não somos donos de nossos próprios destinos, e segundo Lovecraft, até mesmo a criação de nossa espécie é trabalho desses seres! Seus protagonistas, geralmente jogados de encontro a revelações dessa amplitude acabam enlouquecendo ou recorrendo ao suicídio, tamanho o abalo que tais conhecimentos provocam na psique frágil dos indivíduos.

E por falar em conhecimentos que podem destruir, não posso esquecer de mencionar a criação mais famosa de Lovecraft, depois do próprio Cthulhu, o livro profano Necronomicon. O antigo tomo cheio de conhecimento blasfemo que incautos costumam usar para invocar essas entidades, e cujo desfecho sempre é trágico foi mais uma contribuição para a construção dos Mitos de Cthulhu, termo cunhado após a morte de Lovecraft pelo escritor August Derleth. Posteriormente, o Necronomicon deixou de ser um elemento usado apenas por Lovecraft e seus amigos escritores, e hoje encontra-se agregado na cultura pop, com maior destaque para os filmes de Evil Dead, de Sam “Homem Aranha que vale” Raimi. O Necronomicon foi tão bem inserido nos Mitos de Cthulhu, e posteriormente na cultura pop (Lovecraft inclusive escreveu um falso ensaio sobre as origens do livro!) que até hoje alguns acreditam que este livro realmente existe, e sendo autêntico ou não, pode-se comprar um exemplar no Ebay e até mesmo no Mercado Livre.

Acima, alguns dos Necronomicon “legítimos” que circulam pelas internetes…

O Necronomicon de Evil Dead

Essas são as principais razões para o trabalho de Lovecraft ser considerado tão singularmente sólido em termos técnicos e em qualidade também, com muita consistência e atenção aos elementos inseridos nas tramas, principalmente os de cunho psicológico, a grande cartada na obra do escritor.

Esse meme resume bem o que é uma história de H. P. Lovecraft:
“E eles viveram felizes par… BRINCADEIRA, ELES TODOS MORRERAM OU ENLOUQUECERAM”

No exterior, o reconhecimento póstumo a Lovecraft já existe há décadas, e cada vez que eu entrava no site da Amazon ou dava uma olhada na seção de livros importados da Livraria Cultura, me batia uma certa tristeza, afinal lá fora existem edições imensas e completas da obra de Lovecraft, algumas com anotações de rodapé que oferecem informações que enriquecem muito o entendimento do leitor com relação a detalhes obscuros, inclusive em relação ao contexto sócio cultural da época em que a história foi escrita. Entre as mais impressionantes, posso citar “The New Annotaded H. P. Lovecraft”, com prefácio de Alan Moore! Já aqui no Brasil a situação é um pouco mais limitada. Fora a Editora Iluminuras, que lançou alguns volumes no final dos anos 90, a independente Clock House, que lançou um livrão robusto de contos do autor, porém com uma divulgação pequena, já esgotado, e mais recentemente os livros da editora Hedra, com belos acabamentos gráficos, nunca tivemos tanto H. P. Lovecraft quanto gostaríamos em nossas prateleiras.

Uma compilação norte-americana com introdução do Barbruxão em pessoa

Mas ao que parece, alguma mente iluminada por Azatoth na editora Martin Claret se deu conta dessa carência, e em um único lançamento retificou essa mancada do mercado editorial brasileiro com essa magnífica compilação. A antologia “Grandes Contos” é um tijolo impressionante, seja pelo seu número de páginas (quase 1100!), seja pelo seu acabamento em capa dura, seja pelo nível na seleção das histórias. Muito do que Lovecraft produziu de relevante, inclusive vários poemas e alguns ensaios, constam nesta edição, num total de 45 trabalhos do autor. Além da capa, com uma ilustração bem adequada ao tema, onde predomina um tom de amarelo doentio e com os indefectíveis tentáculos de Cthulhu se insinuando pelos cantos e pelas sombras da ilustração, as páginas internas – com um papel de gramatura excelente – são tingidas de verde nas extremidades, o que provoca uma associação imediata aos tais livros arcanos e blasfemos que vez por outra Lovecraft cita em suas histórias. Nota 10 para esse acabamento gráfico!

Os contos que integram esse tijolão monstruoso são:

A fera na caverna
O alquimista
A tumba
Dagon
Além das muralhas do sono
Old Bugs
A transição de Juan Romero
A Nau Branca
A Rua
A maldição que atingiu Sarnath
A árvore
Os gatos de Ulthar
Do além
Nyarlathotep
O pântano da Lua
Os outros deuses
A música de Erich Zann
Hipnos
O que vem com a Lua
Azathoth
Entre as paredes de Eryx
O cão de caça
O medo à espreita
O festival
Debaixo das Pirâmides
O horror em Red Hook
O chamado de Cthulhu
A chave de prata
A estranha casa alta na névoa
A busca onírica da desconhecida Kadath
O caso de Charles Dexter Ward
A cor que veio do espaço
O descendente
A história do Necronomicon
O povo antigo
O horror em Dunwich
Nas montanhas da loucura
A sombra sobre Innsmouth
Através dos portais da chave de prata
O perverso clérigo
O livro
A sombra vinda do tempo
O Assombrador das trevas
O navio misterioso
O horror sobrenatural na literatura

Eu poderia até reclamar um pouco, dizendo que ficaram de fora contos sensacionais, como por exemplo Herbert West – Reanimador e O modelo de Pickman, mas com um livro caprichado assim, com essa quantidade de contos reunida em um único volume e com esse acabamento gráfico belíssimo, sinto até uma ponta de culpa de reclamar, então esqueçam que eu disse isso! O horror de Dunwich, A sombra sobre Innsmouth, A sombra vinda do tempo, Nas montanhas da loucura, O caso de Charles Dexter Ward e A cor que veio do espaço compilados em um mesmo tomo já fazem dessa coletânea algo excepcional!

A intimidadora lombada de Grandes Contos…

Então é isso aí, seus Shoggoths!! SejE você um mero curioso que conhece a reputação do Lovecraft, mas nunca teve acesso ao material dele, ou mesmo um leitor já iniciado, mas que porventura tem pouca coisa do escritor em sua estante, Grandes Contos é indicado para ambos os casos. Um bom começo pros iniciantes, e um volume respeitável na estante pros freaks que curtem horror clássico de qualidade. Uma antologia com um escritor desse calibre, com esse número de páginas e essa seleção de contos? Não precisa nem pensar a respeito! Caia dentro de uma promoção bacana e entregue suas alma para todas as blasfêmias e horrores inomináveis saídos da mente (mas será que seriam só imaginação mesmo???) de um dos maiores – na minha opinião pessoal o maior! – autores de horror de todos os tempos!!!

Obs.: Pra quem quiser se aprofundar em uma visão geral da obra de Lovecraft e os Mitos de Cthulhu, sugiro esse blog, que foi uma das minhas fontes para essa resenha. É um post um pouco extenso, mas rico o suficiente para que mesmo os novatos tenham uma compreensão básica e abrangente do legado Lovecraftiano na literatura e na cultura pop.

Eduardo Cruz
Eduardo Cruz é um dos Grandes Antigos da Zona Negativa, ou sejE, um dos membros fundadores, e decidiu criar o blog após uma experiência de quase-vida pela qual passou após se intoxicar com 72 tabletes de vitamina C. Depois disso, desenvolveu a capacidade de ficar até 30 segundos sem respirar debaixo d’água, mas não se gaba disso por aí.

Ele também tem uma superstição relacionada a copos de cerveja cheios e precisa esvaziá-los imediatamente, sofre de crises nervosas por causa da pilha de leitura que só vem aumentando e é um gamer extremamente fiel: Joga os mesmos games de Left For Dead e Call of Duty há quase 4 anos ininterruptos.

Eduardo Cruz vem em dois modos: Boladão de Amor® e Full Pistola®.

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