Noite Escura é um quadrinho brasileiro escrito e desenhado por Andy Corsant, sua história é ambientada em um cenário de ficção científica e que também mistura elementos sobrenaturais.
A história é narrada através do protagonista Suzano, um homem muito rico e que após um jantar contraiu um verme que acabou se instalando em seu cérebro, se alimentando dele. Com certeza, certamente a morte era certa, a menos que Suzano fizesse um implante de enxerto com tecido cibernético. Rapidamente nosso protagonista vai em busca de clínicas clandestinas que possam realizar a operação. O processo é simples: remover a parte afetada e colocar o implante no lugar. A operação foi bem sucedida, sendo implantado um enxerto modelo 76UYBH, entretanto o enxerto permite também melhoramentos no firmware, como por exemplo, a instalação de plugins para aperfeiçoamento de determinada habilidade.
E na busca por aperfeiçoamento Suzano baixou um plugin de origem duvidosa, e juntamente desse plugin veio também um código chamado “Violência e Perversidade” (VP) que fez Suzano, como ele mesmo disse: “Ter impulsos odiosos e pensamentos repulsivos”. Não demorou para que todo o sistema de crenças do protagonista fosse alterado. Ele acabou deixando a família e sua riqueza para explorar, em modo peregrino mesmo, outras facetas da vida, e sentir os mais diversos estímulos que pudesse alcançar.
Depois de inúmeras aventuras, Suzano conhece Aneta, uma mulher que assim como ele também contraiu VP e estava a procura dos mais variados estímulos. A atração de um pelo outro é instantânea, e rapidamente eles formam um verdadeiro casal ao estilo Bonnie e Clyde Cyberpunk.
Aneta descobre que tanto ela quanto ele compartilham do mesmo modelo de enxerto, o 76UYBH, o único modelo capaz de rodar o código VP. Quanto mais o casal se conhece, mais um se identifica com o outro, logo eles percebem que o código “Violência e Perversidade” é perigoso, pois muitas pessoas morreram por perderem o controle devido tamanha necessidade por atos de “selvageria”. Mas isto levaria o casal a grandes planos, como uma maneira de dar direcionamento aos seus novos instintos adquiridos, não tinha para onde correr, o VP fazia parte deles e tinham que aprender a conviver com essa nova necessidade. Aliás, uma frase de Suzano gera uma reflexão interessante acerca do que acreditamos, ou que acreditamos que somos:
Eu já escrevi um texto que aborda a ilusória percepção que temos disso que achamos que seja a “realidade”, ele tem alguns pontos que conversam com a fala de Suzano. Mas é interessante como esses elementos no quadrinho de Andy Corsant se conectam com a ideia do sistema de crenças, muito disseminada por homens como o escritor Robert Anton Wilson (no meu texto mencionado acima mostro alguns pensamentos de Wilson) e o ocultista e cientista Peter J. Carroll. A crença (que está atrelada a ética e moral também) forma a base de nossos pensamentos e ações, logo forma também a identidade do EU e o que este EU implica no mundo, Robert Wilson no livro Ascensão de Prometeu afirma que o ser humano acredita em um modelo de crença, ou personagem-modelo, e assim como um ator começa a entrar de cabeça em um papel de teatro, o teatro da vida, agindo de acordo ao comportamento determinado, muitas vezes esse papel dura a vida inteira.
“Nosso ego é o que nossa mente pensa que nós somos. É uma imagem de nós mesmos que cresce a partir de nossas experiências de vida – nosso corpo, sexo, raça, religião, cultura, educação, socialização, medos e desejos. (…) Desenvolver um ego é como construir um castelo contra a realidade. Ele oferece certa defesa e um senso de propósito, mas quanto maior ele é, mais convida ataques e, no fim, há de desmoronar. Há um outro problema. Todas as fortalezas são também prisões. Como nossas crenças implicam uma rejeição de seus opostos, elas restringem fortemente nossa liberdade.” – Trecho retirado do livro Psiconauta, escrito por Peter J. Carrol ao comentar sobre o demônio Choronzon.
Como também já disse Alan Watts uma vez:
“Nós confundimos a nós como organismos vivos que formam uma unidade com o Universo com algo que chamamos de personalidade, e o que é personalidade?”
Mas voltando a falar sobre Noite Escura, o leitor vai percebendo que a história vai crescendo à medida que os planos de Suzano e Aneta vão evoluindo, afinal os dois se tornaram seres extremamente ambiciosos e sedentos por dominação graças ao “Violência e Perversidade”, podemos até dizer que o circuito territorialista de ambos foi intensificado. E não é pra menos, logo depois que o casal entende melhor o funcionamento do VP, eles decidem formar uma violenta gangue chamada Ogiva.
Inicialmente a Ogiva consegue dominar bairros destruindo os líderes locais, e em pouco tempo se torna uma grande potência em toda a cidade. Mas é claro que a gangue de Suzano e Aneta começaria a incomodar muito cachorro grande, e também… entidades do submundo, literalmente, pois até que ponto os poderes marginais das cidades são controlados apenas por “humanos”? É bem interessante notar como isso é desenvolvido em Noite Escura. É uma mistura equilibrada de elementos de ficção científica com ocultismo e monstros peculiares, todos funcionam muito bem dentro do universo da HQ.
É incrível como Andy Corsant consegue apresentar um ótimo roteiro atrelado a desenhos incríveis dentro da métrica do quadrinho, tudo isso faz com que a leitura seja rica em vários níveis, Corsant aproveita muito bem cada momento da história, não permitindo que a leitura se torne cansativa, muito pelo contrário, inclusive não poderia deixar de mencionar as inúmeras referências a bandas clássicas de rock/metal e a William Blake que se encontram no quadrinho, Andy mostrando ser um artista de muito bom gosto (hehe). Conforme a narrativa avança, uma certa tensão vai crescendo também, logo o leitor vai percebendo que uma hora ou outra o circo vai pegar fogo e Suzano vai ter que se ‘virar nos trinta’!
É válido mencionar que Noite Escura nos presenteia com ótimas cenas de luta, até porque um quadrinho desse calibre não poderia deixar de ter boas sequências de ação! Os desenhos do autor transmitem a sensação de movimento e confronto, tanto que quando alguém morre na história o leitor é pego de surpresa e se sensibiliza, porque simplesmente ninguém está esperando e também teve um histórico para se chegar nesse ponto fatal da trama, isso é mérito de um roteiro bem trabalhado que sabe utilizar os elementos narrativos de forma sensata, longe de parecer algo clichê.
Suzano, o protagonista, com certeza é um dos elementos mais interessantes da HQ, pois ele sintetiza a jornada do ser humano que ambiciona o poder para si, que busca esse tal poder (que varia de pessoa pra pessoa), e partir daí começa a viver uma grande aventura onde terá que enfrentar inúmeros inimigos, negociar com diversas pessoas, tomar decisões difíceis, em certos momentos terá a sua fé abalada, também terá que encarar perdas e tentar se superar perante a queda, mas que sobretudo verá que o maior inimigo é ele mesmo.
Além disso, em um determinado momento da narrativa uma família feliz é apresentada para Suzano quando este se encontra em apuros, e quando digo “feliz” é ao pé da letra mesmo, e evidentemente que o questionamento fica no ar: o que de fato essa família feliz representa? Essa família apresenta os argumentos que mostram suas visões de mundo e a partir disto começam a impor a felicidade a todo custo para Suzano. E quem não leu o quadrinho não tem ideia do que essa tal “família feliz” irá fazer com a vida de Suzano.
Noite Escura, muito além da trama principal e dos elementos envolvidos, nos leva a reflexões acerca dos desejos do ser humano, pois na maior parte do tempo, o desejo é o que impulsiona a vida humana na Terra, pelo menos a maioria das pessoas têm alguma ambição, mas até que ponto se está disposto a se sacrificar por isso? E se as coisas não forem exatamente como o planejado, você conseguirá se reinventar? É interessante como se poder ler a história sob diversas interpretações. Andy Corsant conseguiu entregar uma bela obra que merece ser lida, relida e refletida, e o final da HQ com certeza é algo instigante, mas não darei spoilers aqui, deixarei para quem ler tirar as próprias conclusões.
E ainda acerca da saga de Suzano, o “Violência e Perversidade” e o que implica desejar neste mundo de desejos, vale um pensamento de Alan Watts, mais uma vez: “É absolutamente necessário que nos desprendamos de nós mesmos – e tal não pode ser feito, não por qualquer coisa que chamamos fazer, agir, desejar ou mesmo aceitar simplesmente.”, assim disse Alan Watts, e acredito que somente tal pode ser feito através de Kia, o nem isto nem aquilo, mas isso é assunto para outro texto 😉.
Você pode conhecer mais sobre o trabalho de Andy Corsant em seu site: www.andycorsant.com.br/.
Noite Escura
Autor: Andy Corsant
Capa cartonada
Páginas: 105
Preço: R$ 20,00 na loja da Ugra
Publicação independente
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O estilo do Corsant é interessantíssimo! Dá até para imaginar numa série animada!
Sim, o traço dele é muito vivo, intenso. Prontinho pra animação heheheheh