Leitura da Quarentena #26: RECADO A ADOLF Vol 1 (ou: “A negação japonesa e seus sintomas”)

Finalmente no Brasil podemos comemorar que o trabalho do mestre Osamu Tezuka vem sido trazido com muita qualidade, não só em acabamento físico das publicações como também com uma nova tradução para as obras que já haviam sido lançadas por aqui anteriormente. A escolha da editora Pipoca e Nanquim foi muito bem acertada ao trazer de volta as prateleiras brasileiras esse mangá tão aclamado e requisitado que é Recado a Adolf, edição esta que iremos falar sobre ela aqui em nosso post.

A história já começa nos jogos dos anos 40 em Munique com todo aquele clima de surto coletivo fascista, um encantamento de um flautista mágico conduzindo ratos pelas ruas, e o nosso primeiro protagonista, o repórter Touge Souhei nota muito bem esse encanto coletivo com a malfadada ideologia.

A capa já impactante da edição.

Souhei é um personagem extremamente intrigante e complexo pois vemos nele uma espécie de sedutor ao estilo James Bond, mas sem aquela pegada infalível do agente secreto,Touge em diversas vezes falha nas suas empreitadas. Ao chegar na Alemanha, recebe um telefonema de seu irmão Isao, que é um universitário fazendo intercâmbio naquele país. O irmão entrega logo de cara que tem algo extremamente esclarecedor pra mostrar a Souhei, algo extremamente sigiloso e que irá abalar as estruturas do terceiro reich.

Assim que Touge chega na casa do seu irmão, nota que não há ninguém em casa e em seguida vê o irmão jogado em uma árvore perto da janela do apartamento, o que evidencia explicitamente que ele foi arremessado por alguém que queria encobrir o que quer que o rapaz tivesse para revelar, colocando nosso protagonista numa perseguição/investigação ao eletrizante estilo gato e rato.

Tezuka mostrando toda a teatralidade tosca nos discursos do Fuhrer.

Já o outro protagonista é o Adolf Kaufmann, um menino que é filho de uma japonesa com um alemão e que mora no Japão. O nosso segundo Adolf é confrontado com a ascensão do fascismo em um nível pessoal não só vindo do seu pai, mas da sociedade japonesa como um todo, já que apesar de o Japão acolher judeus, eles eram considerados piores do que bichos, o que deixa o jovem Kaufmann extremamente indignado por seu melhor amigo, que é judeu. E este é o nosso terceiro Adolf da história, o judeu Adolf Kamil, um menino que fugiu para o Japão com seus pais, vindos da Alemanha por conta da perseguição aos judeus promovida pelo terceiro reich. Vemos nesse primeiro volume o embate entre esses dois Adolfs que são tão amigos, porém sua relação sofre, pouco a pouco, os desgastes inerentes à esta força naturalizadora de violência que é o fascismo.

Numa sociedade fascista e opressora a violência é algo normalizado desde a infância…

Os três personagens lutam contra a opressão causada pelo fascismo e também contra toda a violência naturalizada que deriva deste. Apesar de alguns personagens mostrarem os traços de uma juventude violenta, quase sempre entram em embates entre o dominado e o dominador, algo comum em sociedades fascistas e que frequentemente usam o racismo para justificar o domínio de uma determinada raça.

Percebemos em Tezuka o tom pacifista e totalmente anti racista na obra, apesar de notarmos que ele dá uma certa relativizada quanto aos japoneses, percebemos que na obra há mais um repúdio aos nazistas (que é totalmente certo), mas não se repudia tanto, ou se relativiza os problemas dentro do imperialismo japonês. O imperialismo dentro do Japão teve sua ascensão ainda antes da Primeira guerra mundial, mas no mangá nada comenta sobre isso e só mostra que a radicalização japonesa foi crescendo de acordo com o alinhamento do Japão ao eixo com Itália e Alemanha.

O modo como Tezuka desenha a expressividade dos personagens é maravilhoso. (Esse cara não parece o Peter Cushing???)

Porém levando em conta o ano em que a obra foi publicada e onde foi, percebemos o porque que o autor não fala muito dessas partes, e até hoje o país vive numa eterna negação de seu passado nefasto, com líderes políticos nem sequer reconhecendo os massacres que fizeram na China e na península Coreana por exemplo. Aliás, negação esta que é muito comentada dentro de Ayako (outra obra do Tezuka que provavelmente vai constar nos próximos reviews da Zona).

A obra não nos poupa dos dados e do que realmente aconteceu, não causando relatos historicamente falsos.

A história em si é um grande Thriller policial, cheio de mistérios e perseguições, assassinatos, agentes secretos, muitos cigarros e mulheres misteriosas. O autor faz uma mistura dos fatos históricos com ficção e fica absolutamente empolgante saber o que Isao tinha a dizer para seu irmão e que tinha tanto potencial para abalar o regime fascista. A arte do Tezuka é extremamente genial como sempre, com as expressões dos personagens totalmente de acordo com cada momento, as cenas de ação são imbuídas de um genial senso de movimento e até com as suas cenas de comédia (parte esta que pelo tom sério da obra pode parecer estranho às vezes), destaque também pro modo como Tezuka desenha Hitler, com todo aquele exagero dramático e extremamente caricato, algo que o ser nefasto realmente era. O primeiro volume termina com aquele gosto de “quero mais!” e nos deixa totalmente ansiosos pro segundo!

Não faltam desenhos panorâmicos lindos, mostrando toda a visão deturpada de pretensa grandiosidade que os regimes fascistas tentavam passar.

A edição da Editora Pipoca e Nanquim é primorosa, destaque para a tradução maravilhosa da Drik Sada que conseguiu adaptar diretamente do japonês de uma forma bastante fiel á sua língua original e que ao mesmo tempo conseguiu recuperar das edições antigas japonesas todas as notas e apêndices que explicam todas as referências históricas e culturais do Japão naquela época, explicando não só todo o movimento político mas todo o contexto japonês, sem esquecer de acrescentar os fatos ocorridos de outros países da Ásia como a China (e a invasão japonesa na China) e na Europa, como a invasão nazista a Polônia, basicamente você não consegue ficar perdido em nada, pois em algum momento alguma nota ou apêndice que é encontrado no final irá te explicar o papel daquela pessoa ou manifestação cultural citada.

Esse balão da edição causou uma grande polêmica entre os “canceladores” de internet, sendo que a falta de raciocínio e o de ódio que é comentado na obra inclusive, fez alguma pequena minoria odiar toda a tradução e não notar que essa linha é completamente coerente com a tradução do Japonês que enfatiza justamente os atributos físicos que o personagem pensa ter.

Texto por: Matheus Martiniano (@martinianofromars)

  • Capa comum : 612 páginas
  • Editora : Pipoca e Nanquim (14 outubro 2020)
  • Idioma: : Português
  • Preço de capa: 89,90

Minuteman ZN
De vez em quando, um minuteman convidado aparece aqui na Zona Negativa para resenhar um quadrinho, ou para publicar a próxima matéria que irá, por fim, explodir sua cabeça, subverter a realidade e nos levar ao salto quântico para o próximo nível dimensional. Não sabemos exatamente quem são essas pessoas, a não ser que elas abram mão do anonimato e decidam assinar seus verdadeiros (??) nomes ao final do texto. Mas francamente, 'quem' elas são não é o preocupante. Preocupe-se com as palavras delas, que rastejam lentamente para dentro da sua cabeça. Todos são minutemen. Ninguém é minuteman.
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